Tudo novo de novo
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Lembrar e ver que o caminho é um só. Lembrar, verbo ativo, claro e presente quase o tempo todo. Ver, verbo automático, busca já sem querer, apanhado de coisas para lembrar-se depois. O caminho, no fundo, é sempre um só: aquele que se escolhe, que fica bem parado ali na frente, olhando e esperando o primeiro passo. Mesmo que este passo já tenha sido dado em outras épocas, agora é outra hora, é um novo raiar do sol na janela. Assim são os começos e recomeços, sempre avisando que um fim ficou para trás. É aí que se sente um turbilhão de coisas, liquidificador de pensamentos.
Um belo dia, após uma boa noite de sono, com alguns breves episódios de insônia, abre-se a janela depois do sol bater. E por frações de segundo lembra-se que há só um caminho, então coloco meus óculos de realidade e vejo que não há porque esperar, o tempo é o agora mesmo. E o sol está aí, nascendo para todos. Cada um se abre e se fecha como acha mais interessante. Aí, neste misto de animação e medo de primeiro dia de aula, sente-se uma dor. Uma dor característica dos novatos, que a sentem por ter deixado algo e ter que começar outra coisa. Dor estranha. Que faz a gente chorar pelo que já se foi, e pelo há de vir. Dor de criança que chora e ri ao mesmo tempo depois de se machucar. Olhando o caminho com ansiedade e receio, mesmo sabendo que aquele é o seu caminho.
Por um minuto não há nada para dizer, é somente você e o seu caminho, sua imaginação, sua visão, e aquilo que se lembra da história da vida. Aquilo que está na lembrança, as chuvas, as pedras, as flores, os espinhos. A saudade, a entrega, a partida, o medo de ir. Aí aparece a questão: “Quem roubou nossa coragem?”. Ontem mesmo, sentada com meus amigos, poderia mudar o mundo. É o caminho que me faz querer parar? É o caminho que exerce em mim atração e repulsa ao mesmo tempo. Que me faz lembrar daquilo que já fui um dia no porta-retratos. O caminho que me lembra da dor, aquela que eu quero evitar. Mas, “excluindo-a”, faço exatamente o contrário: trago-a ao meu encontro, seja hoje ou amanhã.
E a dor do arrepender-se por não ter feito algo é tão subjetiva quanto física. A dor dos que retrocedem é angustia prevista, a qual eu não quero carregar, e por isso, ainda parada na janela com o sol me esquentando e dando luz, eu decido caminhar pelo novo caminho. Encarando o que vem pela frente, mas agora vivendo um dia após o outro e tentando evitar coisas demais, bagagens demais, pensamentos demais. A experiência tem que servir para alguma coisa.
E nesta “linha de trem” eu vou. Carregando uma foto dos que amo, um bocado de sonhos e papel e caneta para me lembrar do gosto bom daquilo que tenho nas mãos. Para que quando eu me esqueça de quem eu sou e para onde eu vou, eu possa parar na beirada e desenhar com as palavras aquilo que tenho. Poucas coisas, mas preciosas. Preparando-me para os doces desastres e as inconsoláveis alegrias. Falando comigo mesma em alto e bom som, quando os pensamentos não assumirem esta função, dizendo para mim mesma que vai dar tudo certo.
Porque ainda que tudo pareça loucura, nem haja aparentemente sentido em tudo que eu esteja fazendo; mesmo sem haver reconhecimento, dinheiro ou beleza; ainda que o produto da minha fé venha a se desfalecer pelo caminho, e pareça que está tudo perdido e seco; eu me alegro no Senhor, o Deus que me amou desde o princípio, me deu salvação e tem me livrado de toda condenação. O Senhor Deus é minha fortaleza, e faz meus olhos procurarem os Seus. Por isso ando mais alto ao Teu encontro.
Não sigo por uma rodovia, que aos olhos de muitos é mais bonita, mais confortável, mais uniforme, mais precisa e por onde seguem aqueles que estão certos do seu destino, com as coisas “sob controle”, guiados por uma sinalização clara.
Na minha vida hoje há uma trilha de terra batida, aquela que está ali, logo à frente da janela. O seu “começar” é bem diferente: é preciso levantar mais cedo e renunciar a algumas coisas. O meio de transporte são seus pés, logo a trajetória poderá ser lenta. O caminho é desigual. Possui altos e baixos, buracos e ainda alguns atalhos. Nela, você só reconhece o começo, não sabe se há placas, mas pode reconhecer as estações do ano. Ela não é bonita aos olhos humanos e requer preparo físico, paciência, e perseverança.
É necessário ter fé e esperança, tanto no hoje quanto no amanhã. Caminhando com uma expectativa no coração, um motor, uma curiosidade angustiante de saber e crer. Esta estrada de terra de percurso trabalhoso gera um surpreendente entusiasmo no coração, dando a sensação de superação e acolhimento. Por isso eu vou nesse caminho, porque fui escolhida para Ele e por Ele.
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Priscila Souza é psicóloga e missionária em tempo integral da Jocum-TO
Jefferson
Muito, mas muito inspirador e de uma realidade arrebatadora. Obrigado pelo belo texto e reflexão.
Bernadete
Obrigada Priscila, andei, corri os olhos nas suas palavras, não teria como ficar parada, vendo o trem, a beleza, e ficar na pausa, preciso seguir. O hoje, seja belo ou feio, não importa, apenas passamos vivemos e levamos um pouco de tudo em nossas malas, (em nosso quarto, que somente nós temos a chave). A circunstância que leio (vou ler novamente devagarinho, como uma sobremesa) e sonho, não vejo tudo, é como não me acordei ainda, pois o sonho não ficou concluido, espero em Deus, e peço capacita-me para que não deixe de realizar, ou de ir, enfim estar com Ele aonde Ele me quer, e fazendo o que for determinado por Ele. Muito obrigada por me fazer mergulhar mesmo não sabendo nadar, alcancei a margem, preciso aprender algo para então prosseguir. Abraço Como hoje recebo sobremesa dupla, este versiculo recebi várias vezes antes, de ir para trabalho em uma área indigina, a muito tempo atras, partilho: “Israel não se deixou ajuntar; contudo aos olhos do Senhor serei glorificado, e o meu Deus será a minha força. Disse mais: Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de Jacó, e tornares a trazer os guardados de Israel; também te dei para luz dos gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra” (Isaías 49:5-6).