Em um mundo no qual o mote “viver sem regras” vende filmes, livros de auto ajuda e produtos de alta tecnologia, a ideia de uma “regra de fé” não soa muito bem. Até mesmo em contextos religiosos o discurso sobre uma espiritualidade “sem regras” dá uma sensação de liberdade, de frescor, de algo orgânico e vital.

Mas a vida tem regras; está cheia delas. De leis matemáticas à legislação de trânsito, da biologia humana, que insiste em seguir as mesmas leis sem nenhum interesse especial pelos anseios libertários da cultura hipermoderna à linguagem de programação oculta por trás de uma tela retina de alta tecnologia na qual até uma criança escreve com o dedo. Alguns desses processos são bem mecânicos e intencionais; outros são orgânicos e automáticos; mas as regras estão lá, e não podem ser ignoradas sem que os processos que dela dependem sejam destruídos. E no campo da fé não é diferente.

 

Uma Regra para a Fé

O ato de crer envolve regras; ele sempre nos coloca, por exemplo, em uma relação de dependência emocional em relação àquilo no que cremos, de modo que quando as expectativas de confiança são frustradas, a sensação de desamparo é profunda. Sempre envolve também um conteúdo noético, que pode ser traduzido em proposições e analisado racionalmente. Outro elemento indispensável da fé é a submissão: aquele que acredita na ciência, sem prejuízo do questionamento racional e do juízo investigativo, deposita confiança em revistas acadêmicas peer-reviewed, nos modelos e tradições dominantes em um campo de pesquisa, na autoridade dos grandes nomes do campo e, é claro, submete-se ao consenso de uma comunidade científica.

As Escrituras Cristãs são a “regra de fé e prática” para os Cristãos protestantes porque literalmente regulam o modo como a nossa confiança em Deus deve se expressar. Os cristãos entendem que a revelação de Deus deve governar o nosso modo de se aproximar dele por uma razão óbvia: nossa confiança em qualquer pessoa (e isso inclui a pessoa de Deus) se fundamenta naquilo que conhecemos sobre essa pessoa, e na palavra que ela nos dá. A confiança é uma resposta que ocorre dentro de um ato de comunicação pessoal, no qual o que ouvimos do outro passa a representar de forma suficiente tudo aquilo que não sabemos mas não temos como verificar. A face e a voz do outro se tornam para nós a evidência suficiente do que precisamos saber.

“As Escrituras Cristãs são a “regra de fé e prática” para os Cristãos protestantes porque literalmente regulam o modo como a nossa confiança em Deus deve se expressar”

 

Jesus e a Bíblia

A prática de considerar as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento como a própria “Palavra de Deus” é muito antiga e nos foi dada junto com a fé Cristã. Há uma abundância de exemplos de autores bíblicos tratando textos canônicos como a palavra de Deus, sendo que os mais importantes nos foram dados pelo próprio Senhor Jesus Cristo. Para citar um exemplo: em Mt 19.5 Jesus cita Gn 2.24 como se fossem as palavras que o próprio Criador disse, muito embora, em Gênesis, elas pudessem ser interpretadas como palavras do redator humano. Na verdade Jesus estava reproduzindo uma crença corrente no judaísmo da época de que os textos canonizados (reconhecidos como Escritura inspirada por Deus) deveriam ser considerados a própria Palavra de Deus em linguagem humana.

Jesus nada fez para “corrigir” essa noção – como fez sem titubear com muitas outras ideias religiosas da época. Pelo contrário, ele a empregou amplamente e a ensinou aos seus discípulos, tornando inviável a sugestão de que ele havia meramente se “acomodado” às concepções da época. Ele afirmava que a Escritura “não pode falhar” (João 10.35) e, a despeito da sua pluralidade literária e histórica, tratava o seu testemunho de forma orgânica. Depois da ressurreição encontramos Jesus se encontrando com dois discípulos no caminho de Emaús e ensinando que tudo o que lhe aconteceu havia sido predito “na Lei, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24.44,45).

