O Mineiro com Cara de Matuto vai à Áustria e vê Johann Strauss tocando violino no Stadtpark
Ao ver o rio Danúbio lá embaixo, cortando a cidade, o Mineiro com Cara de Matuto pensou que desceria do avião no aeroporto de Viena ao som de Danúbio Azul. Nos três dias que passou na Áustria, o mineiro não ouviu Haydn nem Mozart nem Schubert nem os Strauss. A única música que ele ouviu foi cantada a quatro vozes por um pequeno grupo de turistas defronte o forno crematório do campo de concentração de Mauthausen, nas proximidades de Lins. Então se lembrou do Réquien, de Mozart, que o famoso compositor não pôde terminar porque morreu antes, com apenas 36 anos incompletos.
Por sugestão do missiólogo Antônio Carlos Barro e com o apoio da Visão Mundial, o Mineiro com Cara de Matuto passou 21 dias do mês de maio na Europa. A partir desta edição (254), Ultimato publica uma série de cinco reportagens de cunho histórico e religioso sobre os cinco países visitados: Áustria (O Mineiro com Cara de Matuto vai à Áustria e vê Johann Strauss tocando violino no Stadtpark), Itália (O Mineiro com Cara de Matuto vai a Roma e não vê o Papa), Romênia (O Mineiro com Cara de Matuto vai à Romênia e vê Lúcifer de joelhos no Museu Ion Jalea), Portugal (O Mineiro com Mara de Matuto vai a Lisboa e vê a Expo 98) e Suíça (O Mineiro com Cara de Matuto vai à Suíça e não vê Genebra).
Contos dos bosques de Viena
Ao ver o rio Danúbio lá embaixo, cortando a cidade, o Mineiro com Cara de Matuto pensou que desceria do avião no aeroporto de Viena ao som de Danúbio Azul. Nos três dias que passou na Áustria, o mineiro não ouviu Haydn nem Mozart nem Schubert nem os Strauss. A única música que ele ouviu foi cantada a quatro vozes por um pequeno grupo de turistas defronte o forno crematório do campo de concentração de Mauthausen, nas proximidades de Lins. Então se lembrou do Réquien, de Mozart, que o famoso compositor não pôde terminar porque morreu antes, com apenas 36 anos incompletos.
Deus foi muito generoso com a Áustria, dando-lhe, nos séculos XVIII e XIX, uma quantidade enorme de compositores da mais alta qualidade, que até hoje o mundo inteiro aprecia. Primeiro foi Joseph Haydn (1732-1809), “o pai da sinfonia”, que compôs mais de 100 sinfonias, mais de 80 quartetos de corda e não poucas óperas e oratórios. O oratório A Criação foi composto quando Haydn já estava com 66 anos e As estações, três anos depois. O segundo foi o bem humorado Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que teve a felicidade de possuir um pai que descobriu logo os dons musicais do filho e a ele se dedicou como professor de música. Ao lado de Haydn, Mozart foi o mais importante compositor do período chamado clássico. Compôs 22 óperas, entre elas a famosa Dom Giovanni, As bodas de Fígaro e A flauta mágica, e mais de 40 sinfonias (Júpiter é a mais apreciada). O descuidado Franz Schubert (1797-1828), que morreu de tifo, solteiro, aos 31 anos, é autor de muitas danças, aberturas e sinfonias. O que o celebrizou, no entanto, foram as canções, como Ave Maria, Quem é Sílvia?, A morte e a donzela e a Serenata que leva o seu nome. Schubert nunca ouviu sua obra-prima Sinfonia em dó maior, cuja partitura foi entregue por seu irmão a Schuman e este passou para Mendelssohn, que finalmente a apresentou em Leipzig, na Alemanha, anos depois da morte do autor. Em quarto lugar estão os Strauss: o pai Johann Strauss (1804-1849), os filhos Johann Strauss II (1825-1899), Joseph Strauss (1807-1870) e Eduard Strauss (1825-1916) e o neto Johann Strauss III (1866-1939). Entre o nascimento do primeiro e a morte do último são 135 anos de Strauss. O mais célebre deles é Johann Strauss Filho, “o rei da valsa”, autor de mais de 500 peças, entre elas Danúbio azul, Contos dos bosques de Viena e Vinho, mulheres e canto. Strauss organizou sua própria orquestra aos 19 anos.
