Professor ganha mal, Veja
Em resposta a Cláudio de Moura Castro – Veja, 27/07/2016
Por Marina Avelar*
Professor ganha mal? Apesar do título em formato de pergunta, desconfio que o artigo de Cláudio de Moura Castro recentemente publicado pela revista Veja, nunca tenha tido como objetivo, respondê-la. Escrevo aqui uma análise crítica deste texto, na tentativa de retificar as desinformações deliberadamente apresentadas pelo autor. Também escrevo porque acredito que não podemos assistir os absurdos que o governo está fazendo com nossa educação, sob as bênçãos da grande mídia.
Comecemos pela pergunta que abre o texto: professor ganha mal? Apesar de estarmos discutindo salários, esta pergunta nunca recebe uma resposta com números ao longo de todo o texto, certamente porque o autor sabe bem que seus leitores, de classe média/alta, ficariam chocados com os valores. Vou ter que gastar um tanto de espaço aqui para lançar um pouco de luz sobre o problema, para depois voltar à crítica do texto da Veja.
Falar de financiamento e remuneração docente no Brasil não é fácil. Somos uma federação, na qual a educação é formulada e executada em regime colaborativo dos entes federados. Isso quer dizer que a União, os estados e os municípios tem papéis a cumprir. Na educação básica temos uma base legislativa federal, mas as escolas (e o contrato dos professores) são dos estados e municípios. Além disso, há diferenças na legislação e execução da educação infantil, educação fundamental e ensino médio. Só para termos uma ideia, os dois primeiros tem um piso salarial mensal, enquanto no ensino médio o piso é por hora/aula.
Mas vamos lá: o piso salarial para o professor de educação básica no Brasil com carga de 40 horas/semana, estabelecido pela União, é hoje de R$2135,64 (lei 11.738/2008). Ele tem crescido nos últimos anos de acordo com o estipulado por lei. Há poucos anos, em 2009, ele era de apenas R$950,00. Então o piso que temos está melhor do que já foi, mas vamos combinar que não é muito, já que o piso de um estágio de engenharia do último ano de graduação é R$2000,00. Mas o problema é que fica pior, bem pior. Para começar, este piso é estabelecido para 40 horas semanais, mas há muitos professores que não possuem este contrato, mas sim de 20 ou 30 horas/semana, ganhando menos, portanto. Este piso também é estabelecido para professores com ensino superior completo, sendo que ainda temos professores com magistério, que também ganham menos de R$2000,00. E, além de todas as limitações do piso, ainda há estados e municípios que não o cumprem. E não é pouco: de acordo com a CNTE, neste ano temos 14 estados não cumprindo o piso. Apesar de no segundo parágrafo Castro ter reconhecido as complexidades de discutirmos o salário docente, em nenhum momento ele cita os números. Nos diz “O salario inicial no Rio é maior que o de outras profissões”, mas se recusa a dizer quanto é, quais são estas outras profissões a que se refere e quanto elas recebem. Parece ignorar que foi publicado um estudo com dados do IBGE e PNAD que afirma que professores ganhem em média metade do que ganham seus colegas de outras profissões com escolaridade semelhante.
O começo do artigo é ruim, mas depois fica péssimo. São vários saltos incoerentes que confundem o leitor. Primeiramente o autor menciona levianamente que “não há relação clara entre o salário do professor e o que aprendem os alunos”, para então tentar apresentar uma relação causal (dos números que ele não nos dá) entre salário docente e notas de algum teste (que ele não menciona, eu imagino que se refira ao IDEB), usando como exemplo os estados do Amapá e Minas Gerais. Não precisamos saber muito de estatística para saber que não podemos fazer esta correlação, pois não foram isoladas as duas variáveis. É claro que os alunos, os investimentos, as escolas e as famílias do Amapá e de Minas não tem nada a ver um com o outro, as variáveis são muitas, e por isso não podemos realizar uma correlação entre salário docente e notas discentes em testes de larga escala.
No parágrafo seguinte, Castro novamente faz uma sequência de frases sem dados, só ‘grandes verdades’: “Os salários são até competitivos”, “Em termos internacionais gastamos bastante”… Sem em nenhum momento nos dar os números a que se refere. Que salários? Competitivos em relação a que? Internacionalmente gastamos com o que em relação a quem? Não sabemos a que ele se refere. Vou me ater ao principal erro do parágrafo: comparações internacionais de investimento em educação demandam métricas específicas para não incorremos no absurdo de compararmos o investimento total do Brasil, com população em idade escolar 59,7 milhões (PNAD 2013), com a Finlândia que tem aproximadamente 1 milhão. Falar de investimento per capita ou percentual do PIB tampouco é simples, mas esta última é a métrica mais usada. Mas perceba que os países europeus possuem um grande PIB e uma população pequena, o que dificulta comparações novamente, e o contrário também ocorre, com países de pequeno PIB que acabam tendo um percentual alto investido em educação, o que não necessariamente quer dizer que estejam investindo tanto assim. Há também que se considerar o movimento de crescimento/envelhecimento da população (países envelhecendo terão cada vez menos alunos, o que vai barateando a educação, e países com população em crescimento terão cada vez mais crianças e por isso há que se construir escolas, contratar professores… o que demanda maior investimento). E, pra fechar, há a questão histórica, países como o Brasil ainda possuem adultos analfabetos a serem educados, crianças ainda a serem incluídas na escola… precisamos aumentar nosso sistema e precisamos de verba para isso.
