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Conselho Editorial Jovem

Pedro Dulci tem 29 anos, é casado com Carolinne e mora em Goiânia, GO. Além de pastor, é doutorando em filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Ele tem compartilhado em seus textos e palestras sobre a importância da fé pública, ou seja, uma fé que não se restringe ao foro íntimo da piedade, e sobre a relação do cristão com a política.

O que te motivou a estudar temas como teologia pública e filosofia política?

Minha primeira leitura filosófica, ainda na primeira série do Ensino Médio foi O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Nunca mais parei desde então. Tive professores bastante engajados em sala de aula para despertar um senso de responsabilidade pelo bem público, mas foi, principalmente, na faculdade de filosofia que eu descobrir a teologia pública e a filosofia política como meus maiores interesses da vida. Em meio a tantas matérias muito abstratas, eu tinha sede de entender e levar para a prática tudo o que eu estava aprendendo. E a análise filosófica da nossa experiência política fornecia exatamente o que eu estava procurando: uma maneira de não só viver na esfera pública, como também de pensar o que se estava vivenciando.

Como jovem cristão, qual é a maior dificuldade que você enfrenta na hora de exercer uma fé pública?

Exatamente o fato de relacionar minha fé cristã com os conteúdos e práticas públicas que eu estava exposto. Passei todos os primeiros seis anos da graduação e do mestrado tentando sintetizar Jesus com Michel Foucault e, só há poucos anos (no doutorado) eu percebi que se tratava de uma esquizofrenia intelectual muito grave. Apesar de grave, é a mais comum. O maior desafio que qualquer cristão tem na hora de pensar e colocar em prática as dimensões públicas de sua fé é, justamente, fazer isso sem abrir mão de seus compromissos bíblicos e teológicos. A igreja evangélica brasileira cresce, mas não colabora na transformação pública do país porque ela não tem uma visão completa e elaborada de como Cristo está interessado pela política, economia, história, arte, ciência e assim por diante. Muitos irmãos ainda vivem em dois mundos: a esfera sagrada (do templo, do domingo, do culto e da religião) e a esfera profana (da segunda-feira, do trabalho, da ciência, da arte e da política). Essa foi minha principal dificuldade e creio que é a da maioria dos meus irmãos.

Para você, o que mais precisa mudar na forma como cristãos lidam com política hoje?

Enquanto não nos esforçarmos muito em conhecer e começarmos a assimilar a grande tradição teológica que soube articular a fé cristã na esfera pública, continuaremos produzindo cristãos dualistas. Para a grande maioria dos membros das igrejas brasileiras é absolutamente desconhecido o fato de que no século V d. C. Agostinho escreveu uma volumosa obra sobre política chamada Cidade de Deus. De que Calvino no século XVI d.C. exerceu imensa influência pública em Genebra, mesmo não sendo um cidadão daquela cidade-estado. Ou ainda que Abraham Kuyper fundou o primeiro partido democrático da modernidade, dois jornais, uma universidade que existe até hoje e que foi primeiro ministro da Holanda. Enquanto a vida e a obra de Herman Dooyeweerd, Desmond Mpilo Tutu, Dietrich Bonhoeffer, Francis Schaeffer, Hans Rookmaaker, Elaine Storkey, Egbert Schuurman, Bob Goudzward, Nicholas Wolterstorff ou Miroslav Volf  forem desconhecidas, nossas chances de repetir os erros da Europa e dos Estados Unidos da América são grandes. Existe um depósito imenso de testemunhos políticos radicalmente ortodoxos e de contribuições para o bem público memoráveis. Enquanto a igreja evangélica brasileira continua desconsiderando essa tradição e, ainda assim, enviar seus representantes como candidatos a deputados e senadores, ou tentar criar escolas e universidades confessionais, estaremos fadados apenas a arranhar a superfície de uma presença fiel na sociedade.