O mineiro passou defronte à Ópera Nacional de Viena, mas não entrou. Nem ouviu os Meninos Cantores de Viena, a Orquestra Filarmônica de Viena e a Orquestra Sinfônica de Viena. Ele não ouviu, mas viu Johann Strauss (filho) tocando violino no Stadtpark… A estátua de bronze está lá há 77 anos.
Tédio, tédio, tédio e nada mais!
A terra é bonita, o povo é culto, o país é rico, a música está no sangue de todo austríaco e a guerra acabou há mais de 50 anos. Então, perguntou o mineiro com seus botões, por que a Áustria está entre os países de maior índice de suicídio, ao lado de outras seis nações européias? Das 80.818 mortes ocorridas na Áustria em 1996, 1.779 foram por suicídio (2,2% dos mortos). Que o austríaco Stefan Sweig tenha se matado com a esposa, aqui no Brasil, em 1942, dá para entender. O escritor era judeu e não suportou o peso dos problemas mundiais na época da Segunda Guerra. Que o austríaco Adolf Hitler tenha se suicidado com Eva Braun em 1945, no dia seguinte ao casamento e uma semana antes da rendição da Alemanha também é explicável. À semelhança de Saul, no Velho Testamento, e de Judas, no Novo Testamento, o Führer não conseguiu mais conviver com os seus próprios crimes. Que o decorador do interior do Teatro Imperial da Ópera de Viena, Eduard van der Nüll, tenha posto fim à própria vida, dá para entender também. O artista não suportou o peso das duras críticas feitas à sua obra. Mas, insistiu o mineiro, por que o austríaco comum se mata tanto? Por que Rodolfo, o único filho homem do poderoso Francisco José, rei da Áustria-Hungria, se matou em 1889? Será o tédio? O que provoca o tédio?
Para entender melhor o assunto, o mineiro consultou o Aurélio e ali encontrou estes versos de Antonio Nobre: “Cantando, ao luar, errei nas ruas da Alemanha, / Armei na França minha tenda de campanha / E tédio, tédio, tédio e nada mais!” Em outro dicionário, fastio é desgosto, aversão, repugnância que se tem pelas pessoas e coisas. Ora, o tédio ou o fastio, numa análise séria e religiosa, decorre do vazio da alma, da falta de satisfação interior, dos desejos mais fundos e mais exigentes, onde Deus está. Daí o conselho do pregador: “Lembre-se do seu Criador enquanto você ainda é jovem, antes que venham os dias maus, e cheguem os anos em que você dirá: ‘Não tenho mais prazer na vida’.” (Ec 12.1 BLH.) “Sem Deus”, indaga Salomão, “com que nos divertir?” (Ec 2.25.) A resposta poderia repetir Antonio Nobre: Sem Deus é “tédio, tédio, tédio e nada mais”!
Em termos de porcentagem, e sem entrar no mérito de cristãos professos e praticantes, a Áustria é mais cristã que o Brasil, desde o início do século. Enquanto na Áustria havia 96,6% de cristãos em 1980, no Brasil, na mesma época, eram 94%. Para o ano 2000, as previsões dizem que essa porcentagem vai cair para 94,6% na Áustria, e 91,2% no Brasil. Quase todos os cristãos austríacos são católicos. Apenas 8,3% dos cristãos são protes-tantes, anglicanos, mórmons, testemunhas de Jeová, ortodoxos e católicos não-romanos.
Um mês depois da viagem do mineiro à Áustria, o papa João Paulo II esteve em Salsburg, onde Mozart nasceu, e pediu aos austríacos que “não abandonem o rebanho de Deus, o Bom Pastor”. É que, depois do escândalo envolvendo o Cardeal Hans Hermann Groer, mais de 50 mil católicos se afastaram da igreja (veja Os filhos de Belial na sacristia). Além disso, os católicos progressistas andam muito aborrecidos com a nomeação do bispo Kurt Krenn, considerado próximo à organização ultra conservadora Opus Dei, fundada há 70 anos pelo bispo espanhol José Maria Escrivá de Balaguer. Diz-se que apenas 14% dos cristãos austríacos assistem regularmente os ofícios religiosos.
O mineiro se lembrou de ter lido que o hobby do ex-político austríaco Josef Leutsch era colecionar cânticos marianos. Em 1982, ele tinha, entre fitas gravadas, partituras e discos, 3 mil cantos em honra à Virgem Maria. Infelizmente, ele não pôde ver nem fotografar a estátua da bem-aventurada Mãe de Jesus, com a infeliz inscrição: “Maria, Redentora dos Pecados”. No ano que vem, fará 90 anos que a escultura está na Ponte Virgem Maria, sobre o rio Danúbio.
