O esporte como instrumento de conscientização e mudança de vida

esporte-visão-mundiaçl“Um dos caras chegou em nossa roda chamando para matar outro. Nesse meio, só tinham dois que já tinham matado gente e três que não. Eu era um destes. Vamos? Eu disse: ‘bora’. A gente andou e quando chegou na esquina eu vi o rapaz. Parei, esperei e deixei os outros irem na frente. Meu pensamento era de fazer e ao mesmo tempo não. Escutei os caras dando tiro. Escutei a hora em que passou o revólver para o menino que nunca tinha matado, para que ajudasse também. Uma coisa que eu até hoje me lembro… Até hoje…”

Aos 19, José Roberto [foto] conta o episódio que vivenciou há cinco anos, bem como memórias dessa época em que passava tempo com outros rapazes alheios a perspectivas, orientação ou cuidado algum sequer por parte de seus próprios familiares, menos ainda da escola, da comunidade, dos governos e outros que seriam responsáveis por garantirem um desenvolvimento saudável para suas infâncias. Entre o grupo, alguns amigos de pequeno e outros, mais velhos, que chegaram depois. Todos transitando pelo universo da ilegalidade, até onde chegaram pelas circunstâncias de suas vidas. Para muitos, irrelevantes. Aos 14 anos, Betinho simplesmente seguia o grupo ao seu redor, assim como costuma fazer qualquer adolescente.

O Estado de Alagoas está entre os que apresentam as mais altas taxas de homicídios contra adolescentes entre 16 e 17 anos, segundo o Mapa da Violência 2015. São 147,0 por 100 mil. A situação se repete ano após ano dentro da cidade, na qual o bairro do Vergel é dos mais violentos pela forte presença do tráfico de drogas. E foi neste bairro que Betinho nasceu, cresceu e encontrou suas primeiras referências de vida.

Quase todas as ruas, ainda de barro, escancaram os despejos que não têm local adequado para escorrer. As pequenas casas amontoadas umas nas outras abrigam muito mais pessoas do que para o que foram construídas. A principal fonte de renda das famílias é o depenicar dos sururus (depois de um processo de lavar, tirar a lama, ferver, esperar a casca abrir e recolher a quantidade suficiente para encher um galão de tinta, estes são vendidos pelo valor irrisório de 3 reais). Diferente disso é fazer bicos e faxinas, como os pais de Betinho, sendo sua mãe o arrimo de família, além de seu refúgio emocional e fonte de inspiração.

esporte-visão-mundial“Eu era um pouco agressivo, só com o tempo fui mudando a forma de observar as coisas”, descrevendo sua personalidade no momento em que começou a fazer capoeira no Projeto Mundaú. Visão confirmada pela coordenadora pedagógica do projeto, Liliane Rocha, que conheceu Betinho logo nos seus primeiros dias de trabalho e o acompanhou ao longo dos anos. “Quando cheguei para trabalhar no Mundaú, em 2010, ele estava no processo de mudança. Ouvia o pessoal falar que não era um menino de respeitar muito os outros”.

O Projeto Mundaú, da ONG Visão Mundial, chegou à vida de José Roberto como aquele ponto de mudança de rota que aparece no caminho e, necessariamente, faz você alterar a direção. “Comecei na capoeira aos 12. Antes só ficava na rua, sem hora para voltar para casa. E pelos 14 anos, comecei aquele jeitão de querer sair para festas, de querer estar no mundo à toa, comecei a faltar muito às aulas de capoeira porque estava envolvido com gente que faz coisa errada”, conta.

Notando as ausências do adolescente, a então professora de capoeira, Fabiana, aumentou sua atenção, usando a atividade como uma oportunidade para além do simples repasse de conhecimentos. “Ela conversava comigo sobre o potencial que via em mim, dizendo que percebia o quanto eu me dedicava às coisas que faço e dizendo que aquele grupo precisava de mim. Tenho muito a agradecer porque ela e meus parceiros de treino não deixaram de acreditar em mim, quando um monte de outras pessoas próximas fizeram”, diz.

Nesse período em que esteve mais afastado, um de seus amigos foi morto por outro. “A gente sentava junto, comia junto, convivia e mesmo assim isso aconteceu. Pensei: se fizeram isso com ele, uma hora vão fazer comigo também. Cheguei a sonhar com minha morte”, lembra. Com isso, tomou uma decisão definitiva. “Meu pensamento foi só buscar coisas melhores para mim. Por isso, voltei ao projeto. Lá aprendi e aprendo muito”.

Foi quando entrou no grupo Monitoramento Jovem de Políticas Públicas (MJPOP), que forma adolescentes e jovens em temas como direitos, cidadania e participação política. Além disso, os capacita em sua metodologia de mobilização comunitária e cobrança de melhorias nos serviços e políticas públicas. “Além de aprender sobre meus direitos e participar das ações e mobilizações do MJPOP, também comecei a repassar os conhecimentos, como quando fizemos uma ação nas escolas apresentando aos alunos o Estatuto da Criança e do Adolescente. A convivência com o grupo me ensinou também que liderança vai além de representar pessoas, mas ajuda-las a realizarem coisas juntos, escutando e incentivando. Para mim, isso é ser um líder”.

E sua liderança tem sido reconhecida por pessoas que o acompanharam como a Liliane. “Ele é hoje uma pessoa bem diferente. Tranquilo, participativo, comprometido, incentivador, Influencia bem os que estão ao redor. Realmente mudou e cresceu bastante nestes anos aqui no Mundaú. E esse é nosso trabalho: contribuir com cada uma das meninas e meninos que chegam até nós para que cada um ajude a construir uma realidade melhor para todos”.

PDA MUNDAÚ

O Programa de Desenvolvimento de Área Mundaú abriga diversas ações e projetos realizados pela ONG Visão Mundial e seus parceiros na cidade de Maceió (AL), atendendo 2.732 crianças e adolescentes nas comunidades mais vulneráveis. As atividades realizadas são de leitura, contação de histórias, oficinas de música e formação sociopolítica de adolescentes e jovens, fortalecendo as capacidades de crianças e adolescentes para que possam trilhar novos rumos. A Visão Mundial está há 40 anos no Brasil e através destas atividades programáticas e de ações de advocacy tem contribuído para a redução das desigualdades que se apresentam na vida da infância brasileira e pela garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

Nota:
Texto publicado originalmente no site da Visão Mundial.

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