O capitalismo é compatível com o Cristianismo?
Os Cristãos da Letra Vermelha
Micah Bales*
(Tradução: Eliezer Silva)
Ao chamar seus primeiros discípulos, Jesus causou uma mudança total na vida econômica deles. Simão e André, Tiago e João trabalhavam nos negócios familiares, impulsionados pelo legado da criação que receberam. Seus pais eram pescadores, bem como os pais de seus pais e várias gerações anteriores. A pesca era uma forma de sustento, mas não se reduzia somente a uma fonte de renda, ia muito além. O negócio familiar era fonte de um sentido de lugar, de significado para a vida. Era uma ordem social que permitia a cada membro da família saber exatamente seu devido espaço de atuação.
Somente ao compreendermos esse fato, podemos começar a vislumbrar a natureza radical do convite feito por Jesus a seus primeiros seguidores e amigos: Sigam-me, e eu vos farei pescadores de homens. Jesus ofereceu uma ordem econômica e social totalmente diferente. Seu convite não contemplava redes de segurança, justificativas ou garantias. Os primeiros discípulos abandonaram imediatamente as suas redes, seus meios de subsistência e toda ordem social que lhes deva um sentido de lugar. Eles abandonaram tudo, inclusive toda uma visão de mundo, ao seguir Jesus.
Nos nossos dias, o desafio de Jesus não é menos crítico. Ele nos convida para um modo de vida radicalmente distinto de nossas suposições cotidianas, de modo que temos grandes dificuldades em captar exatamente o que está em jogo. O caminho do discipulado de Jesus não nos permite simplesmente incorporar seus ensinamentos numa ordem social pré-existente. A boa-nova do Reino de Deus – que é nossa missão, caso a aceitemos – atua nos empurrando para fora da zona de conforto, da mesma forma que atuou na vida dos primeiros discípulos de Jesus há muito tempo atrás lá na costa do mar da Galiléia.
Naturalmente, muitos de nós não subsistimos da pesca. E mesmo os que vivem dessa atividade econômica, provavelmente não atuam num negócio familiar passado de geração em geração. Nós não vivemos numa economia pré-moderna de camponeses, ferreiros, sacerdotes e governadores imperiais. Graças a Deus.
No entanto, nós vivemos dentro de uma dada ordem econômica, em grande parte inquestionável e que define nossas vidas, tanto quanto os negócios familiares e os laços econômicos que eram tão importantes para os primeiros cristãos. Vivemos dentro de uma nova ordem mundial, tão pervasiva e poderosa que na maioria das vezes não é sequer notada. É simplesmente a realidade.
Hoje nossas vidas estão integradas na ordem econômica e social do capitalismo global. E do mesmo modo que o poder romano e sua economia imperial era uma realidade praticamente inquestionável no mundo antigo, hoje a dominação moderna da economia global neo-liberal é uma realidade praticamente inquestionável para todas as pessoas. Ame ou odeie, é apenas como as coisas são.
Mas será mesmo? E se houver um poder maior do que Wall Street, maior que o capitalismo de consumo, bem como todo o aparato violento necessário para sustentá-lo?
Os cristãos podem discutir indefinidamente sobre a correta definição do capitalismo, e se pode ser visto como algo benigno ou uma ameaça. Sem dúvida, se trata de uma conversa necessária, apesar de não chegar no cerne da questão. O ministério de Jesus não era focado na formação de uma sociedade de debates. Seu foco foi na construção de um movimento, uma família.
Hoje ele nos convida para esta nova ordem social, esse novo modo de vida. A família de Deus está no meio de nós e nos desafia a reavaliar o que valorizamos, o que deve ser honrado e como devemos viver nossas vidas. Jesus continua à beira-mar, nos chamando a largar nossas redes e segui-lo.
Qual é a forma e o significado desse chamado em termos concretos? Será que devemos largar nossos empregos? Laços sociais? Todos os conceitos sobre quem e o quê deve ser valorizado? Que forma assume o ato de se arrepender (isto é, mudar todo nosso modo de vida) no contexto de um capitalismo global que ameaça tornar nosso precioso planeta inabitável? Que emaranhado de redes que somos chamados a jogar fora e qual é o caminho, a comunidade, a família que irá substituí-lo?