Mas, de novo, vamos lá: o Brasil tem uma briga histórica com o nosso investimento em educação. Há anos brigamos para ter 10% do PIB, sendo que chegamos a 4% em 2005, há apenas uma década, e antes girava em torno de 3% do PIB. Fomos subindo aos poucos e estamos entre 5% e 6% do PIB. Isso não é tanto, e faz pouquíssimo tempo França, Alemanha e Inglaterra ficam em torno de 5% também, mas Finlândia, Nova Zelândia, Islândia, Suécia, Noruega tem investido 7%. E ainda tem Gana, Botswana, Timor Leste com 7% ou 8%, e Lesotho liderando com 12%. Não é uma métrica simples, que depende do PIB, do tamanho e idade da população e o desenvolvimento histórico de seu sistema educacional.
Neste contexto, Castro tenta comparar salários de professores em diferentes países, dizendo que está contando com correção de custo de vida, sem nos mostrar este números (de novo). Também diz que há países que pagam menos e tem melhor resultado em testes, mas não sabemos que lugares são estes. Não vou me delongar, mas o erro é o mesmo de criar correlação entre salários e resultados do Amapá e Minas sem isolar variáveis, e desta vez sem comparar com os salários de outras profissões. E ainda contradiz a própria revista Veja, que recentemente publicou um estudo da OCDE que diz que o Brasil tem uma das piores remunerações do mundo e com a maior relação alunos/professor (29 em média).
Dessa falácia que ele fabricou, que “gastamos muito e pagamos pouco”, Castro vai buscar o problema da educação na carreira do professor. Atenção aqui, este é o ponto chave do texto: o autor trabalha com o discurso de que o problema da educação é o professor. O professor é constantemente culpabilizado por uma falha sistêmica da educação, e Castro se esforça para convencer seu leitor disso, sem oferecer um dado e fonte sequer. Daqui até o fim o autor traz elucubrações acerca do professor e sua carreira, como se professores fossem pessoas que fazem um trabalho fácil e gozam de benefícios imensos, e é por isso que não é importante falar que com sorte tem seu piso de R$2100 respeitados.
O autor confunde ali direitos trabalhistas com privilégios docentes. Como Castro não mencionou até aqui quanto ganha o professor, o leitor pode estar imaginando que professores se aposentem com um salário integral de vários milhares de reais. Mas não, professores tem um salário baixo e ‘aposentar com salário integral’ não quer dizer que continuem recebendo o mesmo, já que professores, como servidores públicos, tem seus salários aumentados com atribuições adicionais, que não alteram seu salário base, como promoções ou adicionais por pós-graduação. Portanto, estas atribuições não contam para a aposentadoria
Depois Castro apresenta uma conta absurda e absolutamente hipotética. Questiona as férias dos professores, e ainda erra na conta pois o recesso não é férias, já que há reuniões e planejamentos; soma licenças-prêmios que muitas vezes nunca serão tiradas, intervalo de Natal que já está contado nas férias… Inacreditavelmente, até licenças-maternidade entraram na conta! Disso tudo, grande parte do tempo somado também estaria incluído nos benefícios da CLT (como 30 dias de férias). Castro então fabrica o número descabido de que professores trabalhem 6 a 11,5 anos a menos que todos os outros cidadãos, eis aqui seu esforço de colocar o leitor contra o professor.
Fechando o cúmulo da afirmação sem evidência, o autor afirma que esteja “cabalmente demonstrado que tais diplomas (mestrado e doutorado) não melhoram o rendimento dos alunos”. Cabalmente onde e por quem? Parece que não precisamos saber. O porém é que desde a década de 1960 há pesquisadores que afirmam que dentre as variáveis escolares, a formação dos professores, incluindo os diplomas de pós graduação, seja a variável com maior impacto sobre o desempenho dos alunos.
Por fim, o autor nos traz o batido discurso da falta de meritocracia na carreira docente e o excesso de professores nas redes públicas. Ignora o fato de que faltem professores, de que professores adoeçam pelo excesso de trabalho e falta de suporte, de que jovens estejam desistindo da carreira docente… Mas nada disso importa, tampouco importam dados e uma discussão honesta sobre a educação. O objetivo deste artigo é claro: propagar o discurso de que o professor seja o culpado de uma educação de baixa qualidade, e abrir caminho para reformas já propostas ou em andamento, como a derrubada do piso salarial nacional. E isso a gente não pode deixar quieto.
*Marina Avelar é Doutoranda no UCL Institute of Education – University of London, onde pesquisa o trabalho da filantropia empresarial na política educacional. Anteriormente, cursou pedagogia e mestrado em educação na Unicamp. É International Partner da Igreja Allsouls, em Londres, onde foi líder do ministério com estudantes internacionais.
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Carlos Nascimento
Parabéns pelo post!!!
Esclarecedor…só entende a verdade dos fatos…que a vivencia no seu cotidiano…
Alexandre
Eu acho que seus argumentos para rebater as opiniões do autor do artigo é que foram lamentáveis. Continuo, com algumas reservas, com a opinião do colunista.
Paulo Oliveira
Oh Alexandre, os argumentos foram “lamentáveis” por que motivo? Será que é porque trata o que é complexo como sendo complexo? Mostre então porque serim “lamentáveis” tais argumentos! Se é que você sabe a diferença entre um argumento (racional) e um comentário de reprovação – sem elaboração argumentiva ou base fática alguma..
João Frederico c. a. meyer
Lamentável o artigo. Como Matemático tenho motivos de sobra parauvidar de tudo o que não é comprovado numericamente… Falta de dados? Falta de informação? Falta de seriedade? Para ser manifestar é bom verificar esses números para o Brasil todo e para muitos países. Mas qual seriam os objetivos desse texto tão desprovido de comprovações numéricas? