Sobre desestrutura e encontros; cuidado e amor

 

Por Priscila Vieira*

 

IMG_1321Exaustão. Maravilhamento. Espanto. Amor. Ternura. Fome. Medo. Preocupação. Dor… Algumas sensações que me tomaram nos primeiros dias com a bebê. A minha sensibilidade à flor da pele gerou até piada. As profissionais de saúde que visitam as mães e os recém-nascidos[1] são treinadas para identificar sinais de depressão na mulher. Quando contei a minha mãe as perguntas que a enfermeira tinha feito, recebi uma resposta enérgica, espirituosa, de fino sutil senso de humor:

– Depressão pós-parto?!! Você está sofrendo de emoção pós-parto!

Ambas rimos. Uma boa expressão para o tumulto emocional daqueles dias. Eu chorava, emocionada. Porque minha bebê era (e é) perfeita, linda, saudável. De cansaço e exaustão. De dor para amamentar (bico machucado; duas ou três mastites). De impotência e frustração, quando o choro dela prosseguia sem fim. Porque eu queria protege-la do mundo ao redor, até da poluição do ar. Porque em uma das mastites fiquei cinco horas no hospital, longe dela, e tudo que eu pensava é que tinha que amamenta-la (mesmo com a dor). Porque as pessoas ao meu redor eram tão cuidadosas e amáveis. Porque em tudo eu via Deus.

Quem queira explicar objetivamente o que acontece nessa fase, aos modos do que chamamos ‘racional’ na nossa era, esqueça. É de outra coisa que se trata. Por isso, desestrutura encabeça a minha sopa de palavras. E que sabor teve esse prato! Tantas aventuras misturadas, tantos temperos exóticos – à minha experiência até então. Eu degustei cada minuto daquela fase. Lambuzei as mãos, lambi o prato.

 

Desestrutura

A noção da maternidade e do parto como desestrutura espiritual chegou a mim através do livro da Laura Guttman[1]. Por espiritual a autora indica a dimensão profunda da experiência. Somos mais que corpos grávidos. Somos inteiras e, naqueles momentos, nossa integridade abarca o bebê. Eu, cristã, conectei imediatamente a noção à minha própria formação e experiência de espiritualidade. Topei o desafio de viver a gravidez, o parto e o que depois viesse nessa dimensão. Se há desestrutura, Deus estará nela. Assumi, simplesmente. Meu parto fugiu às possibilidades de previsão, foi confuso, bizarro e de beleza singular (leia o relato aqui).

E então foi uma mulher feliz, exausta e sobretudo desestruturada que se viu com um bebê nos braços, que demandava alimentação a cada três horas. Além dos demais cuidados. A desestrutura é como o parto: integral. O corpo é um estranho no pós-parto. Havia me habituado à gravidez; agora era necessário lidar com o útero vazio. Sentir as contrações de seu re-aninhamento. Pois quando deixa de ser ninho do bebê, o útero se (re)aninha em nosso corpo. Lidar com a dor na região pélvica e períneo; lidar com dores nas costas. As minhas foram intensas (ainda estou lidando com elas, um ano e meio após o fim da gravidez). As emoções oscilavam do inexorável sublime ao desespero. Preocupação com o bem-estar do bebê; com a fome, a sede, a amamentação. Amamentar é um aprendizado, uma novidade que exige convicção, paciência, serenidade. Na maior parte das vezes, solicita, mais uma vez (após o parto!), convívio com a dor.

 

– Dor

Dói. Pré, durante, pós: ter um filho é uma experiência permeada pela dor. Mesmo para aquelas que tiveram um parto sob controle e bebês saudáveis. Eu não disse que a sopa era apenas gostosa; disse que me fartei de todos os sabores.

A maternidade, no entanto, é absolutamente sobre Vida. Experiência mística radical de sermos cocriadoras com o autor principal, soberano, o próprio Deus. É um mistério. Ele cria através de nós; cria em nós. E então a maternidade me ensina de forma nova algo que já sabia. Vida embrenha-se com a dor. Felicidade e amor embrenham-se com a dor. Não entendo. Guardo no coração, como aprendi com Maria, mãe de Jesus.

