O que fazemos quando o diálogo com o secularismo aparentemente acaba (ou, ao menos, se esgota temporariamente)?

Certamente há limites para o diálogo. Andei pensando nisso diante dos debates atuais sobre o “estado laico”. Há muito fundamentalismo religioso para o qual “pluralismo” é um palavrão. Mas de modo geral o campo religioso brasileiro me parece extremamente plural e tolerante com a divergência. A sensação que muitos cristãos tem e expressam em conversas privadas (ou as não tão privadas assim na internet) é a de que a militância secularista é o fenômeno religioso mais agressivo dos últimos tempos (veja um exemplo interessante AQUI). O clima mudou, definitivamente.

Eu me lembro de quando, ainda criança, era difícil confessar-se evangélico na escola devido ao preconceito geral, fosse ele romanista ou simplesmente secular. Era preciso coragem entre os adolescentes e jovens, lá no começo da década de oitenta. Depois tivemos um tempo de “calmaria”, por uns 20 anos, a ponto de a cultura “gospel” se tornar um fenômeno pop, ou quase. Minhas filhas quase não tiveram dificuldades para declarar sua fé entre os pares. Mas as coisas estão mudando, e vão mudar ainda mais; há uma crescente antipatia que não se dirige apenas às formas moral e intelectualmente inferiores do evangelismo brasileiro (aquelas anti-intelectuais, caudilhistas e corporativistas) mas contra tudo o que poderíamos considerar o “Cristianismo histórico”: o Credo apostólico (não só na forma, mas no conteúdo), a missionalidade, a recusa da ideologização, a ética da vida (pela heteronormatividade, contra aborto, eutanásia, infanticídio qualificado, etc).

Abro Parêntesis: talvez isso seja bom; talvez ajude as igrejas Cristãs a se encontrarem e cessarem essa mendicância ridícula pelas graças da modernidade tardia. Mas certamente isso não é tudo; nada justificará uma retirada da fé diante dos desafios do mundo atual. A comunicação é necessária; é necessário explicar os porquês da posição Cristã, e eventualmente revisar essa posição – quando ela se descobrir não tão Cristã assim – ou, em muitos casos, alterar o modo de relacioná-la com a ordem atual. Fecho Parêntesis.

Pois então; não é difícil conversar com muitos secularistas? Quem tenta sabe bem. Em boa parte do tempo eles consideram inadmissível que em pleno século XXI alguém ainda queira misturar religião com política. Mas não é que eles se oponham apenas à mistura; eles se opõe à discussão, e isso é significativo. Especialmente diante do fato, que tenho testemunhado, de que em geral eles desconhecem qualquer diferença entre “laicismo” e “laicidade”, e ignoram as origens religiosas da ideia de secularidade (sim, há uma “secularidade cristã”) da liberdade de consciência e da moderna separação entre igreja e estado.

Em tempo: porque laicismo e laicidade são posições diferentes? “Laicismo” é um esforço pela privatização do religioso e sua exclusão da vida pública, consistindo da articulação política ideológica de um projeto espiritual, o secularismo. Já a “Laicidade” é uma categoria política, designando a separação necessária entre a Igreja e o Estado, assumindo o religioso como parte da esfera social. A noção de laicidade é em si mesma um desdobramento teológico político do protestantismo, tendo, assim, a própria religião como uma de suas matrizes (daí o absurdo dos usos antirreligiosos da ideia. Veja mais AQUI).

Como observou noutro dia o amigo Igor Miguel,

a dualidade (não-dualismo) entre Estado e Igreja é de origem protestante. O termo “secular” é de origem religiosa. A ideia de “soberania” do Estado é de origem cristã. A ideia de “crédito” de mercado, tem origem na ética credal cristã-calvinista (Weber). A declaração universal dos direitos humanos tem raízes na cultura judaico-cristã (basta dar uma olhada em “Justice: Rights and Wrongs” de Nicholas Wolterstorff) então, por favor, pense bem sobre o que você chama de “Estado Laico”. Laicidade não significa uma dimensão isenta de influências religiosas em hipótese alguma.

