Quando o obituário é um testemunho de alguém que ousou viver o Evangelho de maneira integral

Por Marcus Vinicius Matos*

Perdemos um dos maiores. Mas o céu certamente está em festa. O Reverendo Tony Campolo faleceu no último dia 19 de novembro, aos 89 anos de idade. Campolo teve uma influência duradoura em minha vida, através de seus textos, livros, pregações e doações – pelo o que serei eternamente grato.

Tive meu primeiro contato com a obra de Campolo em 2005, quando fui chamado pelo Alexandre Brasil, então Secretário Executivo Adjunto da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), para traduzir um texto que Campolo tinha escrito ao final da década de 1980 – e que tinha sido publicado em uma coletânea da Intervarsity. O texto mudou minha vida. A tradução de A Urgência do Chamado serviu como base para o material de formação do Congresso Missionário Estudantil da ABUB de 2006. O impacto desse texto na minha vida, e em muita gente da minha geração, é visível até hoje.

O pastor Tony Campolo era um cara sincero, crente e desafiador. Como Jesus. Ele nos desafiava a viver um Evangelho radical, verdadeiro, sem nos importarmos com as consequências dessa escolha.

Ele também sabia usar o humor para pregar, e nos lembrar das nossas limitações humanas. Em 2012, quando a Comunhão Anglicana ameaçava se dividir em torno da ordenação das suas primeiras bispas, ele foi o pregador principal e ironizava: “eu não entendo vocês, Anglicanos. Vocês estão além da minha compreensão. Porque vocês tem na Igreja Anglicana um bispo em Durham que não acredita na ressurreição de Cristo. E agora vocês vão rachar a igreja por conta de ordenação de mulheres bispas?!” A Igreja Anglicana não rachou, naquela ocasião. Eu havia começado a frenquentar uma igreja Anglicana naquela época, e essa pregação, bem como as consequencias dela, foram importantes na minha vida.

Por volta dessa época, me aprofundei um pouco mais na obra de Campolo. Através dele, conheci o movimento dos Cristãos da Letra Vermelha, e também a vida e a obra do Shane Claiborne – que liderava, junto com ele, esse movimento. O movimento trazia uma perspectiva de hermenêutica bíblica que era absolutamente coerente com o chamado radical do Evangelho de Jesus. Era, acima de tudo, simples. Em linhas gerais, eles diziam: a igreja cristã, ao longo dos séculos, e nós mesmos, em nossas vidas, sempre corremos o risco de fazermos uma leitura muito seletiva da Bíblia. E essa leitura, frequentemente, relativiza às palavras de Jesus. Quando Jesus, nos Evangelhos, nos desafia a seguí-lo, como desafiou aos seus discípulos, a gente acaba pegando textos do Velho Testamento, ou das cartas de Paulo, para relativizar. Jesus diz para amar aos inimigos, mas daí a gente lembra que Davi matou seus inimigos, e que não podemos levar Jesus ao pé-da-letra. Por outro lado, tornamos algumas outras passagens da Bíblia como literais, com critérios diferentes. O que o movimento pedia era pra gente levar à sério as palavras de Jesus.

Nos anos seguintes, em contato com os Cristãos da Letra Vermelha, tivemos a felicidade de ter autorização para publicar, aqui no Blog Dignidade, textos produzidos por eles. Com o incrível trabalho voluntário de tradutores como Sara Tironi, Mozart Archilla, e Eliezer Silva, conseguimos reproduzir, em português, uma parte importante da teologia escrita e vivida por Tony Campolo, Shane Claiborne, e outras e outros que caminhavam com eles. Dentre esses, destacamos:

Enquanto sofria meu luto pela sua partida, as palavras de um amigo e irmão, Nehamias Monteiro – que foi Presidente da ABU Leste, quando eu era ainda estudante – me lembraram de uma história que exemplifica bem o caráter e o cristianismo vivido por Campolo. Trata-se de uma história relembrada aqui, em vídeo, pelo próprio Campolo, e resumida nas palavras do Nehemias, que reproduzo aqui:

Eu me lembro de uma história do Tony Campolo, em que ele foi em Honolulu, estava com fome, e não achava um restaurante. Entrou num lugar aleatório, e viu que era bem esquisito, meio sujo. Na mesa ao lado, uma prostituta comentava com outra que ela faria aniversário no dia seguinte, e nunca na vida tinha tido uma festa de aniversário. Ele decidiu então chamar o dono do bar, perguntou se elas iam lá todo dia, e ele disse que sim. E falou que ele ia providenciar um bolo de aniversário para ela na dia de seguinte. Na noite seguinte, duas e meia da manhã, ela e dezenas de suas “colegas de trabalho” estavam lá. Ele orou por elas e as abençoou. E a aniversariante perguntou Que igreja é essa sua, que dá festa de aniversário para prostitutas?” Eu li essa história há mais de 20 anos, e confesso, sempre achei estranha. Mas o fato de acharmos estranha, diferente, exótica nos mostra quão afastados de Jesus estamos.

No final da sua vida, Campolo ainda soube fazer algo que muitas lideranças não conseguiram: passou o cajado, e reconheceu aqueles dos seus irmãos e discípulos que foram mais longe do que ele. Algo raro. Em vídeos e em textos, ele reconhece que todos os esforços que fez para propagação do Evangelho, para demonstrar amor pelas pessoas por quem Jesus demonstrou amor, tinham seus limites. E esses limites estavam no fato de que ele era pastor de uma grande igreja, com salário fixo, plano de aposentadoria, e tinha até um programa na televisão. Ao contrário disso, dizia, havia uma geração de cristãos surgindo, que não tinha nada disso: gente que morava em favelas e ocupações de Sem-Teto, que compartilhava tudo que tinha com os pobres. Ele reconhecia essa vocação, essencialmente cristã, na comunidade liderada por Shane Claiborne e outros “monges” contemporâneos que dedicavam sua vida a Deus, servindo aos pobres.

Deixo aqui um documentário sobre a vida do Reverendo Tony Campolo, em inglês, onde algumas dessas histórias e testemunho de vida podem ser conferidas: “Divine Dissatisfaction“:

Que Deus abençoe aos familiares, amigos, irmãs e irmãos de Tony Campolo. Seu exemplo fará falta entre os cristãos de hoje, e certamente ajudará a juventude cristã do futuro. Que benção foi tê-lo entre nós!

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*Marcus Vinicius Matos é professor efetivo (Senior Lecturer) de Direito Público em Brunel University London, no Reino Unido. É doutor em Direito pelo Birkbeck College, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), e colaborador de Paz e Esperança, uma organização cristã de defesa dos Direitos Humanos na América Latina. É membro da  Diretoria Nacional da Aliança Bílbica Universitária do Brasil (ABUB), e membro fundador da Rede Cristã de Advocacia Popular, a RECAP. É casado com Priscila Vieira, com quem é autor do premiado livro Imagens da América Latina: Mídia, Cultura e Direitos Humanos, e pai de Aurora. Torcedor do Flamengo. Siga no Instagram e Twitter: @mvdematos.  Siga também a página do Blog Dignidade, no Facebook. As opiniões expressas nesse texto são de responsabilidade exclusiva do autor.

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