É fato que a exaustão nos faz esquecer, por momentos, a potência da Vida que carregamos nos braços, dias e noites a dentro e à fora. “Uma pessoa sem dormir é outra pessoa”, ouvi de uma amiga, mãe de uma linda bebê, nascida três meses antes da minha. Na minha casa, o pós-parto foi vivido na proporção três adultos para um bebê. É muito mais do que boa parte das mulheres sonha ter. E ainda assim, em meio aos cuidados do bebê, manter básicos como a rotina alimentar dos adultos era um desafio.

Como experiência de dor, há um segredo para caminhar sem que feridas fiquem abertas, especialmente por essa fase de transição do pós-parto: encontros. Deixar-se afetar pelo outro. E misturar-se a ele/ ela. Sim, os próximos são o caminho necessário para que haja Vida.

 

Encontros

unspecified-5Há uma mística que envolve o encontro da mãe com o bebê. Um encontro que é ao mesmo tempo a primeira vez e uma renovação. O encontro se deu organicamente, no útero, na placenta, no cordão umbilical. Naquele momento, se dá nos olhos, na pele, no seio e no peito, nos lábios, mil beijinhos. Infelizmente, nem todas as mulheres e nem todos os bebês conseguem viver esse encontro logo após o parto. Mas, em algum momento, essa mística acontece. E quando ela chega, a dor dissipa-se no sublime.

Outro encontro fundamental para mim foi conhecer a face pai-cuidador do meu marido. “Camadas que se revelam”, descreveu uma amiga, mãe de dois meninos. Não foi imediato. Levou talvez alguns dias, talvez algumas horas. Um efeito do pós-parto é a sublimação do tempo, que passa de modo diferente e não linear para as mães com seus bebezinhos. O fato é que logo meu marido era (e é) a pessoa em que mais confiava para cuidar da minha filha. E para cuidar de mim. Foram tantos lanchinhos na cama durante a madrugada, tantas garrafas de água, tanta preocupação, tanta atenção. Eu me vi nas mãos dele, naqueles dias em que me sentia tão forte para algumas coisas e tão fraca para outras; eu não desejava estar em outro lugar.

O reencontro com minha mãe. Eu e minha mãe temos uma história de encontros; e reencontros. Na fase de espera pelo bebê no final
da gravidez e da chegada da Aurora, nos reencontramos como mulher. A maternidade carrega uma potência de dissolução das individualidades; mães se identificam e, se não resistirem, se fundem. Então eu, que já fora uma com ela, gestada em seu
útero; passara 35 anos me desenvolvendo como alguém diferente dela; agora estava ali, novamente, em um ponto de unidade, momentos de coexistência sobreposta. Dependente de seus cuidados, alimentada pelo seu afeto, segura com sua presença. Um reencontro maduro, sem necessidade de igualar; um reencontro em momentos de dor e de alegria tal, que só a Vida é capaz de produzir.

O encontro com Deus. Se são os hormônios, abençoados sejam eles! Atravessei no pós-parto uma fase espiritual transformadora. Na profundidade, na intimidade, nos recônditos que só a oração toca; a oração do silêncio, sem palavras. A mãe com um bebezinho é um ser intensamente instintivo. Tudo ao redor é notável pois qualquer coisa pode ameaçar. E esses instintos constantemente encontram Deus. Em meio à exaustão, ao sono, às dores. Nas mamadas diurnas e, especialmente, nas noturnas. Nos primeiros passeios exibindo orgulhosamente meu rebento; notando de forma única o vívido colorido das flores que desabrochavam (era primavera!); observando com interesse profundo outros bebês, outras crianças. A maternidade me levou o tempo devocional que habituava ter antes. Mas, reafirmo, temporalidade nessa fase é outra. Eu sentia que meramente ao pensar em alguém, estava intercedendo por essa pessoa. Sentia Deus ali, comigo naquele fluxo afetivo por aquela amiga, aquela mãe, aquele familiar que emergia em meu coração; abençoando a mim, abençoando à pessoa querida que ali, em mim, se fazia presente. Minha interioridade nunca foi tão vasta, expandida. Meus sensores nunca foram tão aptos ao inefável.