Para quem não sabe, essa expressão tripla era um modo de referir-se à totalidade dos textos do antigo testamento: a “lei” era o pentateuco; os “profetas”, os textos históricos que tratam dos períodos do ministério profético em Israel e em Judá, e a totalidade dos profetas “maiores” e “menores”; e os “Salmos” eram a senha para o terceiro bloco, também chamado de “escritos”, que incluía os Salmos, textos de sabedoria, alguns documentos históricos tardios e o profeta Daniel.

Ou seja: Jesus toma esses blocos de textos sagrados que compunham o “cânon” (do grego kanon, “medida” e, eventualmente, “regra”) mais aceito na época, colecionado sabe-se lá como e por quem (na verdade, temos uma boa ideia de como isso aconteceu!) e os trata organicamente, assumindo que eles apresentam um testemunho coerente a respeito dele mesmo, o Messias divino. E que esse tratamento não consistia de mera repetição servil da tradição religiosa, fica evidente pelo fato de que essa compreensão orgânica do Antigo Testamento só foi alcançada pelos discípulos depois da ressurreição. O Cristo ressurreto é quem abriu as Escrituras para os seus discípulos.

E os apóstolos realmente herdaram essa forma de ler a Bíblia, não apenas assumindo que o cânon fora de algum modo produzido por Deus para dar testemunho de Jesus, e que suas palavras seriam as palavras de Deus, mas também que seu tema central seria o próprio Jesus Cristo. Leia-se os Evangelhos, o livro dos Atos dos apóstolos, e suas cartas: essa atitude para com as Escrituras está lá, claramente visível.

 

E o Novo Testamento?

Depois de apontar esse fato – que o Antigo Testamento é a palavra de Deus, para nós, porque era a Palavra de Deus para Jesus Cristo – é comum ouvirmos perguntas sobre o Novo Testamento. Como fica a sua autoridade, já que Jesus validou apenas a Bíblia de sua época?

Para começar, precisamos ter em mente que o Antigo Testamento não se tornou Escritura Sagrada apenas depois de Jesus validá-lo; a Bíblia já era Bíblia quando Jesus a empregou. Não seria muito inteligente, portanto, ignorar o modo como Deus produziu a primeira parte do cânon, ao considerar o que pensamos sobre a segunda parte!

Sabemos que Deus usou profetas e escribas para receber a revelação e colocá-la na forma de livros. Além disso, usou a própria comunidade de fé para colecionar os livros sagrados, reconhecê-los, separando-os de textos espúrios, e transmiti-los. Jesus não validou apenas os textos, mas esse processo longo, comunitário e assistemático. A implicação teológica é clara: foi o próprio Deus quem controlou providencialmente esse processo.

Deus usou a própria comunidade de fé para colecionar os livros sagrados, reconhecê-los, separando-os de textos espúrios, e transmiti-los. Jesus não validou apenas os textos, mas esse processo longo, comunitário e assistemático.

Ocorre que a formação do Novo Testamento segue o mesmo padrão. O período do Novo Testamento caracteriza-se por ser um novo momento revelatório, com muitos profetas e apóstolos em intensa atividade. Os textos que eles produziram foram providencialmente colecionados, transmitidos e reconhecidos pela Igreja entre o século I e o século III. Em termos formais o processo foi semelhante. Se alguém acredita que Deus usou esse processo longo e assistemático para formar a primeira parte da Bíblia, não há porque recusá-lo no tocante à segunda.

Em segundo lugar, não podemos nos esquecer do caráter apostólico da Igreja primitiva. Jesus escolheu apóstolos e profetas porque ele realmente atuaria e falaria através deles, e eles atuariam e falariam em nome de Jesus, como se ele próprio estivesse presente. É claro então, que Jesus também validou o Novo Testamento; só que, dessa fez, ao invés de validá-lo depois, validou-o antes de sua redação, ao autorizar seus representantes e garantir-lhes a assistência especial do Espírito de Deus (Jo 16.13-15; Ef 3.1-6; 1Co 14.37). Ora, tanto a evidência interna dos textos neotestamentários quanto a evidência externa da igreja primitiva mostram que cada um dos documentos do Novo Testamento – os Evangelhos, os Atos, as Cartas e o Apocalipse – é produto da atividade evangelística, pedagógica e revelatória dos apóstolos e profetas de Jesus Cristo. Por meio deles, Jesus levou adiante a sua obra.

