Oi gente!

A edição 329 da revista Ultimato já está chegando às casas dos assinantes (se você ainda não é assinante clique aqui) e a seção Altos Papos está imperdível. O assunto da vez é o perdão. Para “aquecer” leia abaixo o texto da Fabíola Vieira.

Um abraço!

Quando nascemos, tudo o que existe não passa de um prolongamento de nós mesmos. Com o tempo, o ego1 se torna mais consistente e o outro aparece. A emergência da alteridade traz em seu bojo conflitos nada distantes da condição burguesa atual: o ego como o centro.

O tornar-se humano é um processo doloroso, marcado pela presença constante de conflitos entre o amor e o ódio. Tal relação ambivalente perde sua força nos anos que se seguem, muito embora permaneça latente, marginalizada num canto escuro de nosso inconsciente. Esses conflitos iniciais do desenvolvimento humano não serão lembrados, mas a relação que o sujeito estabelece com o outro dependerá da maneira pela qual o ego, ainda incipiente, lidou com os impulsos destrutivos desse período arcaico.

Seguindo esse raciocínio, a habilidade de perdoar também dependerá da maneira com que o sujeito se organizou diante dos conflitos primitivos. Assim, aquele que com sucesso reparou os danos causados ao outro, com maior facilidade conseguirá usufruir do amor e da gratidão em sua relação com os demais. Os sentimentos de amor e gratidão, por sua vez, encontram-se estreitamente ligados à noção de perdão. Para perdoar é necessário estabelecer uma relação amorosa, ainda que claudicante.

“Ame ao teu próximo como a ti mesmo” (Rm 13.9) e “perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12) são máximas cristãs que apontam para a dimensão da identificação, assim como revelam o caráter especular do amor e do perdão. Esses versículos anunciam a origem narcísica do amor, em que o outro espelha o sujeito. A vinda de Cristo como homem e a atribuição de características humanas a Deus revelam a abrangência dessa identificação no que tange ao amor. Deus se fez carne para dar ao homem a oportunidade de se relacionar intimamente com ele. A imensidão dos mistérios da divindade não são inteligíveis a nós; por isso, Deus se rebaixou a uma condição mortal. Emanuel — Deus conosco — se ofereceu como espelho ao homem a fim de que a condição de servo fosse rescindida, dando lugar à posição de filho de Deus.

Para amar o próximo é necessário ver nele algo de bom que supomos em nós. Da mesma maneira, para perdoar é preciso acolher a falibilidade do outro admitindo-a em nós mesmos. Cristo é o espelho que se coloca diante do sujeito e de seu próximo. É ele que reflete as agruras e sucessos de um no outro. Sua mediação torna a identificação mais explícita. Por meio da sua imagem, o outro torna-se mais desejável, mais amável, mais humano.

A humanidade é compartilhada e enfatizada na presença do divino. Ele nos humaniza nos oferecendo traços de sua divindade. Perdoar é divino, dizem alguns. Perdoar é também humano; afinal, fragilidade e falibilidade são características nossas.

O amor oferecido e o perdão decretado por Cristo nos elevam a uma categoria que não é “nem [de] escravos, nem [de] dependentes, [mas,] livremente amantes por gratidão”.2 Livres, então, podemos desfrutar da plenitude da divindade em nós, amando e perdoando a todo aquele que se oferece como próximo.

Essa relação que não se furta à necessidade do outro reflete com minúcias o amor de Deus e seu irrevogável perdão. Sob o olhar de Cristo, nos constituímos enquanto sujeitos amáveis e amantes; ansiosos, como os pequeninos, por merecer o amor do Pai.

Notas

1. Ego ou eu refere-se a uma instância psíquica (Ego, Id e Superego) elaborada por Freud em sua segunda teoria do aparelho psíquico. Compreende a parte que entra em contato direto com a realidade externa.

2. GÉRARD, Sévérin. O Evangelho à luz da Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

Fabíola Carla Vieira é psicóloga, tem 28 anos e mora em Belo Horizonte.

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