Por fim, como espera-se de encontros com Deus, encontrei-me, reencontrei-me com as pessoas ao redor. Como esquecer as lindas emoções que vieram junto com o primeiro buquê que recebi, ainda no mesmo dia do nascimento, na maternidade? (E que vieram junto com um lanchinho… porque, falemos a verdade, o pós-parto e a amamentação são sentidos fundamentalmente no estômago!). Churrasco, já na segunda semana de vida do bebê. Comida trazida pronta, à porta de casa, por mulheres do grupo de compartilhar. Vivências de comunhão. Aprender a aceitar, a receber, a deixar-se cuidar.

 

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Cuidado

Quando comecei a ler e a ouvir outras mulheres sobre o pós-parto, pensava que ter um filho era sobre cuidar. Engano. Ter um filho é também sobre receber cuidados. Abençoadas as mulheres nessa fase. Estou certa que o Deus da Vida, em sua misericórdia, oferece forças extras e envolve em seu próprio cuidado amoroso, seu próprio colo aquelas mulheres que enfrentam sozinhas um momento tão rico, tão exaustivo, que nos reduz ao mesmo tempo que nos expande. Assim também as mulheres que enfrentam nessa fase desafios extras, questões de saúde física e emocional, delas próprias, do bebê, de algum ente querido próximo. (Amém!)

Cada gesto cuidadoso que me chegava era acolhido no mais profundo da alma. Lembro-me do momento em que percebi o privilégio do que vivia. Nunca havia me sentido tão cuidada (claro que eu chorei ao pensar nisso)! Todo aquele afeto compunha um ninho em que eu me sentia plena. Em meio ao cansaço, eu estava perfeitamente feliz. Ser cuidada em um momento tão especial foi das vivências mais amorosas que já tive. Em minha desestrutura, sentia-me diluída, a ponto de confundir-me com os outros ao meu redor, de quem eu cuidava (especialmente a bebê), de quem eu recebia cuidados. Diluída na oração, que emergia anterior à palavra e se estendia pelas fraldas trocadas, pelas muitas sonecas interrompidas, pelas caminhadas, banhos de claridade (da bebê), banhos acelerados (meus) e preocupações mil. Ouso dizer: o pós-parto me trouxe sabores e cheiros, largos e densos pedaços de Amor. Sensorial e nutritivo, isso me transformou.

 

Eu era uma quando pari. Era outra, que viveu o pós-parto. Sou outra que redige esse texto no agora. Busco reintegrar essas todas-que-sou-eu. Daqueles dias, guardei no coração, como Maria, mãe de Cristo, fazia com o que estava além de sua compreensão: a desestrutura abre espaço ao divino; o encontro pode ser hibridismo instintivo; amar, ser cuidada, ser amada, cuidar são expressões de sentidos tão profundamente próximos que suas raízes se confundem (talvez porque se alimentam da mesma Fonte). Dor, amor e cuidado em meio à desestrutura; encontros, metamorfose: assim, a vida inicia; assim ela se sustenta. E segue, abundante…

 


13775438_1174288965967380_3751878068644688898_n*Priscila Vieira é doutora em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, e Pós-doutoranda na School of Arts do Birkbeck College, na Universidade de Londres. Foi fundadora do grupo base da Aliança Bíblica Universitária (ABUB) em Ponta Grossa (PR) e membro da Rede FALE. É International Partner da Allsouls, Langham Place, onde frequenta o Aroma – estudo bíblico de/para/com mulheres.

 

 


Referências:

[1] Em casa, serviço gratuito do Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS). Durante as primeiras semanas, mãe e bebê recebem várias visitas das parteiras.

[2] GUTMAN, Laura. A maternidade e o encontro com a própria sombra. Rio de Janeiro: Best Seller, 2010.

 

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