Mas acima de tudo está o fato de todos esses textos neotestamentários terem surgido sob o impacto do mais alto evento revelatório da história da salvação, a manifestação do próprio Verbo de Deus em carne, e terem no testemunho desse evento a sua mensagem central (Hb 1.1-4). É isso que lhes dá o caráter de Escritura: assim como Jesus mostrou que o Antigo Testamento dava testemunho dele, cada um desses textos do Novo Testamento dá testemunho de Jesus Cristo. O fato de todos estarem plenos do Evangelho de Jesus é o que os coloca lado a lado com as Escrituras judaicas. E assim temos uma obra completa: o Antigo Testamento anuncia a Jesus como promessa, e o Novo Testamento o anuncia como cumprimento. Mas ambos tem Jesus Cristo como o seu fundamento e sua mensagem central.

“…acima de tudo está o fato de todos esses textos neotestamentários terem surgido sob o impacto do mais alto evento revelatório da história da salvação…”

 

O Tema Central e os Limites do Cânon

É por isso também que dizemos que o cânon das Escrituras está “fechado”. Não são poucos os Cristãos que me perguntam se Deus não teria mais coisas para revelar, e porque o cânon foi fechado com os livros atuais. Isso não seria uma limitação da liberdade do Espírito?

Mas a compreensão da fonte da autoridade bíblica dá também a solução desse problema. Deus não vai revelar “mais coisas”, e provavelmente não teremos mais livros inspirados para serem postos no cânon, porque não há nada mais para ser revelado, qualitativamente falando. Pois a revelação não é feita de bites de informação. A revelação é algo qualitativamente supremo e definitivo; se o próprio Verbo de Deus se manifestou, e Deus, que antes usou profetas, agora nos falou pelo seu Filho (Hb 1.1-4), que outra revelação pode haver? O que pode “complementar” o evangelho da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus, ensinado por ele próprio e por seus apóstolos?

O cânon não está fechado porque Deus reteve novas informações, mas porque nenhuma informação jamais será maior do que o conhecimento de Deus o Pai, por meio de Jesus Cristo, o unigênito, no Espírito Santo.

Não há outra revelação depois dessa, a não ser a própria volta do Filho de Deus, a parousia. Não porque Deus queira reter alguma informação, mas porque nenhuma informação jamais será maior do que o conhecimento de Deus o Pai, por meio de Jesus Cristo, o unigênito, no Espírito Santo. Só uma coisa poderá ser “maior” do que isso: o momento de vermos face a face aquele que hoje vemos como por um espelho (1Co 13.10-12); mas mesmo então não será “outra” revelação, e sim a mesma, em toda a sua clareza e extensão, transformando e elevando o significado de todas as outras coisas que pensamos saber e da nossa história, a ponto de nos parecer que éramos crianças, e que jamais soubemos coisa alguma. Mas já temos esse saber hoje, de forma seminal; e é disso que as Escrituras testemunham: a respeito de Jesus, o Filho de Deus, e de nossa adoção por meio dele (Jo 5.39, 46, 47; Lc 24.44-48; At 18.24,28; Rm 1.1-4).

 

Toda a Escritura é Inspirada

As Escrituras não são a palavra de Deus apenas porque foram “eleitas” para tanto e incluídas em um cânon, e nem unicamente porque testificam de Jesus. Fica implícito no fato de Deus ter usado profetas, escribas e apóstolos, e de ele garantir a unidade orgânica do testemunho dos documentos bíblicos, que cada um dos livros da Escritura tem uma gênese especial. Não são livros comuns.

Em 2Tm 3.16 o apóstolo Paulo diz que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a educação na justiça”. Temos aqui dois fatos muito importantes sobre a Bíblia. O primeiro é a expressão “inspirada por Deus”, do grego theopneustia. Temos aqui a ideia de inspiração divina: Deus moveu homens para escrever, “soprou” neles significados divinos, de tal modo que as próprias palavras de Deus foram postas em linguagem humana. Uma ideia semelhante encontra-se em 2Pe 1.21: que as profecias bíblicas foram o resultado de um discurso humano movido pelo Espírito de Deus. Deus, então, causa atos de discurso; ele fala por meio da fala de um ser humano.