Há algum ponto nessa relação dos cristãos com a política que mereça destaque positivo?

A igreja evangélica brasileira contraria as tendências mais típicas (e clichês) dentre as posturas políticas contemporâneas.  Ao invés de sustentar aquele discurso de tolerância “água com açúcar” (que não se engaja realmente em desenvolver uma compressão pluralista de confissões na esfera pública) a igreja evangélica tem claramente sua responsabilidade de não só dialogar, mas também evangelizar pessoas de outras confissões. Isso a faz muito mais capaz de colocar pautas políticas claras, de se posicionar contra ou a favor de episódios pontuais da política e a mostrar-se como uma alternativa (ainda que não dominante) real no cenário público. As igrejas, movimentos sociais e iniciativas públicas cristãs que se mantêm muito reféns de um pacote ideológico (seja ele mais conservador ou progressista) tende a ficar calada diante de questões pontuais e situações políticas específicas – justamente porque sua lealdade deixou de ser às ordenanças de Cristo às esferas públicas, e passou a ser às coerências político-partidárias.

Como está o envolvimento de jovens cristãos hoje em dia na política? Por que a juventude cristã deve se interessar pelo assunto?

É difícil situar politicamente um universal tão amplo como os “jovens cristãos”. Entretanto, dados as tendências que conseguimos identificar na própria igreja, como em suas lideranças mais destacadas, fica mais fácil dizer que: por um lado, existe um espectro dominante dos membros da igreja que simplesmente se desinteressa pela política. Vista como um dos maiores exemplos do âmbito “secular”, denominações inteiras acreditam que não existe proveito em envolver-se com a política – principalmente em um país que o único termo associado a essa esfera é “corrupção”. “Cristo contra a política” talvez seja o modelo dominante na relação do jovem com a esfera pública. Por outro lado, como uma consequência daquele desconhecimento da tradição cristã que manteve-se ortodoxa em sua presença pública, muitos jovens cristãos acabam encontrando seu envolvimento político na assimilação acrítica de pacotes ideológicos não-cristãos. Sejam aqueles que conseguem compatibilizar totalmente as pautas políticas de uma abordagem conservadora, sejam aqueles que buscam inspiração na radicalidade das abordagens progressistas, o que vemos muitas vezes é uma tentativa de sintetização de fé cristã e ideologia política. Falta a igreja evangélica alternativas verdadeiras de uma presença fiel na esfera pública. Cada um dos nossos jovens deveria, não apenas se interessar, mas estar desesperados em buscar tais alternativas, pois a vitalidade de seu testemunho como discípulo de Cristo depende disso. Não fomos chamados para viver uma fé intimista e que se recolhe ao “foro íntimo” da piedade. Antes o contrário: Jesus ascendeu várias candeias para que fossem colocadas em lugares apropriados de iluminação e benefício coletivo. Enquanto não percebermos isso, continuaremos vivendo uma experiência cristã partida, dualizada e refém da sabedoria do mundo.

Há boas iniciativas, movimentos e redes cristãs sobre política das quais os jovens podem fazer parte?

Minha concepção de “ação política” é mais tradicional e, por isso, bem ampla. Então, eu acho que um cristão está trabalhando para o bem público não só quando ele vota, se filia a um partido ou vai a uma manifestação de rua. Por isso, eu recomendaria várias iniciativas de bem público cristão: a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²) para os que estão trabalhando na esfera da pesquisa e vida universitária; quem tem interesse no terceiro setor e na ação afirmativa mais contundente precisa conhecer o CADI Brasil e a Visão Mundial; todos os cristãos juristas ou que são servidores públicos em âmbitos relacionados podem desfrutar do incrível trabalho que a Anajure está fazendo; educadores cristãos e pedagogos devem conhecer e contribuir com a extensão brasileira da ACSI; artistas cristãos e apreciadores em níveis mais refinados da arte tem, hoje em dia, no Coletivo Tangente uma alternativa de articulação cristã de conteúdo e relacionamentos abençoadores na área estética; eu não poderia me esquecer do Movimento Mosaico que há alguns anos tem lutado pela unidade da Igreja de Cristo em níveis bem diferentes de uma associação de igrejas, fraternidade de teólogos ou afins – insistindo bastante nas relações abençoadoras de líderes de tradições diferentes. Além disso, temos o L’Abri Brasil, o Lecionário.com; o Centro Cristão de Estudos em Brasília; o CTPI; Enfim, o Brasil conta com inúmeras iniciativas pontuais, circunscritas a esferas específicas da sociedade, mas que tem força suficiente para tornar os habitantes do nosso admirável mundo novo indesculpáveis.

