Judas, meu pobre marido
A mulher duramente atingida pelo suicídio do marido
Depressa ele me deixou viúva e meus filhos, órfãos. Judas foi terrivelmente devorado pela noite eterna, que se prolonga pelos séculos dos séculos numa interminável sucessão.
Sou uma mulher muito sofrida. Tenho mais de 60 anos e moro em Kerioth, uma cidadezinha ao sul da Judeia. Foi aqui que conheci meu marido e nos casamos. Não fosse a consolação das Escrituras e a assistência diária que recebo dos irmãos, eu seria uma mulher estragada para sempre. Passei por golpes muito rudes. O nome de meu marido é bem conhecido: foi ele quem traiu Jesus em troca de trinta moedas de prata. Apesar de tudo, eu o amava. O suicídio dele chocou-me profundamente. Foi horrível vê-lo partido ao meio, com as entranhas derramadas. Se me proponho a recordar certos fatos a respeito de Judas, é para ajudar o leitor a não esbanjar as mais preciosas oportunidades que a Providência nos oferece.
Tome outro o seu encargo
Eu estava ainda em Jerusalém quando Pedro convocou uma assembleia para escolher o substituto de meu marido no Colégio Apostólico. Eu era uma das cento e vinte pessoas presentes a essa reunião. Lembro quando Simão leu parte do Salmo 109 e descobriu ali uma referência profética a Judas: “Os seus dias sejam poucos, e tome outro o seu encargo. Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva, a sua esposa.” Naquele dia Matias preencheu a vaga e juntou-se aos onze apóstolos.
Fico pensando por que Jesus, no início de seu ministério, escolheu Judas para ser um dos doze. Matias e o outro candidato à vaga, José, chamado Barsabás, estavam entre os discípulos quando o Senhor fez a escolha dos doze apóstolos. Jesus amava meu marido. Ele o chamou de amigo mesmo quando Judas se tornou o guia daqueles que o prenderam no Jardim do Getsêmani. Como é possível uma pessoa sair da via certa e enveredar-se por caminhos tortuosos? É o caso do filho mais moço daquela parábola, contada em conexão com as parábolas da ovelha perdida e da dracma perdida: o rapaz abandonou a segurança e a felicidade do lar para viver dissolutamente. Muitos ainda agem assim. Não são poucos os que abandonam o evangelho. Não há explicação, não há lógica. É tudo loucura!
O ponto fraco
Meu marido possuía um calcanhar de Aquiles: era tremendamente vulnerável ao dinheiro. Muitas vezes conversamos francamente sobre o assunto. Quando ele me contou que havia sugerido em público que o bálsamo de nardo puro, com o qual Maria, irmã de Lázaro, ungiu a Jesus, fosse vendido por trezentos denários para socorrer os pobres, fiquei horrorizada com o fingimento dele. Se isso tivesse acontecido, Judas, que carregava a bolsa e fazia as despesas, teria desviado o dinheiro. Eu sabia que ele não era honesto e tirava para si as moedas que se lançavam na bolsa. O que João diz no Evangelho é verdade: meu marido era ladrão.
Foi esse mesmo ponto fraco que levou Judas a procurar os principais sacerdotes para entregar-lhes Jesus, mediante o pagamento de trinta moedas de prata, recebido em confiança. Esse foi o ponto mais alto da ousadia pecaminosa de meu marido. Acredito mesmo que nesse momento Satanás entrou em Judas, como também afirma Lucas em seu Evangelho. Entrou por uma porta perigosamente deixada aberta.
É preciso tomar muito cuidado com o ponto fraco. Ele pode derrubar um homem forte e invulnerável em muitas outras coisas, como aconteceu com o Aquiles da fábula, ferido no calcanhar, a única parte do corpo não protegida pelas águas do rio Estige. Meu marido não tinha a mesma dificuldade de Tiago e João, os filhos de Zebedeu, que eram intolerantes e dados a soluções intempestivas. Mas nunca se curou de seu amor ao dinheiro, nem negou a si mesmo, enquanto aqueles apóstolos assimilaram o espírito do evangelho.
E era noite
Já era noite quando meu marido, tendo recebido das mãos do Senhor o bocado de pão molhado em caldo de carne, se retirou do cenáculo, possuído por Satanás, para apanhar a escolta e consumar a traição. Já era noite não só no aspecto físico, mas especialmente no aspecto espiritual. Era noite eterna para o meu pobre marido. Nunca mais ele veria a luz que mostra o caminho, a luz que espanca as trevas do pecado e sobre elas prevalece, a luz que brilha em lugar tenebroso até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em nossos corações. Este foi o primeiro suicídio de meu marido, ainda mais trágico que o outro. A morte espiritual é mais grave que a morte física.
Os fatos que se desenrolaram em seguida são de conhecimento público. Desatinado, meu marido ficou horrorizado com o que havia feito, declarou-se culpado por trair sangue inocente, tentou reparar o mal atirando com raiva as então incômodas moedas de prata no piso do templo e foi-se enforcar. Depressa ele me deixou viúva e meus filhos, órfãos. Judas foi terrivelmente devorado pela noite eterna, que se prolonga pelos séculos dos séculos numa interminável sucessão.
Durante muito tempo guardei mágoa dos sacerdotes, que não atenderam meu marido, dizendo-lhe que não tinham nada a ver com o problema dele. Além da falta de caridade, revoltava-me a hipocrisia desses ministros de Deus, que também não quiseram aceitar o dinheiro de volta, sob a alegação de que era “preço de sangue”, embora eles mesmos o tenham dado a Judas para esse fim. Então senti na própria carne todos os sofrimentos de Jesus provocados pela hipocrisia dos principais sacerdotes, escribas e fariseus. E acabei me consolando.
Texto originalmente publicado no livro Deixem Que Elas Mesmas Falem. Editora Ultimato.