Mas acima de tudo, falta frequentemente aquela compreensão indispensável, em um mundo plural, da natureza inerentemente credal do ser humano. Pois o secularismo é um projeto histórico e espiritual também, herdeiro de categorias Cristãs, eivado de crenças sobre homem e mundo estruturalmente similares às crenças religiosas tradicionais, e não deveria se esconder atrás do discurso de laicidade para se “naturalizar” e pilotar sozinho a mudança social (veja um artigo não-acadêmico sobre “estados doxásticos funcionalmente religiosos” AQUI). Laicidade sem pluralismo não é uma forma de liderança, mas de dominação cultural. Daí que “Estado Laico” tenha se tornado um meme, um rótulo e uma cunha empregada por alguns com a única finalidade da violência cultural, para isolar certos discursos. E o sinal mais claro disso é a indisposição de discutir o significado da expressão.

Mas… isso não nos desculpa. A despeito das tentações de entrar no joguinho do desprezo, da ridicularização e do isolamento, a tarefa Cristã ainda é, inerentemente, uma tarefa de comunicação; temos boas novas para contar, e razões da fé para apresentar. Se a comunicação for cortada, que o seja do outro lado, não do nosso. Cito aqui uma reflexão interessante do filósofo inglês Roger Scruton (extraída de um contexto completamente diferente mas ainda assim útil):

“Quando estou interessado em alguém como uma pessoa, então suas próprias concepções, suas razões para a ação e suas declarações de decisão tem proeminente importância para mim. Ao buscar mudar sua conduta procuro, em primeiro lugar, mudar isso, e aceito que ela tenha a razão ao seu lado. Se não estou interessado nela como pessoa, no entanto, e se, para mim, ela é meramente um objeto humano que, para o bem ou para o mal, surgiu em meu caminho, então não deverei dar nenhuma consideração às suas razões e decisões. Se busco mudar seu comportamento, eu irei (se sou racional) tomar o curso mais eficiente. Por exemplo, se uma droga é mais eficiente que o cansativo processo de persuasão, usarei uma droga. Tudo depende da base disponível para a predição. Colocando na linguagem tornada famosa por Kant: Agora eu a trato como um meio, e não como um fim. Pois seus fins e suas razões não são mais soberanos ao ditar as formas com que atuo sobre ela. Estou alienado dela enquanto agente racional, e não me importa muito se ela está alienada de mim.”

Roger Scruton, Sexual Desire: a philosophical investigation. Continuum, p. 53.

É claro que em certas situações não há outra coisa a fazer; o criminoso, por exemplo, não será esquecido, mas não poderá ser prioritário uma vez que de si mesmo já tratou sua vítima como meio, e não como um fim. Mas até mesmo quando o criminoso é preso e julgado, contra a sua vontade, sua dignidade humana é vindicada e seu interesse é buscado, na exata medida em que é tratado como um ser humano racional, imputável e sujeito à persuasão legal. Ou seja: medidas são tomadas para que o criminoso não trate ninguém como fim, e ao mesmo tempo para que ele seja tratado como um fim.

Em nosso caso: é fato que muitos secularistas recorrem ao discurso sobre “Estado Laico” de forma desonesta ou, pelo menos, pouco informada. Não podemos nos tornar presas desse tipo de estratégia, mas tampouco podemos reproduzi-la. Se o cristianismo é tratado como um “obstáculo” e o Cristão, com suas crenças, como um “paciente” sem direitos racionais, é preciso atacar a raiz do problema, nos erros do secularismo. E se secularistas se comportarem de forma “criminosa” no tocante à ética da comunicação, só podemos contornar suas intenções e bloquear sua ação se o fizermos ainda assim em seu interesse, obrigando-os a enfrentar os custos de sua posição. Esses custos podem envolver derrotas políticas, denúncias públicas, processos, em casos abusivos. Mas ainda assim as demandas reais dessas pessoas precisam ser encaradas com interesse ético, e as respostas a elas não podem ser articuladas desonestamente.

Isso é muito importante: até mesmo no confronto de posições anticristãs, precisamos ver os oponentes como seres humanos, responsáveis diante de si mesmos e de Deus. Nunca devemos considerá-los indignos ou incompetentes politicamente, mesmo que eles se comportem como tais. Se o diálogo acaba, precisamos ao menos manter de pé as condições para a sua reabertura.