O tempo para uma abordagem meramente religiosa para essas questões se esgotou. Somente uma mudança de corações não é suficiente quando nossas vidas permanecem tão profundamente enraizadas nos pressupostos e na economia do império global. É urgente e necessário um convite para uma reavaliação radical e determinada de tudo, nos encaminhando a uma mudança integral em nossas vidas na busca por uma existência verdadeiramente abundante, que Jesus nos promete.
Mas em primeiro lugar: larguemos nossas redes e sigamos a Jesus.
Traduzido de: Is Capitalism Compatible With Christianity (Red Letter Christians)
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* Micah Bales é escritor, professor e líder Cristão de trabalhos de base na igreja local em Washington, DC. Ele é membro fundador do movimento Friends of Jesus, uma comunidade Anabatista; e também foi organizador do movimento Occupy. Para ler mais sobre seu trabalho, acesse o links www.micahbales.com, ou siga Micah no Twitter.
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Leia também:
+ Os Cristãos da Letra Vermelha.
+ A idolatria do(de) mercado: o homem todo para o dinheiro (todo).
+ A idolatria do(de) mercado: contra a teologia política neoliberal.
Mauricio
Muito tenho ouvido sobre capitalismo, socialismo e cristianismo, não sei se o capitalismo ou o socialismo é compatível com o cristianismo, ambos tem suas falhas. O que sei é que o cristianismo tem Cristo no centro, os demais sistemas tem o homem. Cristo quando chamou seus discípulos transformou o coração e a mente deles, e isto é que mais importa, pessoas transformadas por Cristo, fora disto só haverá destruição e ganância, veja o caso aqui do Brasil, um país num sistema capitalista, mas que tinha no governo até pouco tempo uma ideologia socialista, confesso que não melhorou nada, se os capitalistas querem o poder, os socialistas não são diferente, se os capitalistas querem o ganho em detrimento dos outros, os socialistas também, é só analisar com isenção, sem paixão, os acontecimentos últimos em nossa nação. Se Cristo não transformar o ser humano, não importa o “ismo” que seguimos, o fim será a destruição
Equipe do Blog Dignidade!
Obrigado pelo comentário, Professor Maurício!
A posição do senhor é também a mesma do Rev John Stott: desconfiar dos sistemas humanos. Uma posição prudente.
Luiz Faria
Só lembrando que no Brasil, em governos anteriores não houve mudanças, porque o capitalismo nunca foi abandonado. O que houve foi uma atenção maior com os mais pobres (a maioria dos brasileiros).
Joaquim Tiago
Muito bom seu blog, um bálsamo.
Equipe do Blog Dignidade!
Obrigado pelo comentário, Tiago. Agradecemos o apoio e a divulgação. Siga nossa página no Facebook! Um abraço.
Vitor Grando
Esse artigo traz a velha confusão da esquerda entre a ética evangélica e política econômica. Jesus não propôs em momento algum uma alteração da ordem econômica da sociedade. O que ele propôs foi um chamado radical de abnegação e altruísmo a todo aquele a quem ele chama. Confundir isso com uma organização do Estado é uma confusão juvenil.
Antonio Neiva
Achar que esse “chamado radical de abnegação e altruísmo” é possível e eficaz sem uma “alteração da ordem econômica da sociedade” isso sim é uma confusão juvenil. Jesus sabia disso, porém não poderia começar assim, mas sim convencendo as pessoas comuns, do povo para os lideres, o fato é que ele não conseguiu e foi morto, e até para os que acreditam na parte metafísica de que ele era na verdade o filho de Deus e que voltou dos mortos, essa ressurreição não foi o suficiente e continuamos fazendo exatamente o que ele pedia que não fizéssemos; acumulando capital e propriedades enquanto “irmãos morrem de fome por aí”. E com isso não estou dizendo que devemos abandonar o capitalismo, acho que dos sistemas já testados ainda se mostra o “menos pior” mas uma vez imerso nesse sistema, dizer-se cristão é no mínimo uma canalhice conveniente e muito confortável e seria semelhante a protestar contra as pessoas fazerem uso do cigarro devido seus malefícios à saúde e vende-los em sua loja.
