A voz de um boiadeiro na capital
O que faz um agricultor e boiadeiro, um “boieiro e colhedor de sicômoros”, ir do Sul para o Norte? O que o leva a sair de uma pequena aldeia, Tecoa, para a grande capital, Samaria, em um período de apregoada prosperidade, e despejar claras ameaças sobre os líderes da cidade? Tecoa, é bem verdade, seria pequena, mas, não, sem importância. E Amós, o agricultor boiadeiro, também se apresenta como um homem bem-informado, atento inclusive aos acontecimentos mundiais. Alguns chegam a dizer que ele seria um rico proprietário de terras, com empregados sob o seu comando. Outros duvidam disso e propõem que ele faria parte da população camponesa pobre e sem-terra, a serviço de grandes proprietários. De todo modo, curiosa seria essa migração, em que o migrante não vai à cidade para buscar espaço, mas para anunciar desgraça; não vai em busca de novas oportunidades, mas para denunciar exploração. Quando confrontado, o profeta se explica e se apresenta como emissário de Deus, do mesmo Deus, Javé, que os líderes denunciados dizem adorar: “Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e colhedor de sicômoros. Mas o Senhor me tirou de após o gado e o Senhor me disse: Vai e profetiza ao meu povo de Israel” (Am 7.14b, 15).
O profeta boiadeiro, Amós, diz que não faz parte dos círculos conhecidos dos profetas, de nenhuma das escolas de profetas conhecidas ou oficiais. De certo modo, rejeita as instituições religiosas estabelecidas. Entretanto, ele mesmo seria a voz audível da divindade. Rejeita a religião e fala em nome do Deus da religião, arvorando-se a discutir, na procura pela verdade, com qualquer espécie de religioso. Vai profetizar na capital. Deslumbra-se com seus palácios, mas decepciona-se com o imenso sistema de exploração ali constituído. A injustiça se institui a partir da dominação de uma classe privilegiada, cujo monopólio religioso transforma o discurso ideológico em sagrado e legitima a contínua exploração. Critica as assembleias, os cânticos, as melodias ao som da lira, os sacrifícios e todos os rituais religiosos, e propõe que, em vez disso, corra “a justiça como ribeiro perene” (Am 5.24).
O profeta é um migrante do mundo rural para o urbano, como muitos migrantes de todas as épocas. No entanto, o que o leva a migrar não é a fascinação produzida pela metrópole. Tampouco é a possibilidade de desfrutar das vantagens de uma cidade murada que, aparentemente, oferece proteção aos seus habitantes diante de diversos tipos de violência, e que apresentaria uma qualidade de vida melhor do que a encontrada no campo. Amós migra em plena revolta e denúncia. Em seu falar, a cidade seria a responsável direta pelo que acontece no campo. Seus palácios e suas “casas de pedras lavradas” são construídas com a exploração do pobre camponês, com o dinheiro do tributo arbitrado sobre a sua colheita de trigo. Mas, finalmente, alguém rompe o silêncio, denuncia a estrutura injusta e confronta os responsáveis pela espiral de injustiça. Talvez o próprio Amós tenha sido atingido por esse lado oculto da urbanização. Talvez também tenha perdido terras e gados, pela contínua e abusiva opressão do mundo urbano sobre o rural. Nem rico nem pobre, pertenceria à nova categoria de “empobrecido”. Entretanto, o profeta não fala apenas em seu nome ou em nome dos empobrecidos do campo, mas a partir de um nome bem maior.
O camponês-profeta, Amós, assume a voz do campo contra a cidade — ou critica e denuncia o processo de urbanização de sua época — em nome do mesmo Deus celebrado pela cidade. Para o profeta, esse Deus, Javé, está do lado do explorado camponês, e não do lado do opressor urbano, mesmo que seja este último quem detenha oficialmente o poder de decidir o que é religião e de estabelecer e organizar o grupo legítimo de “profetas”. O profeta ilegal, Amós, reivindica como legítima a sua experiência, por ser direta e incontrolável. Representa uma religiosidade popular que desconhece e até desrespeita mediações oficiais. Existem outros canais de comunicação com Javé, fora da religião oficial, e essa experiência, de cunho popular, vem com a força de um poder irresistível: “Rugiu o leão, quem não temerá?” (Am 3.8a.) Dessa religiosidade não-oficial, vem o profeta ilegal, desautorizado pelos círculos de poder, mas irresistivelmente autorizado pelo próprio Javé: “Falou o Senhor, quem não profetizará?” (Am 3.8b.)
*Trecho retirado do livro Um jumentinho na avenida – a missão da igreja e as cidades, de Marcos Monteiro (p. 96).
Imagem: freeimages.com/photo/cowboys-in-the-dark-1240194