Você acha possível um cristão sincero se envolver com a política partidária sem “sujar as mãos”?

Com certeza. Temos bons motivos teológicos para isso – de José a Daniel, a Bíblia apresenta vários “políticos profissionais” usados por Deus para o bem público não só de Israel, mas de todas as nações. Também temos bons motivos históricos para esse envolvimento. O trabalho de protagonismo cristão na política é testemunhado em vários momentos da história e em vários lugares do mundo – da influência indireta de João Calvino, passando pela ação direta de Abraham Kuyper e chegando até a resistência declarada de Dietrich Bonhoeffer, temos muitos “heróis da fé pública” para nos inspirarmos.  Por fim, não podemos nos esquecer dos nossos próprios exemplos, o qual sempre mais me encheu os olhos, o saudoso Dom Robinson Cavalcante – que transitou muito bem em seu papel de liderança eclesiástica e política, fazendo de seus parâmetros teológicos ortodoxos o crivo para julgar o seu ensino político na UFPB. Precisamos urgentemente de agentes políticos cristãos que tenham essa postura de se satisfazerem com a grande tradição cristã para que não se sintam tentados a “sujar as mãos” com os pacotes ideológicos idólatras.

O que é preciso fazer para se criar uma corrente política (ideias, militância, lideranças, partido, etc.) que represente melhor o cristianismo protestante?

Em primeiro lugar, o brasileiro precisa abrir mão de seu esnobismo cronológico. É assustador o fato de que a maioria dos que se envolvem com prática política organizada simplesmente desconhecem a tradição cristã sobre essa prática. O primeiro, e mais fundamental passo a ser dado, é reivindicar para si a grande herança de teologia pública. Isso significa não só conhecer o legado histórico de vários teólogos e agentes públicos que já mencionamos, como também tomar conhecimento do que está sendo feito hoje por outros irmãos fora do nosso contexto. Esse tipo de conhecimento significará, com certeza, entrar em contato com pessoas que tem ênfases político-partidárias diferentes das nossas – e eu não vejo problema nisso. O que é inaceitável é um cristão que já está com sua posição política consolidada (seja ela qual for) e se baseia apenas em figuras públicas e referências teóricas não cristãs. Uma prática política cristã não pode ser alimentada só por Foucault ou von Misses. Ela também precisa passar pelo crivo das melhores práticas confessionais – mesmo que isso significa dialogarmos com irmãos de preferências políticas distintas. Somente assim conseguiremos desenvolver uma prática política que “melhor represente o cristianismo protestante”. Caso contrário, estaremos apenas engrossando as fileiras de plataformas políticas que não têm compromisso com a Igreja de Cristo e a esperança típica da fé cristã.