Logo no início da primavera, os austríacos da província do Tirol, onde o padre Josef Mohr e o organista Frans Gruber compuseram, há 180 anos, Stille nacht (Noite de paz), o mais cantado hino de Natal, saem às ruas com roupas e máscaras especiais e agitam no ar grandes bastões como que expulsando de seus territórios os maus espíritos do inverno. O mineiro pensou consigo mesmo: além do sofrido e prolongado inverno, uma elite cristã de austríacos precisa urgentemente expulsar os maus espíritos de um cristianismo sem vida, sem alegria e sem entusiasmo.
A última olhada à terra natal
O mineiro adoraria ter estado no Rio de Janeiro na data de 5 de novembro de 1818, há 180 anos. Ele queria muito ver a cara do príncipe Dom Pedro, filho de Dom João VI, então com 20 anos de idade, e a cara da princesa Maria Leopoldina, filha de Francisco I, imperador da Áustria, então com 19 anos. Eles já estavam casados (por procuração) desde 13 de maio, mas nem sequer se conheciam. Ele residia no Rio de Janeiro e ela em Viena. O casamento durou apenas oito anos, o suficiente para a primeira imperatriz do Brasil (uma austríaca) ter um filho por ano e aborrecer-se demais com a infidelidade do marido. Maria Leopoldina morreu em 1826, aos 29 anos. O Brasil deve muito a esta austríaca — não tão bonita como a irmã Maria Luísa, segunda esposa de Napoleão — mas muito culta e entendida em mineralogia e botânica. Foi ela quem trouxe ao Brasil uma equipe de cientistas europeus para pesquisar as riquezas naturais da terra, entre eles o botânico Carl Friedrich von Martius e o zoólogo João Batista Sprix. Por ser favorável à independência do Brasil, Maria Leopoldina é chamada a Paladina da Independência.
Com tudo isso na mente, o mineiro obrigou o missionário brasileiro Paulo Moreira a voltar atrás e parar numa praça de Viena onde está a estátua de Maria Tereza, bisavó da imperatriz brasileira. Essa Maria Tereza era fora de série. Casou-se com a idade de 19 anos e enviuvou-se 29 anos depois. Nesse curto período de tempo, Maria Tereza engravidou 16 vezes. O mineiro fez as contas e chegou à conclusão de que ela esteve grávida 144 meses (12 longos anos)! Em média, a valorosa rainha da Hungria e da Boêmia e arquiduquesa da Áustria teve um filho de 20 em 20 meses. Ela pertencia à família real Habsburgo, que ocupou diversos tronos da Europa Central, de 1273 a 1918, com exceção de alguns poucos anos. O nome Habsburgo vem de Habichtsburg, o castelo do falcão, o que fez o mineiro lembrar do Ein Feste Burg (Castelo forte é o nosso Deus), a Marselhesa da Reforma, composta por Lutero em 1529.
Foi Josef II, filho de Maria Tereza, que assinou, em 1781, o Tolerenzpatent, o edito de tolerância com os protestantes. Na mesma semana, 73 mil austríacos se declararam protestantes. Eram até então protestantes ocultos. Cinqüenta anos antes, em 31 de outubro de 1731, por coincidência ou não, no dia do 214º aniversário da Reforma, o arcebispo católico Leopold Firmian assinou o Das Emigrations — patent, o edito da imigração, segundo o qual as famílias evangélicas (luteranos e calvinistas) eram obrigadas a deixar o país. No lugar deles viriam católicos de países protestantes para a Áustria. A essa mudança parcial da população deu-se o nome de catolização da Áustria. A chamada grande imigração deu-se nos anos de 1731 e 1732. Na época, o Tirol tinha o maior número de protestantes. Nas seis primeiras levas saíram do país 5.080 deles. A esposa do missionário brasileiro Almir Barbosa mostrou ao mineiro com cara de matuto o quadro de Mathias Schmid que retrata um grupo de protestantes olhando para a aldeia nativa enquanto dela se retiravam para sempre, sob o sugestivo título A última olhada. Tanto a gravura como os dados aqui mencionados foram retirados do livro Um des Christlichen Glaubens Willen. A princípio, a ordem era para deixar as crianças menores de 15 anos, mas ela não foi cumprida. A dívida histórica dos protestantes austríacos não é só com o edito de tolerância de 1781. À Maria Tereza eles devem o fato de a imperatriz ter diminuído em seus dias a influência do clero sobre o governo.
