Por Gabriel Brisola

Cartaz do filme "Ela"

Cartaz do filme “Ela”

“Ela” é um filme curioso. Levou o Oscar de melhor roteiro e angariou algumas dezenas de prêmios em festivais. Está rodando em alguns cinemas no Brasil por essas semanas. Apesar de ainda estar no espectro hollywoodiano de narrativa – o desfecho não mente – e no que parece ser a absorção do “indie” pela indústria – os personagens não mentem -, “Ela“ levanta questões fabulosas. Aí está o trunfo do filme: ele é mais feliz em levantar questões do que resolvê-las, como aparentemente faz. Minha função aqui não é fazer uma crítica do trabalho, mas sim pensar as questões suscitadas e ver como elas atingem nossa fé. Mas antes, um resumo:

Theodore trabalha em uma empresa escrevendo cartas para pessoas que não têm tempo hábil: ele escreve para a esposa enquanto o marido está em uma viagem de negócios, para o aniversário de um ente querido… Ele não transcreve cartas, ele as escreve como se fosse mesmo o remetente que o contratou para tal. Em uma rotina solitária, ele se vê pensando na ex-mulher e em como agora estão em processo de divórcio. Ele sente falta da ex e parece não lidar muito bem com o fato. Evita encontros com os amigos e se vê sozinho em seu apartamento jogando vídeo game ou à noite fazendo sexo a distância por um dispositivo de áudio com alguma desconhecida aparentemente solitária.

É aí que uma novidade aparece: ele compra um sistema de inteligência artificial, “mais que um sistema, uma consciência”. E assim ele começa uma relação com Samantha, um sistema operacional altamente desenvolvido que, como o comercial diz, é uma consciência. Pensa, processa as situações, os dados e os sentimentos. E, como era de se esperar, Theodore começa um relacionamento amoroso com Samantha, que aparentemente preenche todas as suas necessidades e sonhos de mulher.

Samantha sente e responde aos sentimentos suscitados pelo protagonista e por ela mesma. A narrativa se desenrola sob essa perspectiva: uma relação com um ser completo, mas desprovido de corpo.

É significativo que o pôster do filme tenha como imagem Theodore. E é significativo que a primeira relação sexual do personagem com Samantha seja idêntica à relação que ele manteve com outra mulher, por áudio. Creio que não estamos longe de nos relacionarmos com Samantha. Na verdade, nós já nos relacionamos com ela.

Nossas conversas no Skype, por telefone, por Facebook, WhatsApp e etc, flertam com a ideia de que estamos conversando com nós mesmos – a hipótese do filme – ou com a ideia do outro em nós. O outro é sempre feito de uma projeção intensa e isso não é novidade, mas talvez o modo como nos comunicamos tem potencializado essa projeção. Conhecer e se relacionar com o outro é sempre um horizonte, nunca um lugar de chegada. E parece que falar consigo mesmo vai continuar sendo a regra no futuro próximo.

Posso parecer pessimista, mas a promessa das redes em unir as pessoas nunca me soou uma embarcação muito segura. Creio não estar sendo nostálgico nem sublinhando discursos conservadores. Os meios de comunicação realmente nos trouxeram coisas fabulosas – sou o primeiro a atestar -, mas não sou muito esperançoso em relação a certos aspectos.

E aqui gostaria de apontar um outro horizonte para pensar a questão. É relevante que nas Escrituras o corpo tenha um lugar importante. O “verbo se fez carne” para andar entre nós, Cristo ressurgiu em corpo, o corpo é habitação do Espírito Santo, Paulo ensinando que o sexo é a união de dois corpos, o corpo de Cristo na ceia, o pregador falando da decadência do corpo na velhice em Eclesiastes… Mais que uma negação do corpo, como nosso Cristianismo tem feito, a Bíblia aponta a importância do mesmo.

O corpo é porta para o conhecimento e contato com o mundo e o outro. Existe um mistério no corpo, no entrar em contato com o mundo, as coisas e os outros, com e através do corpo. Quem já sentiu saudades, depressão, euforia, amor, sabe exatamente onde a sensação se encontra no corpo. E mais ainda, existe um mistério do qual os místicos e santos falam: do corpo em contato com Deus.

Talvez o corpo seja mesmo importante nas nossas relações. Creio eu que sim. E talvez necessitemos de um novo pensamento ou um resgate do pensamento bíblico em relação ao corpo. Não cabe mais pensar o corpo apenas como adjacência, mas agora como uma estação a partir da qual a vida orbita. Espero que possamos cumprir com essa responsabilidade.

 

 Gabriel Brisola tem 24 anos, é formado em jornalismo e fotógrafo.

  1. Fala Gabriel, legal seu texto e as questões que vc traz!

    Tentando trazer algum elemento a mais pra essa questão do corpo, tem uma idéia interessante da teoria de inteligência artificial (que é uma das minhas áreas de estudo do mestrado).

    Na discussão sobre a possibilidade de se criar uma inteligência artificial, muitas vezes é defendida a idéia de que além de uma mente, é necessário também alguma forma de corpo, capaz de interagir com o ambiente.
    Acredita-se que para existir inteligência, deve existir consciência. E para haver consciência, é preciso ter noção de si mesmo e do outro. Para encontrar esse limite (entre si mesmo e o outro), é necessário um corpo.

    Acho que isso reforça a insuficiência da inteligência sem forma da Samantha e ao mesmo tempo ressalta o privilégio do acesso ao Deus encarnado – a inteligência criadora que existe em sua plenitude e nos dá consciência sobre si e sobre nós mesmos..

    Enfim, esse debate de inteligência artificial é muito louco e me faz viajar bastante… possivelmente vc se empolgue também!

    Forte abraço!

  2. Incrível essa reflexão sobre o filme e a visão cristã sobre o corpo. Ainda não ví o filme, apenas tenho lido sobre e ouvido muito as pessoas comentarem. Ao assistir, vou lembrar dessa reflexão. Parabéns Gabriel.

  3. Maninho! Esse artigo fala muito das minhas angústias e do que sinto muita falta nos dias corridos de hoje : os encontros verdadeiros, não virtuais, a presença! Como tudo isso é tão importante pro nosso desenvolvimento como ser humano , para o desenvolvimento até mesmo da nossa inteligência emocional. Fico me perguntando se nessa tendência que você citou de se conversar a distância pelo skipe, whats up, e facebook, iremos perdendo o nosso potencial de se relacionar enquanto presença…Dá um medo tremendo!Imagina se converso só comigo, vou perdendo potencialmente o conhecimento do outro e me tornando egoista?Deus me livre e guarde!Então, espero que esses meios não seja um fim em sim mesmo e que levem a encontro verdadeiros, aquele encontro onde o risco é latente e também o imprevisível e o inexprimivel.

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