Antes de visitar a comunidade quilombola Cachoeira dos Forros, na zona rural da pequena cidade mineira de Passa Tempo (8 mil habitantes), MG, a 143 quilômetros de Belo Horizonte, o Mineiro com Cara de Matuto procurou ficar bem inteirado do significado da palavra “quilombo”. Para tanto, leu o precioso livro Quilombolas – somos todos parte dessa história, de Nila Rodrigues Barbosa e Ulisses Manoel da Silva, e com muitas fotografias de Roberto Murta (Bicho do Mato, 2014), além de passar os olhos nas 331 páginas do Dicionário da Escravidão e nas 174 páginas do Dicionário Escolar Afro-brasileiro.

Historicamente, quilombo é a “comunidade formada pela fuga de negros, índios e, por vezes, até mesmo de brancos pobres, da condição de trabalho forçado”. De origem bantu, a palavra “quilombo” sempre existiu, mas com outro significado: lugar de pouso para viajantes e desenraizados, lugar de refúgio. Em 1740, a definição oficial era de uma habitação de pelo menos seis negros fugidos em algum lugar despovoado e sem moradias disponíveis. Os quilombos eram chamados também de terras de preto, comunidades negras e mocambos. Hoje, quilombo é uma comunidade afrorrural, habitada por afrodescendentes oriundos dos antigos quilombos, que se organizaram e mantêm sua identidade. Seus moradores são conhecidos como quilombolas. Há também comunidades quilombolas urbanas, poucas em relação às rurais, porém oficialmente reconhecidas como tal.

Segundo o governo, deve haver 2.849 quilombos reconhecidos no Brasil, que abrigam 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas, a maior parte abaixo da linha da extrema pobreza (74,73%). Praticamente são todos pretos ou pardos (92,1%). Um quarto deles não sabe ler (24,81%). Mas o Ministério do Desenvolvimento Social identifica um número bem maior: 3.524 comunidades. É provável que o número final possa chegar a 5 mil. Os cinco estados com maior número de quilombos em ordem decrescente são Maranhão (856), Bahia (549), Pará (417), Minas Gerais (207) e Piauí (173). Eles abrigam 62,5% das comunidades quilombolas.

Jordânia

Ao chegar ao quilombo Cachoeira dos Forros, o Mineiro procurou logo a casa de Jordânia e Paulo Mariano, por indicação de Miriam Zanutti, autora do livro Coração Quilombola (ainda não publicado), membro fundadora da Aliança Evangélica Pró-Quilombolas do Brasil, pós-graduada em missiologia e pós-graduanda em africanidades e cultura africana. Um dos capítulos do seu livro é exatamente sobre o quilombo Cachoeira dos Forros, para ela um dos mais bem organizados. Até pouco tempo atrás, Jordânia era a presidente do quilombo. Afastou-se porque fora convidada a concorrer ao cargo de vereadora no município de Passa Tempo pelo Partido Trabalhista Cristão (PTC). Ela tem a idade de Cristo ao morrer, nasceu no próprio quilombo, é casada com um quilombola que faz de tudo na área de construção e tem dois filhos. A casa deles, bem construída e equipada, fica entre a casa dos pais dela e o templo da Assembleia de Deus, igreja na qual são membros.

Embora tenha nascido 95 anos depois da lei que declarou extinta a escravidão no Brasil, Jordânia e vários outros quilombolas de Cachoeira dos Forros, anos atrás, passaram por situações bem próximas daquelas do período da escravidão. Na época da colheita do café, um caminhão vinha buscá-los para trabalhar em fazendas no sul de Minas, em troca de um salário miserável do qual era descontado o preço da comida, produzida e vendida pela própria fazenda. Dormiam num barracão e trabalhavam sob os olhares de um capataz. Pelo menos uma coisa boa acontecia: enquanto os mais velhos iam dormir, os mais jovens dançavam em volta de uma fogueira e alguns encontravam ali o seu futuro cônjuge, como Jordânia e Paulo.

O quilombo Cachoeira dos Forros é banhado pelo rio Pará e possui aproximadamente duzentos moradores, quase todos primos entre si, distribuídos em 62 famílias. Seus bisavós e tetravós são oriundos de Serra Leoa, um dos menores países da África. Suas terras foram doadas pelo padre Antônio Rodrigues da Costa e entregues ao escravo e sacristão Severino, de sua inteira confiança, na primeira metade do século 19, de acordo com Dom Miguel Ângelo, bispo de Oliveiras, MG.

