“Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida?” (Mateus 6:27)

 

Foto: Israel Sundseth. Fonte: UnsplashQuando um Focus preto cruzou seu caminho, não resistiu à sedução da buzina. Seus braços paralisaram, tensos, enquanto o adorável ruído ecoava, deixando clara sua insatisfação. Quando a mão voltou ao volante, pensou raivoso na vida que provavelmente tinha o “cara do Focus”: uma casa bonita em condomínio, com piscina, tevê na cozinha e na sala, com pacote pay-per-view dos jogos de futebol, filhos na melhor escola da cidade, um cargo gerencial em uma grande empresa…

Estacionou o Celta duas portas em uma vaga apertada, abriu a porta, cauteloso, se espremeu entre os carros, sujando a lateral de sua camisa. Foi mal fazer ranger a cadeira do escritório e viu o chefe avançar pelos corredores, driblando os estagiários, mirando-o com olhos de predador. Lembrou-se imediatamente de que o relatório que prometera para o dia anterior ainda não havia sido redigido e preparou sua armadura de desculpas.

Durante o almoço, via os gols da rodada enquanto esquentava o frango de ontem. Amaldiçoou o zagueiro que não cortara o ataque, o goleiro que saíra na hora errada e o capitão do time que errara um pênalti.

No caminho para casa, pegou o trânsito das seis somado a uma obra emergencial na marginal. Suportava com torturante paciência a demora até que começou a Voz do Brasil. Desligou imediatamente o rádio e lançou mão na companheira buzina, cuja música sempre o acalmava.

Em casa, viu a esposa e os filhos rindo na cozinha. Não imaginavam o que era ter uma vida de trabalhador como a dele. Passou de cara fechada, murmurou algumas palavras e cobrou os filhos por terem deixado os sapatos na sala. Enfiou-se nos corredores, tirando a gravata. Fechou a porta do quarto e já ia se jogando à cama quando viu, ao lado da poltrona, uma Bíblia. Ajoelhou-se, tomou um tempo de silêncio e orou. Sonhou ouvir uma voz distante que lhe dizia serem seus últimos momentos de vida. Vinte e quatro horas, confirmava.

A voz não lhe saía da cabeça. Quando acordou no dia seguinte e percebeu que a camisa do dia estava amassada, ousou zangar-se, mas lembrou: “sou passante” e estranhamente a raiva parecia-lhe inútil. A tampa do pote de café também não ocupava seu lugar de direito – e dever. Uma voz lhe dizia para atirar o pote na parede, mas a outra lhe impediu, sussurrando: “sou passante”.

Quando o “cara do Focus” parou na sua frente no semáforo, pensou em tirar satisfação. Mas, as palavras repetiam-se, insistentemente: “sou passante, sou passante”. E martelavam seu coração hora a hora, minuto a minuto, o dia inteiro: “sou passante… passante… pass… paz…”. Não se importava mais com os gritos do chefe, ou com os gols perdidos de um atacante bem pago. O trânsito lhe parecia mais calmo e até a Voz do Brasil soava diferente.

Chegando em casa, ouviu as risadas da família e seu coração se encheu de risos. Notou os sapatos na sala, mas foi direto à cozinha. Abraçou-lhes, beijou-lhes. Quis saber do seu dia, ouvir as piadas e dar conselhos. Enquanto observava cada traço da fisionomia deles, agradecia de olhos abertos os últimos instantes que lhe foram concedidos. Renovou-lhes os beijos, desejou boa noite e foi para o quarto. Compreendeu: sempre fora passante.

 

  • Levi Agreste, 24 anos, graduado em Letras pela Unicamp, leciona em três escolas da região metropolitana de Campinas, faz parte da coordenação da ONG Soprar e escreve no blog umanovaviagem.
  1. Sou passante, tenho a paz de Cristo e o conforto em saber que as provações daqui em nada se compara a glória que há de vir. Lindo texto! Obrigada por me lembrar que não sou daqui. Que Deus abençoe!

  2. Precisamos sempre ter em mente que estamos aqui de passagem e que “nosso leve e momentâneo tempo de tribulação terá eterno peso de glória”! Que possamos nos alimentar mais da palavra d’Ele.

  3. O seu texto me fez refletir, obrigado por se dispor a este trabalho; o meu ponto de vista muito se atentou agora a olhar cada dia como se fosse o último, pois eu sou passante por aqui certo?! E também me atentei em como devo me dispor a sentir verdadeiramente o SERVIR A DEUS EM ESPIRITO E EM VERDADE (e não apenar servir por servir…), em todo segundo, pois além de me deleitar em sentir a presença do Deus Vivo e ter o laço da comunhão cada vez mais apertado, eu não sei se daqui a 1 minuto estarei na Glória…

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