Há quem pense que Deus se revelou aos profetas e eles escreveram o que viram por sua própria conta, sem uma assistência divina especial. Contra isso, Pedro nos diz que o seu discurso foi movido pelo Espírito Santo. Mas ainda assim, há quem pense que os profetas e apóstolos falaram sob inspiração divina, mas a Bíblia seria um registro falível e secundário desses discursos. Nada disso faz justiça ao ensino bíblico sobre inspiração, no entanto. Paulo nos diz que não apenas os autores foram inspirados, mas a própria Escritura foi inspirada. A inspiração é uma qualidade do texto, e não apenas dos autores.

Quais textos tem essa qualidade? 1Tm 3.16 nos diz que seria “toda a Escritura”. Essa declaração de Paulo é muito esclarecedora. Ele não diz que “as Escrituras que são inspiradas” são úteis para o ensino, mas que “toda a Escritura é inspirada” e por isso útil para o ensino. O que ocorre é que o termo “Escritura” aqui tem um sentido técnico, equivalente a “Bíblia” ou “textos canônicos”. Paulo está dizendo que todo o texto que estiver no cânon deve ser considerado inspirado e por isso útil. Em outras palavras, ter sido canonizado e incluído no conjunto chamado “Escritura” é um marcador, para nós, de que o texto foi inspirado por Deus. Deus usou a canonização como meio para disponibilizar os textos que ele inspirou.

 

A Formação Cristã

Uma vez que se reconheça o caráter da Escritura como Palavra de Deus, nossa atitude em relação a ela precisa mudar. Tire-a da estante! Leia com cuidado, com frequência, e com vontade de compreender. Não apenas assuma que ela tem algo de essencial para lhe ensinar; ouça-a com reverência e com imaginação, como se fosse a voz do próprio Deus, no instante em que você lê – e na verdade, você descobrirá que ela é exatamente isso. Deus usa a sua Palavra para nos dar sabedoria e nos conduzir em sucesso (Js 1.7-8), para curar as nossas almas e abrir nosso coração para a vontade de Deus (Sl 19.7-11), e para nos educar para a vida no reino de Deus (2Tm 2.15; 3.14-17).

O texto do Sl 19 chama a minha atenção: a palavra do Senhor cura, ilumina o coração, orienta a vida, e alegra o coração (vs 8). Será que o leitor já pensou sobre isso? Que a alegria do Cristão dependa da meditação nas Escrituras? Quantos Cristãos sofrem com a tristeza não exatamente em razão dos dissabores da vida (que estão aí, em abundância), mas porque carecem de recursos para enfrentar esses mesmos dissabores. Será que o leitor já descobriu em sua Bíblia uma fonte de consolo e alegria?

Nada na igreja funciona sem a Bíblia. E se funcionar, já não é mais igreja; é outra coisa.

E quanto a 2Tm 2.15 e 3.16-17? É trágico que tantas igrejas evangélicas desprezem completamente o ensino sistemático e inteligente das Escrituras como estratégia básica de formação Cristã. No entanto ela é necessária não apenas para formar Cristãos, mas também para formar obreiros Cristãos. Assim, nada na igreja funciona sem a Bíblia. E se funcionar, já não é mais igreja; é outra coisa.

Mas de todos os textos, talvez 2Tm 3.15 seja o mais chocante: “as sagradas letras … podem tornar-te sábio para a salvação”. Tenho conversado com muitos líderes cristãos sobre a minha preocupação com o analfabetismo religioso dos cristãos médios, como os tenho encontrado por aí. Cresce a minha sensação de que muitos membros de igreja hoje nada sabem sobre Deus, sobre Jesus, e sobre o Espírito Santo. Antes eu tratava isso como um problema de subnutrição espiritual, ou de falha pedagógica, apenas. Mas trata-se de uma falha missiológica. Pois as Escrituras é que nos tornam sábios para a salvação. Sinto que muitos desses membros de igreja na verdade nem são Cristãos mesmo. E não são Cristãos por culpa do púlpito evangélico, que substituiu a Bíblia por mensagens moralistas ou motivacionais. Reaprender a “regra da fé” é uma questão de vida ou morte para os evangélicos de hoje.

 

Continua…