Contrabando de Bíblias
O paranaense Almir Antunes Barbosa, de 35 anos, é um homem feliz. De 1901 até hoje só houve duas mortes em sua família: a avó que morreu de trombose e um primo que morreu de acidente de carro. O avô paterno, de 90 e tantos anos, depois de 70 anos de matrimônio, rompeu com a esposa e casou-se com outra mulher. Esse Almir, a esposa Maria Angélica e os dois filhos são obreiros da Junta de Missões Estrangeiras da Igreja Presbiteriana do Brasil na Áustria há 12 anos, a princípio com a Operação Mobilização (OM). De 1986 a 1989, o ministério de Almir era levar Bíblias para os países do outro lado da Cortina de Ferro, especialmente Romênia e Ucrânia. Almir entrava de carro como turista, e, por uma questão de segurança, levava na cabeça todos os nomes e endereços dos crentes aos quais deveria entregar as Bíblias. Memorizava também o mapa das estradas e das ruas. O mineiro trouxe como lembrança uma dessas Bíblias. Com a queda do comunismo, hoje Almir faz constantes viagens para o Leste Europeu, transportando ajuda social para carentes, além de exercer um ministério de aconselhamento pastoral e evangelismo na Áustria, especialmente em Stockerau, nas proximidades de Viena, onde reside. Maria Angélica é formada pelo Instituto Bíblico das Assembléias de Deus em Pindamonhangaba, SP, e, antes de ir para a Europa, foi professora do Curso de Treinamento Missionário da Missão Antioquia.
Paulo Moreira Filho e Virgínia são também missionários brasileiros no Leste Europeu, com residência em Viena. Pertencem à Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira. O ministério de Paulo Moreira é de suma importância: além de ser o líder de todos os missionários brasileiros da Europa Central, ele fornece treinamento bíblico pastoral a dezenas de líderes e pastores dos países vizinhos como Hungria, República Tcheca, Romênia, Polônia, Ucrânia etc. O trabalho começa a se expandir para regiões mais a leste ainda, já na Ásia Ocidental.
Foi com Paulo Moreira que o mineiro visitou a famosa Catedral de Santo Estêvão e a não menos bela Igreja de São Carlos, que foi erguida em 1716 pelo imperador Carlos VI, pai de Maria Tereza, em gratidão a Deus por ter livrado o país de uma epidemia de gripe. Num dos monumentos à entrada do templo há um anjo apontando para a cruz, em cuja haste há uma serpente enrolada e, aos pés dela, uma caveira representando a morte. É uma alusão à serpente de bronze, para a qual todo israelita picado pelo veneno de cobra deveria olhar com fé para não morrer (Nm 21.4-9, Jo 3.14). Mas, estranhamente, a Igreja de São Carlos é dedicada a São Carlos Borromeu e não a Deus. Esse São Carlos foi um dos bispos mais proeminentes da Contra-Reforma, no século XVI. Já a Igreja Votiva, de arquitetura gótica, construída 140 anos depois, foi consagrada “ao Divino Salvador”, que teria livrado o imperador Francisco José I de um atentado terrorista (1853). Todavia a esposa Elizabeth, mais conhecida como Sissi por causa do filme do mesmo nome, estrelado por Romy Schneider, foi assassinada por um anarquista italiano exatamente há 100 anos (1889).
O Mineiro com Cara de Matuto fez inteira questão de ir à casa de Sigmund Freud, hoje museu. Descobriu o endereço (Berggasse, 19) graças ao livro que acaba de ser publicado em português (Cartas entre Freud & Pfister).
Ali Freud viveu por quase 50 anos (de 1891 a 1938), ali atendeu centenas de clientes (o mineiro fotografou o famoso divã), ali escreveu seus livros, ali produziu uma intensa correspondência, inclusive com o pastor protestante Oskar Pfister. Com a ocupação da Áustria pelos nazistas e a tomada do poder pelos nacional-socialistas, Freud, que era judeu e tinha um câncer de 15 anos na mandíbula, foi obrigado a imigrar para Londres em 1938, pouco antes de começar a guerra. Morreu no ano seguinte, aos 73 anos. Ao sair da casa de Freud, o mineiro achou na rua um papel amarelo com o desenho da estrela de Davi, símbolo do judaísmo.
