Semelhanças e diferenças entre Calvino e Lutero
Na biografia de João Calvino – Sou Eu, Calvino –, escrita em forma de entrevista, o pastor Elben César, “perguntou” ao reformador sobre a possível semelhança dele com Lutero. Calvino “respondeu” destacando características pessoais, de formação e trabalho que aproximam e distanciam os dois:
O senhor é parecido com Lutero?
Sou tão pecador e tão salvo quanto ele. Temos o mesmo zelo pela igreja, a noiva de Cristo. Enfatizamos sempre os três “somentes”: o “sola Scriptura”, o “sola gratia” e o “sola fide”. Tanto eu como Lutero não fomos até o final do curso de direito e estudamos hebraico por conta própria. Ambos nos dedicamos ao ministério, ambos somos professores universitários, ambos fazemos sermões expositivos versículo por versículo, ambos gostamos mais do livro dos Salmos, ambos devemos muito da nossa caminhada teológica à Carta de Paulo aos Romanos, ambos nos casamos depois dos trinta anos. Tanto Lutero como eu sabemos que precisamos oferecer continuamente resistência à pecaminosidade latente e temos consciência de que estamos dando muito trabalho a Satanás. Em nossa admoestação contra os perversos, usamos os mesmos termos trava ou freio: as autoridades devem não somente restringir, mas também dirigir o povo. Por fim, nós somos parecidos porque nem ele nem eu gostamos dos adjetivos luteranos e calvinistas, aplicados aos nossos irmãos reformados. Mas Lutero é 26 anos mais velho que eu. Ele é alemão e eu, francês. Ele nasceu no final do século 15 e eu, no início do século 16. Ele fala uma língua germânica e eu, uma língua latina. Ele viveu na Alemanha e eu vivo na Suíça. Ele é da primeira geração de reformados e eu, da segunda (eu era um menino de apenas oito anos quando Lutero rompeu oficialmente com Roma). Ele se casou com uma freira e eu, com uma viúva. A maior diferença entre nós dois é quanto ao temperamento.
Como assim?
Sou menos expansivo, menos impetuoso, menos arrojado. Tenho um temperamento tímido. Sou acanhado por natureza. Jamais teria coragem de atacar os papas com palavras tão insolentes quanto Lutero. Ele chamava o papa Clemente VII de “arquipatife”. Em sua obra Advertência a seus Estimados Alemães, publicada em abril de 1531 (ano em que meu pai morreu), o “javali da floresta” (nome que o papa Leão X deu a Lutero em sua encíclica Exsurge Domine, de 1520) diz que os papas “não têm juízo nem vergonha”, são “dez vezes piores que os turcos”, “verdadeiros diabos”, “miseráveis patifes”, “assassinos sanguinários”, “miseráveis inimigos de Deus” e assim por diante.
Apesar dos mesmos três “somentes”, parece que há diferentes tendências entre a reforma feita por Lutero e a reforma que está sendo feita por sua instrumentalidade.
Embora haja muita unidade entre uma e outra, há algumas diferenças entre nós. Para Lutero, a lei de Deus serve para revelar a santidade de Deus e conduzir o pecador a Cristo; para mim, além disso, a lei mostra ao crente o caminho da santificação. Para Lutero, o arrependimento conduz à fé; para mim, o arrependimento flui da fé. Para Lutero, a “ordo salutis” (a ordem da salvação) segue o seguinte itinerário: vocação, iluminação, conversão, regeneração, justificação, santificação e glorificação; para mim, começaria com a eleição, a predestinação e união com Cristo, sem excluir os demais. Para Lutero, o batismo regenera e remove a culpa e o poder do pecado; para mim, o batismo incorpora o fiel na aliança da graça. Para Lutero, Cristo está presente objetivamente no sacramento da Ceia do Senhor; para mim, Cristo também está presente, mas de modo espiritual, não físico. Quanto ao princípio regulador da vida do crente, é mais uma ‘questão de palavras’ (a posição luterana admite muitas coisas no culto que a posição reformada não admite).
Em carta a Lutero, o senhor escreve: “Quisera poder voar até você para desfrutar da felicidade de sua companhia ao menos por algumas horas e conversar com você acerca de várias questões”. O senhor chegou a estar com Lutero?
Infelizmente, não. Na época eu estava com 36 anos e Lutero, com 62. Um ano e um mês depois de minha carta, ele entregou o seu espírito a Deus em Eisleben, para onde tinha ido a fim de apaziguar os dois condes de Mansfeld. Isso aconteceu no dia 18 de fevereiro de 1546. No entanto, tenho esperança de me encontrar com ele no reino de Deus em breve.
Trecho extraído do livro Sou Eu, Calvino.