O homem que não entendia nada de perdão
Os poderosos deste mundo ainda não sabem o que é perdão. Perdão não é só dispensar o pagamento de dívidas encurraladas, que jamais seriam pagas, como as dívidas externas dos países mais pobres do mundo, cuja renda per capita é inferior a 1 milhão de dólares.
Esse perdão anunciado com euforia pelo presidente Bill Clinton no início de outubro “não resolve em nada a vida desses mais pobres nem significa dano financeiro algum aos ricos”, como explicou Dora Kramer. O verdadeiro perdão não é manobra política. O perdão só é virtude, só é beleza, só é prática cristã quando envolve compaixão frente ao devedor que não tem como pagar.
Os poderosos deste mundo precisam reler a parábola do devedor implacável, aquele homem que devia aos cofres públicos nada menos do que o equivalente a 174 toneladas de ouro e não tinha condições de pagar. As autoridades daquele país tiveram compaixão dele e simplesmente o perdoaram.
No caminho entre o tribunal e sua casa, o ex-devedor encontrou-se casualmente com alguém que lhe devia o equivalente a 30 gramas de ouro. Então agarrou-o e o lançou na cadeia, não obstante o pedido de clemência que o pobre coitado lhe fez, não obstante a promessa de que lhe pagaria tudo dentro de certo tempo, não obstante o pequeno valor da dívida e não obstante o perdão que ele próprio tinha acabado de obter (Mt 18.23-35).
Não é possível ficar calado diante de tamanha injustiça, pois quem cala consente. É preciso “abrir o bué” e denunciar a trama, como fizeram os amigos do devedor injustiçado. Graças a essa providência, o rei voltou atrás, cancelou o perdão e entregou o homem que não entendia nada de perdão aos verdugos, “até que pagasse toda a dívida”.
Não é implicância política lembrar que os poderosos deste mundo têm uma grande dívida para com suas ex-colônias. Eles mataram os índios, escravizaram os negros, levaram para seus países as riquezas alheias, cometeram equívocos políticos cujas conseqüências são complexas e perduram até hoje, e humilharam os povos mais “atrasados”. Estes também cometeram muitos crimes contra seus próprios irmãos. Numa análise mais acurada, todos são grandes devedores. Todavia é bom decidir quem deve as 174 toneladas de ouro, quem deve os 30 gramas de ouro e quem deve os valores intermediários. Na verdade todos precisam de perdão, não do perdão orgulhoso, não do perdão chorado, não do perdão opressor.
O perdão começa primeiro nas relações individuais; só depois alcança as relações internacionais. Se ele não é praticado nem vinga numa esfera menor e menos complexa, como há de fluir numa esfera bem maior e mais complicada?
De uma coisa, porém, é necessário ter muita convicção: o perdão de Deus nos obriga a perdoar. É isso que afirmamos todas as vezes em que oramos o Pai Nosso: “Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6.12). Jesus condicionou o perdão divino ao perdão humano: “Se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará as ofensas” (Mt 6.14-15, NVI).
Texto originalmente publicado na edição 262 da revista Ultimato.