No campo de concentração de Mauthausen
O que mais impressionou o Mineiro com Cara de Matuto na Áustria foi a visita ao campo de concentração de Mauthausen, nas proximidades de Lins, a 200 e poucos quilômetros de Viena. A visita choca logo na entrada, onde há, no chão, a escultura de 60 crânios, um ao lado do outro. Em seguida, entrando por trás e não pela frente, o mineiro topou com uma enorme escadaria de pedra, sem corrimão, ao ar livre, ligando a parte de baixo, onde há uma pedreira, à parte de cima, onde estão os alojamentos. Por essa escada, conhecida como a escada da morte, subiam os prisioneiros mal tratados e mal nutridos, carregando às costas, numa espécie de mochila de madeira, uma pedra enorme. Alguns não agüentavam — ou eram empurrados para trás pelos guardas — e caíam sobre os demais, logo atrás, provocando ferimentos e mortes, num efeito dominó. O mineiro catou ali umas pedrinhas que estavam no chão como lembrança e fez questão de subir os 186 degraus para sentir na pele o sofrimento daqueles homens. Lá em cima havia uma série de monumentos em homenagem aos mortos, todos muito sombrios, construídos pelos governos de vários países. Os que mais chamaram a atenção do mineiro foram os memoriais judaico (um menorá todo retorcido) e húngaro (vários homens com as mãos fechadas e braços levantados). O mais sinistro de todos era a escultura de um esqueleto, também com as mãos para cima, como que clamando por justiça. Outro era uma cruz toda cercada de espinhos de tal modo que era de difícil identificação.
O mineiro gastou horas ali dentro. Viu a câmara de gás, o forno crematório, o dormitório, o banheiro, a mesa em que os cadáveres eram estendidos para se retirar dos dentes alguma obturação de ouro e do ânus alguma jóia porven-tura ali escondida. Visitou a capela onde era outrora a lavanderia, viu uma cruz rústica linda na porta e uma singela escultura sobre a paz: duas mãos estendidas e abertas para receber um raminho de árvore que estava no bico de dois pombinhos. Ali mesmo, o mineiro tentou fazer uma oração ao Deus Soberano que, um dia, vai pôr fim a todas as misérias do mundo.
O campo de concentração de Mauthausen foi aberto em 1938. Por ele e por seus 47 subcampos passaram mais de 195 mil deportados. Destes, mais de 105 mil foram mortos ou morreram por causa dos maus tratos. Quando as tropas americanas começaram a entrar ali às 2 horas da tarde do dia 5 de maio de 1945, encontraram 81 mil sobreviventes, alguns semimortos. Os prisioneiros eram de várias nacionalidades: albaneses, alemães, austríacos, belgas, espanhóis, franceses, ingleses, italianos, iugoslávios, húngaros, poloneses, soviéticos, tchecos e outros. Só da Hungria havia 18.015, da Polônia 15.803 e da antiga União Soviética 15.581. Eram também de diversas posições sociais, como professores, artistas, intelectuais, sacerdotes, comerciantes etc. Alguns eram protestantes, outros católicos e a maioria judeus. Todos vestiam um uniforme listrado e no peito traziam um número e o desenho de um triângulo. Se o triângulo fosse vermelho, os detentos eram prisioneiros políticos, se fosse verde, eram criminosos, se fosse preto ou castanho eram “elementos anti-sociais”. Uma letra escura dentro do triângulo indicava a nacionalidade (“F” era francês, “P” era polonês, “S” era espanhol e assim por diante). Os judeus usavam uma estrela de Davi amarela, logo abaixo do triângulo. No verão, eles acordavam às 4h45 e trabalhavam das 6 às 12 e das 13 às 19 (11 horas por dia) e comiam ao meio-dia e à noite. No inverno acordavam meia hora mais tarde e trabalhavam, sob um frio intenso, do amanhecer até o escurecer. O número de guardas da SS (Schutz-Staffed) aumentava de acordo com o número de prisioneiros: eram 1.500 em 1939 e 9 mil em 1945.
O mineiro foi obrigado a encerrar sua visita ao campo de Mauthausen quando os funcionários começaram a encerrar o expediente. No livro de visitas ele escreveu em português mesmo: “Depois de ver o que vi, só tenho uma palavra: Deus tenha misericórdia de nós!”
Texto publicado na edição 254 da revista Ultimato.