Uma casa para cada família

Duas surpresas estavam à espera do Mineiro no quilombo Cachoeira dos Forros. Uma era a quantidade de templos religiosos, considerando o pequeno tamanho da área e o pequeno número de moradores: os templos da Igreja Católica, das Testemunhas de Jeová, da Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus. O padre que dá assistência aos quilombolas é o responsável pela Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Passa Tempo. Ele é negro e tem boa afinidade com o pessoal do quilombo. A outra surpresa foi ver casas novas e casas em construção. Casas não geminadas, de dois quartos, sala, banheiro e cozinha, com água encanada, energia elétrica e rede de esgoto. Dez dias antes, o Mineiro havia visitado os quilombos Buieié e Vila da Mezina e o que vira neste último era totalmente oposto ao que encontrou em Cachoeira dos Forros.

Jordânia explica que aquelas casas fazem parte do Programa Nacional de Habitação Rural, criado pelo governo federal em 2009, com a finalidade de possibilitar, não só ao quilombola, mas a todo agricultor familiar rural, o acesso à moradia digna no campo, seja construindo uma nova casa ou concluindo, reformando e ampliando a já existente.

Iniciativas governamentais

De volta a Viçosa, o Mineiro teve acesso ao Guia de Políticas Públicas Para Comunidades Quilombolas, publicado pela presidência da República, em Brasília, em 2013. Foi quando tomou conhecimento da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Nesse documento ele encontrou todos os programas de que os quilombolas precisam: Água para Todos; Luz para Todos; Programa do Livro Didático; Programa Bolsa Família; Programa Saúde da Família; Programa Saúde Bucal; Programa Brasil Quilombola e o referido Programa Nacional de Habitação Rural.

Iniciativas particulares

Providencialmente, o Mineiro teve a oportunidade de conhecer duas pessoas de Passa Tempo que chegaram ao quilombo Cachoeira dos Forros quase no mesmo momento. Um deles é formado em relações públicas e trabalha com eventos sociais, como música na praça. Chama-se Bianc Amorim. O outro é Wilson Ribeiro, professor de educação física. Ambos colaboraram muito com Jordânia para o bem-estar dos quilombolas. Em fevereiro de 2015, Bianc promoveu o 1º Seminário Universo Quilombola em Cachoeira dos Forros, com oficinas de cerâmica, medicina natural, tranças e penteados afro e seminários sobre políticas públicas para as comunidades quilombolas do Brasil. Já o professor Wilson tem o propósito de desenvolver um projeto de atividade física para a população quilombola em benefício de sua saúde, principalmente entre os mais idosos, já que o negro é mais propício a desenvolver doenças cardiovasculares e pressão alta.

Muita água e muita luz

Dois programas do governo têm nomes muito significativos: Água para Todos e Luz para Todos. A água, porém, que ele quer e deve oferecer à população rural é aquele líquido sem cheiro nem sabor, essencial à vida; e a luz é aquela luz produzida por uma lâmpada acesa. Ambas são indispensáveis, mas não suficientes. As comunidades urbanas e rurais precisam também de outra água e de outra luz. Esse tipo de água e de luz não são visíveis nem produzem coisas necessariamente visíveis, como saciedade espiritual, comunhão com Deus, quietude, paz de espírito, alegria, vontade de viver, certeza da salvação, sensação de perdão, segurança emocional e outras riquezas transcendentais. Por se apresentar como a luz do mundo e como a fonte da água viva, Jesus fornece água para todos e luz para todos, aquela água que mata a sede íntima ou sede da alma e aquela luz que ilumina o caminho em direção ao Pai.

Aliança Evangélica Pró-Quilombola do Brasil

Em junho de 2015 realizou-se em João Pessoa, PB, uma assembleia séria que está se tornando cada vez mais histórica. Líderes de várias agências e projetos missionários reuniram-se para listar o panorama geral dos segmentos menos evangelizados do país. A consulta arrolou cinco grupos em ordem alfabética: ciganos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e sertanejos. É possível que os menos conhecidos até então sejam os quilombolas.

