Recado aos meus jovens filhos
Às vezes me pergunto se consigo mesmo entendê-los. E se eles me entendem. Refiro-me aos meus filhos. De vez em quando ainda os tenho ao redor da mesa do almoço, do jantar. Mais raramente até no café da manhã, num sábado mais preguiçoso… Nesses momentos, quando a gente se descontrai e ri e pára por uns sagrados minutos de cobrar e aferir um ao outro, tenho a sensação gostosa de que a gente se entende e que a comunhão é uma das utopias possíveis no seio da família. Mas só por alguns minutos… Logo a culpa das expectativas não cumpridas deles sobre mim como pai, minha sobre eles como filhos, profana a santidade daquele momento que nos escapa.
Meus filhos estão saindo da adolescência e entrando na idade adulta. O mais velho caminha para 21 anos de idade, a caçula já beira os 17 e ainda tem duas outras entre estes extremos tão próximos. Gosto de conversar com eles, gosto de tentar entendê-los. Gosto também de me sentir respeitado e amado por eles, o que acontece uma boa parte das vezes! Sinto-me gratificado quando percebo que eles aceitaram um conselho meu, ou quando levam a sério as coisas que considero sérias e importantes.
Mesmo quando não consigo o tempo ou o espaço ou o melhor espírito para uma boa conversa, penso bastante neles. Sobre cada um: como está lidando com a vida, como está “toreando” suas emoções, como está controlando os seus hormônios, como está equacionando suas questões importantes em um mundo que se torna cada dia mais complexo e em muitos sentidos cruel… Preocupo-me por eles! Como, provavelmente, a maioria dos pais.
Por conta disso, desse amor entranhado, dessa paixão tecida nos lugares mais inacessíveis da alma, tenho pensado em coisas boas para lhes dizer. Coisas que a gente vem colecionando nessas quase duas décadas de relacionamento a seis; segredos de pais para filhos. Coisas que agora reparto neste improvisado recado:
O que a gente é vale mais do que o que a gente tem.
Às vezes, vocês sabem bem, eu me arrependo de ter escolhido o ministério — este de seguir a Deus como pastor ou no serviço da poesia e da adoração através da música. Às vezes me pego reclamando, dizendo que gostaria de poder ter mais, poder dar mais a vocês, supri-los mais adequadamente, proporcionar uma viagem extra, uma roupa mais bonita, um sapato mais “chique”. Às vezes reclamo em voz alta e não tem como não perceber (que bom que vocês me conhecem — é um alívio poder ser eu mesmo). Mas estes meus reclamos não conseguem matar a lucidez que vem do Espírito de Deus — na sua luz nós vemos a luz! E, nos meus momentos de lucidez, me curvo diante do Pai e lhe digo que Ele fez bem em aceitar os meus votos de ministério (“não me dê a riqueza, nem a pobreza, dá-me o pão que me for necessário…”, votos que eu “roubei” do sábio Salomão). Digo a Ele que Ele tem feito bem à minha alma e que nos meus melhores momentos eu chego a cantar de tanta alegria. Digo a Ele que apesar do “modismo” da teologia da prosperidade e do “servo” de Deus que é sempre bem sucedido, inclusive financeiramente, eu estou satisfeito e aprendi a viver contente na abundância bem como na escassez. Digo a Ele que Ele mesmo é a minha porção, que Ele é o meu bem maior, o Amado de minha alma e o Senhor da minha vida. Digo a Ele que vocês — minha mulher e meus filhos, minha família — são o meu tesouro mais precioso nesta vida e que, graças ao cuidado dele, — inclusive em não nos dar tudo o que pedimos — temos aprendido a respeitar os outros, a amar e ver com bons olhos os menos privilegiados e a aprender os pirimeiros passos da dependência e da fé genuína — não esta que está na moda, que exige de Deus aquilo que se quer, mas a da Bíblia, que ferece a Deus aquilo que se tem! Acho que vocês já aprenderam a lição número 1 — valemos pelo que somos. Vocês são maravilhosos e preciosos!
Amar de verdade ‘tá cada dia mais difícil.
