O justo viverá pela fé. Será?
Por Marlon Teixeira
Tornou-se um consenso tácito entre a população protestante que a ratificação que Paulo faz do texto de Habacuque 2.4 em Romanos 1.17 refere-se a uma suposta experiência cristã que se manifesta, única e exclusivamente, pela fé, independente da relação com aquilo que a Bíblia denomina de “boas obras”. Esta acepção, no entanto, só foi popularizada após o manejo deste versículo pelo monge agostiniano Martinho Lutero, que em 1517 teceu 95 argumentos contra a pregação e petição de indulgências por parte da Igreja Católica, elegendo a afirmação bíblica “O justo viverá pela fé” como o fio condutor de seus protestos.
Acredito que, embora o ato de apropriar-se deste texto para exaltar a doutrina da salvação pela fé seja totalmente correto e plausível, há uma ampliação branda deste sentido – muitas vezes imperceptível – que se estende à sua transformação em um álibi para se negligenciar a necessidade das obras (afinal, “o justo viverá pela fé”). Mas se avaliarmos o versículo de Rm 1.17 com um crivo hermenêutico minimamente razoável, ou seja, dissecando partes desta epístola paulina, descobriremos que o termo “justo” não se sintetiza em “crente” ou “cristão” apenas, mas que se dilata até um significado mais específico.
Duvida? Vamos lá, então. Primeiro, vire a primeira página da carta aos Romanos e localize o capítulo 2, verso de número 13. Lá diz assim: “Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados”. O apóstolo dos gentios parece começar dando norte à sua concepção de quem, de fato, viverá pela fé. No mesmo capítulo ele já havia asseverado: “a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem…” (v. 7); “glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem…” (v. 10). Agora ele, categoricamente, afirma que o justo – ou o que será justificado – é aquele que pratica a lei.
Por conseguinte, parafraseando o versículo chave de nossa reflexão, poderemos transcrevê-lo da seguinte maneira: “O que pratica a lei viverá pela fé”. Mas o que seria esta lei? A legislação de 613 artigos de Moisés? Só os dez mandamentos? Bem, caminhemos mais um pouco nos conceitos de Paulo. Abra em Romanos 13.8-10 e leia este pequeno texto, integralmente. Agora, você já sabe o que é “cumprir a lei” na cosmovisão de Paulo, não é mesmo? É executar o amor; é amar o próximo como a ti mesmo; é a caridade; é fazer as boas obras. Assim sendo, temos o problema devidamente equacionado: “o justo viverá pela fé” é o mesmo que “o que cumpre a lei viverá pela fé”, que, por sua vez, é o mesmo que “o que pratica a caridade viverá pela fé”.
Talvez você não goste muito da palavra “caridade”, porque as teologias protestantes preferem segregar esta expressão como um termo católico ou espírita. Todavia, tal palavra é, nada mais nada menos, um sinônimo do amor aplicado à vida alheia. Não há nada de herético nela. Mas voltemos ao nosso alvo. Vamos investigar se Jesus concorda com o valor que Paulo atribui ao adjetivo “justo”. Em Mateus 25.31-46, o Cristo disserta a respeito das ovelhas e dos cabritos. Os primeiros deram de comer e de beber, hospedaram, vestiram e visitaram uns aos outros. Os últimos se omitiram com relação a estas práticas. Estes irão para o castigo eterno. As ovelhas, “os justos”, porém, para a vida eterna (v. 46).
Se você reler o diálogo de Jesus com o jovem rico, perceberá que o mestre quer torná-lo justo antes dele o seguir: “Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me [ou melhor: depois você viverá pela fé]. Parece que há duas justificações navegando pelas páginas do Novo Testamento: uma é salvífica, repentina e concede a fé salvadora; a outra é contínua, progressiva e desenvolvedora desta fé através das obras. Por que você acha que Paulo e Tiago parecem discordar sobre este tema? E ainda sobre a própria justificação de Abraão? Ora, porque eles estavam falando de justificações diferentes (Gl 3.6-14; Tg 2.21-25).
Contudo, que fique claro que Paulo se apoderou da justificação pelas obras, trabalhada mais por Tiago, a fim de consolidar sua crença de que o indivíduo que executar atos de piedade para com o seu próximo, tornando-se, para tanto, um “justo”, acabará, de fato, vivendo pela fé que solicitou as suas boas obras. Do contrário, se algum crente desejar apartar-se desta responsabilidade, saiba que entre a fé, a esperança e o amor, este último é o mais importante (1 Co 13.13). Sobretudo, respondendo a pergunta do título, o justo viverá sim pela fé. A diferença é que ser justo, neste caso, não significa ter fé, até porque é impossível acreditar em Deus, que não se pode ver, sem creditar amor ao homem, em quem não se precisa crer.
— Marlon Teixeira, 21 anos, é de Ipatinga, MG.
Nota: Artigo publicado originalmente no blog do autor.
RICARDO VENTURA
Quero sempre ter o cuidado de fazer uma hermenêutica do texto,usando apologética para melhorar a interpretação do esboço textual ,na convicção do entendimento na hora da pregação ao público ! Agradeço a solicitação e atenção dos senhores ! Graça e Paz.Amém….