Emiliano Felipe
Comentários 1 e 3 refletem a posição majoritária no seio da igreja institucionalizada no Brasil. Política boa é aquela que vê a ordem hierárquica social como natural, ou seja, uma tese direitista, que ao lado do conservadorismo permeia as mentes dos incautos cristãos, que, por falta de interesse deles próprios e de seus líderes, interessados na manutenção de privilégios nunca questionam o modo social vigente. Pregam um Cristo diferente das Escrituras, que é intimista, que parece ter aprovado a proposta de Pedro em Mateus 17, na transfiguração, a de ficar eternamente no “acampamento”, “curtindo” a “bênça” de Deus. E dessa forma, nunca responde ao desafio diário do cristão de viver no mundo, e salga-lo, de fazer diferença onde está, trazendo os valores do Reino de Deus, para a promoção da justiça. Até quando SENHOR? “a velha confusão da esquerda”. Engraçado, a esquerda parece estar sempre confusa…
decio
O servilismo ideológico, travestido de ética revolucionária cristã.
Antonio Neiva
Não acho que essa discussão precise permear no âmbito político de direita ou esquerda. Quem insiste em trazer o debate para esse aspecto no mínimo tem algum interesse pessoal contra uma das vertentes. Jesus era alguém inconformado com com a desigualdade desenvolvida pelo egoísmo humano. Extremamente fraterno e absurdamente inteligente, ele conseguia convencer um grande número de pessoas a seguir seus preceitos de amor ao próximo e igualdade. Quando ele disse que para segui-lo primeiro vende-se o que se tem e dá aos pobres, ele estava mandando uma mensagem diretamente para as sociedades de todas as eras, para a nossa, essa mensagem se mostra muito simples por mais difícil que seja admitir: Primeiro você abandona a vida de acumulo de capital e propriedades e depois me segue. Difícil alguém seguir isso hoje em dia por mais espiritualmente dedicado que a pessoa seja. Não vejo problema em ser cristão, nem em ser capitalista, porém ser as duas coisas ao mesmo tempo é a maior contradição que existe, pra não dizer uma canalhice. E não, não acredito em toda a parte metafísica atribuída a ele, de que foi o filho de Deus enviado… e que voltou dos mortos. Ele foi muito melhor que isso, muito mais que uma mera lenda que te daria uma recompensa em uma possível “outra vida” Não! ele foi na verdade o maior revolucionário que já existiu e o mais injustiçado, pois até hoje se faturam bilhões em seu nome e ainda distorcendo o que ele realmente pregava. Essa distorção inclusive é a base do debate dessa postagem na página.
Clara Lúcia Delage Lemos
Deus te abençoe a todo instante!
Raphael
Não, Jesus não tem nada de capitalista. O capitalismo surgiu depois do sistema do feudalismo, a igreja era a senhora feudal detentora da maior parte das terras. Se Deus é dono de tudo, tudo pertence a igreja, certo? ERRADO!!! Jesus foi assassinado pelos romanos, que criaram A IGREJA apostólica romana, e criaram também a bilbia. Jesus não tem nada a ver com isso, ele fala justamente o oposto: que tudo é nosso, deve ser partido e compartilhado até porque não é lógico? Onde está a lógica do capitalismo? O capitalismo se sustenta sobre a manipulação das massas.
Jeremias
Respeito sua visão, mas ao se aprofundar na vida cristã – não somente lendo a Bíblia superficialmente, mas vivendo uma vida com Deus, uma vida de fé e crendo que um dia ele voltará, então, você entenderá que o que Jesus pregava não era simplesmente um modelo de governo e de sociedade; na verdade, ele estava apontando a visão daqueles que o ouviam para o céu, para a morada celestial, esse ato era refletido em pouca parte nos mandamentos que Jesus trazia, mas não somente. Em nenhum momento Jesus conduziu as esperanças dos seus discípulos em coisas humanas, mas sim nas eternas. Desse modo, olhar para a Bíblia apenas no aspecto humano é superficial e diferente do sentido com que ela se propõe. O cristão é como alguém que está tentando escapar do abismo, e orientando outras pessoas a não caírem no abismo, diferente das outras pessoas que acham que esse abismo pode ser concertado (com ideologias, modelos políticos etc), desconhecendo a real profundidade desse abismo, de modo que ele não tem concerto. Ou seja, Jesus é o escape da humanidade, e não aquele que vai concertar o abismo.