Dois anos antes, em abril de 2013, tinha acontecido no mesmo lugar a Consulta Quilombolas do Brasil, coordenada pelo missiólogo e pesquisador Ronaldo Lidório, ex-missionário brasileiro em Gana, na África, e com a presença de 55 pessoas, inclusive os quilombolas José de Anchieta da Silva, um dos líderes da igreja organizada no quilombo Serra do Machado (117 casas e 600 moradores), em São José do Egito, PE, e Edvan João da Costa, pastor da Assembleia de Deus de Capoeiras em Macaíba, RJ. O maior trunfo desse evento foi a criação da Aliança Evangélica Pró-Quilombola do Brasil, cujos objetivos são: 1) fomentar pesquisas entre os quilombos do país; 2) ampliar a mobilização da igreja brasileira em prol dos quilombolas; 3) colaborar com o treinamento missionário neste objetivo; e 4) promover a relação de comunhão entre agências, pessoas e igrejas que atuam neste segmento. O paraibano Alisson Gomes Medeiros, graduado em teologia, missiologia e gestão de processos, além de coordenar a Central de Missões da Missão Juvep, é representande da Aliança. Outras três pessoas ligadas à Aliança Evangélica Pró-Quilombolas do Brasil são Sérgio Ribeiro, Ronaldo Lidório e Paulo Feniman.

A história dos quilombos e dos quilombolas deu uma forte guinada em direção à luz para todos e à água para todos.

O tamanho da dívida que a sociedade brasileira tem com a raça negra

A escravidão africana começou, no Brasil, em meados do século 16 e terminou três séculos depois, em 1888.

Vai de 2,5 a 10 milhões o número de escravos embarcados em navios negreiros em todo o período da escravidão. Entre 38 e 39% deles eram destinados ao Brasil (quase 4 milhões).

Ao desembarcar nos portos brasileiros, a esposa e os filhos iam para um lugar e o marido para outro, e, regra geral, nunca mais se encontravam.

No início do século 18, o padre jesuíta Antonil dizia que para o negro era reservado um tratamento baseado em três “p”: “pão”, “pau” e “pano” – pão para comer, pau para apanhar e pano (grosseiro) para vestir. Os escravos moravam em porões ou casas separadas (senzalas), altamente insalubres.

Em meados do século 19, os escravos homens, aos 15 anos, teriam uma expectativa de vida entre 29 e 32 anos.

O escravo era uma “coisa”, e não gente; “algo”, e não “alguém” para ser comprado e vendido. Era um reprodutor de bebês escravos para aumentar o capital de seu senhor.

No início do século 19, 40% ou mais da população brasileira era constituída de negros e pardos.

Os invisíveis de ontem tendem a permanecer invisíveis hoje

Em março de 1816, 72 anos antes da Lei Áurea, um francês nascido em Paris chegou ao Rio de Janeiro. Era o famoso pintor Jean-Baptiste Debret, de 48 anos. Ele veio para iniciar no Brasil o ensino de artes plásticas. De volta à França, quinze anos depois, Debret publica em três volumes o seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, com forte conteúdo social. Por meio de algumas telas, o pintor torna visível o que era invisível, as mazelas sociais do Brasil Colônia. Uma delas mostra o espancamento de um negro com as pernas dobradas e presas ao peito e com as mãos amarradas. Outra exibe a magreza de crianças escravas, que se “alimentavam mediocremente”, como ele mesmo escreve.

A maior parte da sociedade brasileira daquela época não enxergava ou não dava atenção aos horrores da escravidão. Isso explica por que o Brasil foi o último país do mundo a extinguir o trabalho escravo.

Mas os invisíveis de ontem tendem a continuar invisíveis hoje. Conforme recente relatório da Anistia Internacional, as comunidades quilombolas continuam enfrentando graves ameaças a seus direitos humanos geralmente em decorrência de litígios vinculados a terra. A juíza Catarina Volkart Pinto, de Novo Hamburgo, RS, lembra que tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação contrária ao decreto que regulamenta todo o processo em relação às terras quilombolas. Segundo a juíza, os quilombolas “são desconhecidos inclusive perante grande parte da própria população local. Parecem ser invisíveis”, como os “ninguéns” de Eduardo Galeano: “Aqueles que não fazem arte, mas artesanato; que não têm arte, mas têm artesanato; que não têm nome, mas têm número”.

Apesar de o governo estar melhorando a situação dos quilombos, há verbas prometidas que ainda não foram repassadas ao programa Brasil Quilombola.

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Texto originalmente publicado na edição 362 de Ultimato.

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