Jesus já havia alertado aos discípulos, quase 2.000 anos atrás, mas vale relembrar: “… e por se multiplicar a iniqüidade, o amor de muitos esfriará!” Vivemos dias maus. As pessoas amam mais a si nesmas do que a Deus. As pessoas amam mais aos prazeres do que a Deus. Muitos amam a Deus da boca pra fora, mas o coração está longe dele. Vivemos dias de muita apostasia. Apostasia é a negação da fé. Às vezes ela é aberta e descarada e fica fácil de perceber. Outras vezes, e sei que vocês já têm percebido isso, ela é encoberta e dissimulada — tem aparência de piedade, fala coisas bonitas, freqüenta a igreja e faz oração, mas é apostasia mesmo assim. Só que é difícil de perceber. Iniqüidade e amor não conseguem formar um bom par. A Iniqüidade entra por uma porta, o amor sai pela outra. Mas quando isso acontece no meio da família da fé, a tendência é a gente ficar magoado, ressentido. Aos pouquinhos a gente vai se tornando cínico — não acredita mais nas pessoas, tem dificuldade de perdoar, de dar uma segunda chance. O amor esfria. Vigiem e orem, façam jejum e lutem com Deus, mas não deixem isso acontecer com vocês: “De tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, pois dele procedem as fontes da vida!” Como Satanás vem sempre para roubar, matar e destruir, sua mira predileta á o nosso coração. Cuidem do seu coração. Peçam sempre a Deus discernimento para perceber o mal e afastar-se dele. “Sejam inocentes para o mal, excelentes na prática do bem e o Deus da paz em breve esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês.”
Corpo e alma são duas faces da mesma moeda.
Sei que isso parece “chover no molhado” ou preocupação excessiva de pai (e mãe, porque neste ponto sou o porta-voz dela…). Vivemos hoje um novo surto de neoplatonismo. (Sei que vocês ainda não conhecem nem têm muito interesse por Platão, mas um dia terão. É tudo uma questão de tempo!) Para os neoplatonistas, o espírito (ou alma) era bom e tudo que a ele se referisse. O corpo (ou matéria) era mau. Isso gerava uma de duas atitudes: o “ascetismo”, que submetia o corpo a toda disciplina para que seus impulsos maus não atrapalhassem a jornada da alma a caminho de Deus; ou o “hedonismo”, que liberava o corpo para fazer o que bem quisesse e deleitar-se nos prazeres da “carne” — afinal o corpo não prestava mesmo para nada. Hoje, acreditem se quiserem, ainda vivemos este mesmo conflito. Até no meio das igrejas. O ascetismo toma a forma de um farisaísmo exagerado, cheio de regras — faça isso, não faça aquilo, não toque nisso, não, não, não — é a religião das regras e dos nãos. Raramente alguém lhe diz uma coisa positiva e boa que você deve fazer! O hedonismo certamente, hoje em dia, especialmente nos ambientes que vocês frequentam é mais comum — está cheio de meninos nas nossas melhores igrejas que vivem um relacionamento sexual de total intimidade com a namorada da vez (e vice-versa), e que dirigem o louvor; estão “numa ‘nice’” com Deus.
O evangelho não faz esta separação acentudada entre corpo e alma. Seguindo a tradição hebraica, o homem é percebido como “alma vivente” ou “corpo habitado por uma alma”. O que faço com o meu corpo afeta a minha alma e o meu psiquismo (alma em grego é “psique”). A relação de minha alma com Deus não se dá apenas em nível espiritual — ela ganha concretude, ela se manifesta no meu culto racional, no qual ofereço o meu corpo ao serviço de Deus, um sacrifício que Ele considera aceitável, que Ele recebe com alegria. Por conta disso, evitem os dois extremos — não adianta tentar matar o corpo, sonegar seus clamores, ou se esforçar para “fugir das paixões” por meio de regras ou rigorosa disciplina ascética. Primeiro porque é inútil. Segundo porque é presunçoso. Terceiro porque é tarefa impossível sem a graça de Deus. Não adianta também entregar o corpo ao diabo (na esperança de que a alma acabe ficando com Deus, por exclusão) — neste caso fica “pior a emenda do que o soneto”. Sigam a tradição hebraico-cristã-evangélica: corpo e alma ao serviço de Deus; corpo e alma ao serviço do próximo; corpo e alma no culto e na comunhão da igreja; corpo e alma na relação conjugal. Cama e alma, em algum lugar devem ter a mesma raiz. Assim, sendo o mais claro possível: deixem para ir para a cama com aquele que for o seu companheiro de alma, no caso das meninas, e companheira de alma, no caso dos meninos, um relacionamento aceito publicamamente diante dos homens, confirmado humildemente diante do altar de Deus. Sei que vocês já tem ouvido bastante esta lição 3. Mas… “quem tem ouvidos para ouvir, ouça!” E que Deus os abençoe.
Beijão do pai.
(Texto publicado originalmente em Ultimato 252)
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Guilherme Kerr Neto é músico e pastor da Comunidade Cristã Koinonia, em Campinas, SP.