Alexandre Brasil*

 

A gênese do que se entende por Direitos Humanos é identificada por alguns autores como fruto do dissenso; das desigualdades que a sociedade europeia experimentava de forma cada vez mais evidente a partir dos séculos 16 e 17.

Foto de See-ming Lee. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/seeminglee/8358545238

Downton Abbey. Foto de See-ming Lee. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/seeminglee/8358545238

Essas sociedades se conformaram a partir de uma lógica da diferença, onde os que nasciam em “berço de ouro”, tinham direitos à nobreza e aos outros restavam o serviço e a obediência. São essas situações que vão conformando a sociedade ocidental moderna e que foram dando caldo e condições para a Revolução Industrial graças a criação do chamado exército industrial de reserva, que vimos em nossas aulas na educação básica.

Um exemplo desse diálogo entre conceitos de igualdade que conformaram os direitos humanos e a certeza da diferença, pode ser visto na série britânica de TV Downton Abbey. Ali são retratados o cotidiano de uma família aristocrata e seus criados e os trânsitos possíveis afetivos e sociais que o início do século 20 permitia, diante da afirmação de um Estado de Bem-Estar Social, e após os avanços construídos a partir da Revolução Francesa. As oposições e percepções, tanto dos velhos nobres e criados, como dos novos, juntamente com as tensões daqueles que buscavam manter as tradições são o combustível narrativo desta série.

A busca pela distinção, por ser VIP (Very Important Person e que, em alguns casos, o “P” pode ser lido como Pastor), parece ser algo presente no DNA da humanidade. A tese de doutorado do sociólogo Pierre Bourdieu dedica-se exatamente a explorar e discutir essa presença na sociedade por distinção, de como a diferença é socialmente construída e de que forma, efetivamente, as pessoas ocupam posições, num sentido também geográfico, o que se dá pela reunião de seu capital social e por suas diferentes escolhas e opções. Essas ocorrem diante de um campo de possibilidades e acabam por conformar essas posições em que um dos focos é efetivar a singularidade de cada um. Ser diferente, ser especial.

Parece que essa é uma das buscas centrais do ser humano. Ser VIP, ser especial, ser tratado com distinção. Na vida cotidiana são vários os exemplos desse desejo, desde os carros grandes e possantes que poderiam passar por cima de outros até as pessoas com seus muitos compromissos que esperam atendimento bancário exclusivo ou que sabem que não precisarão enfrentar filas nos aviões graças aos seus programas de milhas. Programas que também as salvam das “classes econômicas” e as colocam em seu devido lugar de “primeira classe”. Isso sem falar das diferenças salarias e do fato de que alguns realmente acreditam que umas pessoas “valem” mais do que outras e que por isso o Brasil amarga a triste realidade de diferenças salarias gigantescas. Isso sem também entrarmos nas diferenças salariais “explicadas” pelo gênero, a qual inexplicavelmente ainda é muito presente na atualidade.

 

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E ainda tem gente que acha que o Marx é ultrapassado ou que não tinha razão e mais ainda, que afirmou coisas que seriam mera propaganda ideológica… esquecem de que “luta de classes” é um conceito produzido por uma área do conhecimento, a qual – igualzinho às outras áreas, sejam elas “duras” ou “moles” – sofre e expressa as limitações e as singularidades da vida humana. Daquilo que não deu conta, outros autores e autoras deram, parte do conhecimento que vai se acumulando e abrindo novas perspectivas. Quando alguém deixar de viajar em um avião porque foi um engenheiro ateu que planejou aquele modelo, vou começar a pensar em considerar as críticas contra as “ateias” ciências sociais.

A Bíblia é recheada de exemplos dessa busca de diferenciação. O desejo de ser especial e diferente está na decisão de Adão e Eva, queriam “ser igual à Deus”, mas também o encontramos no fratricídio de Caim ou na construção da Torre de Babel. Dando um salto, vemos novamente este desejo como um dos argumentos centrais de Satanás ao tentar Jesus no deserto e questioná-lo com uma variação do bem brasileiro “você sabe com quem está falando?!”. No caso, as formulações iniciais de Satanás foram sutis e começaram instigando uma pergunta que diariamente todos ouvimos “Se você é…”.

“Se você é VIP” não precisa pegar uma fila; “Se você é especial” pode furar uma fila… parece que, de fato, acreditamos que somos. Vendo que esta estratégia sútil não estava dando êxito, Satanás parte, então, para o explícito e oferece os resultados desta distinção, o fato de você ser diferente, ser melhor do que os outros pode te dar acesso a “tudo isto”: dinheiro, sexo e poder. E, de fato, é isso o que importa. Ser diferente para receber tratamento diferenciado!vip-1428267_960_720

A lógica dos Direitos Humanos é negar essa tentação do “Se você é…” ao afirmar a equidade dos seres humanos. É defender que TODOS e TODAS tenham acesso a tudo o que precisam para existir, se desenvolver e contribuir. É a defesa de que terra, casa, trabalho, educação, saúde e liberdade sejam uma realidade no cotidiano de cada pessoa. As opções e caminhos sociais, políticos, econômicos etc. para se garantir esses direitos são outra história e não estão postos e é na busca deles que as sociedades subsistem.

Antes da questão da dignidade humana, forte contribuição que tem no cristianismo importante referência, temos no exemplo do Deus encarnado uma contundente afirmação de que as desigualdades e as diferenças não fazem parte de seu plano para a sociedade. As orientações para a sociedade judaica, o convite à inclusão de viúvas, órfãos, deficientes são a marca de um Evangelho que se caracteriza pelo amor e pela inclusão.

O texto bíblico em Filipenses 2 é contundente em defender uma postura de negação desse desejo de “ser” que paira sobre as nossas cabeças, apresentando o didático e emblemático exemplo de Cristo “que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se”. O convite de Paulo é para que os seguidores de Cristo assumam essa mesma atitude de “esvaziar-se a si mesmo”, de colocar-se numa posição de servo. O convite aqui passa por negar a tentação de ser VIP, por negar a crença de que “somos especiais”.

O que é isso? Isso é uma boa contribuição que o pensamento cristão ofereceu aos Direitos Humanos, a convicção de que mesmo o Deus encarnando não se colocou como superior ou especial, de que o Deus encarnado não exigiu tratamento VIP e que esse Deus encarnado convida aos seus seguidores a “humildemente considerarem os outros superiores a si mesmos”. Os efeitos dessa postura são tremendos e, felizmente, a história da humanidade é recheada de exemplos de homens e mulheres que seguiram este convite e que fizeram história ao viverem para construir não uma sociedade desigual, mas sim uma sociedade de serviço e fraternidade.

Que este convite seja constante em nosso dia-a-dia e que incluamos em nossas orações um singelo pedido: “Senhor, livrai-nos de querer ser VIP”.

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*Alexandre Brasil é Sociólogo, doutor em sociologia (USP), com pós-doutorado pela Universidade de Barcelona (Espanha), e professor da UFRJ. Foi Secretário Geral Adjunto da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) e fundador da Rede FALE. Casado com Daniela e pai de Daniel.

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