Narciso, o deus deste tempo, e as selfies nossas de cada dia
Ah Narciso… sua narrativa mitológica reflete com propriedade a consciência moderna. Ou seria pós-moderna? Hipermoderna? Chego mesmo a suspeitar se não és um deus em nosso meio. Autoimagem. Autoafirmação. Autoconfiança. Autoestima. Auto avaliação. Auto exaltação. Autonomia…
Não poderia falar de narcisismo sem antes conceder o reconhecimento devido. A expressão “narcisismo” é uma categoria da psicanálise e veio ao mundo quando Freud usou o termo para descrever a primeira etapa da infância, no qual a criança ainda não possui o senso da realidade, exceto, da sua própria existência. Então, nesta etapa, a criança não consegue distinguir entre sujeito e objeto. Para Freud, quando um recém-nascido olha para o rosto da mãe, pensa: “Eu sou você!”. Ou seja, “você é a minha extensão!”. Diferente de como vemos e percebemos o mundo, a partir da relação Eu/você, onde fica clara a distinção sujeito e objeto.
Ocorre que Freud também identificou traços semelhantes em seus pacientes adultos. Aqueles que se preocupavam excessivamente com o próprio eu, demonstravam uma relação distorcida entre o eu e a realidade. O narcisista é incapaz de discernir aquilo que existe fora dele, o outro ou mesmo a realidade externa. E a sacada de Freud vem dizer que os narcisistas tendem a utilizar-se da realidade como um espelho que enviam mensagens para o “eu”. A existência do outro serve apenas para que fique impressionado, admire ou console o “eu”. O narcisista se preocupa tanto em satisfazer os próprios desejos, prazeres e necessidades que o outro é apenas alguém que deve estar disponível a ele, ou seja, apenas mais um meio de “realização”.
“Narciso acha feio o que não é espelho” (usando aqui o trecho da música “Sampa”, de Caetano Veloso). Narciso se relaciona com os outros buscando ele próprio. De tanto admirar sua imagem, ele acaba se encantando excessivamente por si mesmo, enquanto se auto admirava num lago parado, que pode representar um espelho (ou selfies? rsrs). Em uma das versões da Mitologia Grega, Narciso fica paralisado enquanto aprecia a própria beleza e morre petrificado. Numa outra versão, ele pula na própria imagem e morre afogado tentando pegá-la. Interessante aqui, é que ambas as versões do Mito ensinam que o encantamento por si próprio, leva Narciso a uma espécie de mortificação. Viver para si é caminhar para a morte!
Narciso está escondido em si mesmo. Por isso é difícil de achar. O narcisista “se acha”, mas está perdido. Por isso não se encontrou ainda…
Lipovetsky é um autor que estuda em alguns de seus temas a sociedade pós-moralista. Para ele, o “dever” opõe-se a busca do bem-estar consumista; a Moral é sucumbida pela busca do prazer “proibido” e a lógica do consumo é refém da estética do gozo.
Assim, na cultura da hipervalorização da imagem (voyeyrismo), da busca do prazer a qualquer custo (hedonismo), da ideia de que todas as pessoas são boas, o importante é ser feliz e aproveitar a vida a qualquer preço (utilitarismo), curtindo todas as sensações possíveis (subjetivismo) e que “se dane” a opinião dos outros (individualismo) – a relação entre Narciso e nossos dias tem muita semelhança. Seja na vida do dia-a-dia ou na “realidade virtual”.
Por isso Narciso é um deus! Deus deste século! Um diabo de deus que impede a humanidade de perceber a vida para além do que se vê, sente ou deseja.
Mas não pode ser só isto aqui! Não é possível! Há complexidade demais! A Bíblia apresenta uma antítese fantástica! O Cristianismo afirma e sustenta que Jesus de Nazaré é Deus! Veio ao mundo por meio de um bebê que flutuou no ventre da virgem Maria e nasceu num lugar simples (Lucas 2.4-7).
Deus se fez tangível, acessível e alcançável. O Evangelho de Mateus registra que um de seus nomes é Emanuel, que significa “Deus conosco” (Mt 1.23). “El” refere-se a Elohim, ou seja, Deus. Não é “Deus acima de nós”, nem “Deus distante em alguma galáxia”, mas ele vem como o Deus que está com a gente, o “Deus conosco”.
Jesus, o Cristo, é reflexo do Deus criador. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! (Filipenses 2:8).
A vida nasce na morte… do “eu”. João Batista, um profeta que dedicou sua vida preparando o caminho para a chegada de Jesus, profere a seguinte frase: “É necessário que ele cresça e eu diminua” (Jo 3.30). João Batista abraça de todo o coração a vontade de Deus e reconhece a supremacia de Jesus. Muito da piedade cristã posterior ancora-se nesta mesma verdade. E a história da Igreja é permeada de serviço, ações e intenções em benefício do outro.
A luz do Evangelho liberta a vida de andar na sombra narcisista olhando apenas para si. Não é à toa que os valores ético-morais da cultura judaico-cristã sempre nortearam o povo a buscarem relacionamentos corretos baseados na justiça, generosidade e igualdade. Isso influenciava a convivência familiar e comunitária. Tim Keller apresenta as palavras “tzadeqah” e “mishpat” que aparecem muitas vezes na Bíblia, reforçando a extrema importância destas atitudes.
“Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’.” (Mt 22.37-39)
Das palavras “ame o seu próximo como a si mesmo”, há o dever de amar o outro totalmente, “de todo o coração”. Não cabe em nenhum momento, o pensamento de amar primeiro a si mesmo, para depois ou igualmente amar o outro. Na perspectiva cristã, Deus é o centro das minhas ações e o outro é o alvo destas reações. Amor, Perdão, Paciência, Acolhida, Hospitalidade, Beijo, Abraço, Cafuné…
Nunca, em hipótese alguma, Deus ou o outro podem ser reduzidos a meios para satisfações. Isso é coisa de narcisista. Portanto, mate esse diabo de deus Narciso! Jesus, o homem-Deus quer morar em nós.
Texto publicado no blog pessoal Caminhada Figurada, de Vinicius Almeida.
Sophia Rossetto
Excelente texto! Muito bom, achei super bacana, tanto para jovens, como para adultos. Sensacional! Mate isso que mora dentro de você e deixe que Deus abra seu coração. Grande abraço à todos! Leiam, vale muito a pena!
Lazinha Machado
O homem se distanciando a cada dia do Criador, se firma mais e mais como criatura, e deixa de ser filho. Assim como amar ao próximo se só consegue ver a sí mesmo? Quando buscamos a proximidade com o Senhor Jesus, conseguimos olhar além de nós mesmos. Ver o outro e buscar harmonia com ele e com o Pai nos faz longe do demônio Narciso!
Thiago F. Alves
Quero matar o narciso dentro de mim.
Como os textos de João Batista tem falado comigo.
Poderia ver esse texto e dizer que não tem nada haver comigo, mas eu reconheço que muitas coisas tem que morrer dentro de mim. Menos de mim e mais de Cristo.
Seja tudo em mim Jesus.
Maria RM Rocha
Excelente texto! Ótimo assunto para discussão entre os jovens e adultos. Maria Rocha
Carlos A. Romano
Isso de buscar ser o centro das atenções e fazer dos outros nossos apreciadores é bem coisa do pai dos demônios. Sem falar que no final, esse “eu” mergulhará para a morte de si mesmo, afogando-se na auto-imagem projetada de forma distorcida.
Isso é forte, Vinicius – se é que entendi. Gostei.
Elizangela Fontenelle
Gostei muito. Forte. Excelente texto!