Em segundo lugar, a “militância” cristã também tem uma forma específica. Recentemente recebi a divulgação de um congresso de filosofia política que tinha como título “Foucault, filósofo e militante”. O que está no núcleo dessa ideia é que não só as teorias foucaultianas sobre as relações de poder no interior de uma sociedade tem valor, como também é necessário uma “militância” específica para difundir e fazer circular essas ideias. Isso me parece muito estranho, principalmente para a igreja. Quando precisamos fazer pressão militante para que uma ideia seja percebida como relevante para o bem pública, estamos andando na estreita linha de atribuir o valor dessa ideia apenas pela mobilização ao seu entorno – e não na capacidade que ela tem de realmente gerar bem comum. Essa não é, nem de longe, a prática de “militância” que “melhor represente o cristianismo protestante”. Ao contrário disso, precisamos abrir mão desse uso à palavra “militância” e nos lembrarmos do uso que os teólogos cristãos fazem para falar da “igreja militante”. Em qualquer manual de sistematização da fé cristã, poderemos ler que a Igreja de Cristo é militante, padecente e triunfante. Ou seja, realmente existe um caráter de milícia, de luta e de ativismo para os membros da igreja de Cristo, mas ela não pode nunca ser conduzida segundos os parâmetros políticos da militância – seja o ativismo progressista ou o lobby mais conservador. A Igreja militante é ativa no bem comum segundo a esperança da Nova Jerusalém e não dos messianismo políticos construídos por mãos humanas. Militamos pelo reino de Deus que, em toda a escritura, tem uma trajetória de finalidade (teleologia) que ultrapassar nossas capacidades de fazer, com nossas próprias mãos, a implementação do Reino de Deus. A temporalidade que a Igreja de Jesus vive (a escatologia) entre o “já” e o “ainda não”, ao mesmo tempo, nos livra dos triunfalismo utópicos e do quietismo social. Nós militamos porque “já” está, pela fé, disponível a cada discípulo de Jesus dinâmicas da nova vida em Cristo; mas “ainda não” nos satisfazemos nem nos enganamos com nenhuma conquista que possamos ter alcançado, por que a Nova Jerusalém tem fundamentos que não foram estabelecidos por nós, e tem como arquiteto (quem planejou) e construtor (que executa) o Deus e pai de nosso Senhor Jesus (Hb 11.10). Nossa militância precisa ser governada, simultaneamente, por essas tensões típicas da teologia cristã.

Quais tipos de conteúdo podem ajudar quem quer saber mais sobre a relação entre cristianismo e política? 

Se o leitor estiver disposto a ir às raízes, precisa começar com A Cidade de Deus, de Agostinho. Mas depois pode percorrer os escritos de Calvino (e sobre ele) nas áreas de cultura, política e economia. Tudo sobre Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd também coopera para a formação teológico-política dos cristãos. Após isso, temos uma infinidade de cristãos contemporâneas refletindo e trabalhando para uma expressão cristã ortodoxa de justiça pública: Allan Storkey, Bob Goudzwaard, David Koyzis, Egbert Schuurman, Elaine Storkey, Guilherme de Carvalho, Igor Miguel, Jonathan Chaplin, James K. A. Smith, James Skillen, John Milbank, Leonardo Ramos, Miroslav Volf, Nicholas Wolterstorff, Oliver O’Donovan, Peter Leithart, Renée van Riessen, Rodolfo Carlos Amorim, Robinson Cavalcante, Stanley Hauerwas, Vincent Bacote, e muitos outros associados a cada um deles. Nessa lista, o que os une é a fidelidade à cosmovisão cristã para construir uma prática de reflexão política cristã – e não uma preferência política ou denominacional, uma vez que temos vários espectros políticos representados aqui.

Leia mais
» Fé Cristã e Ação Política: a relevância pública da espiritualidade cristã

  1. Grata, pela excelente contribuição e inspiração para construir um conhecimento.
    Estou realmente, muito feliz!
    Bendigo a Deus, por sua vida, família e propósito.

  2. Para contribuir com as questões aqui muito bem abordadas e esclarecidas, recomendo também os escritos do Maurício Cunha, entre ele O Reino de Deus e a Transformação Social. Ao falar na missão na íntegra, remete-nos ao envolvimento político social da igreja rompendo a visão dualista do santo/ profano, mundo/igreja.

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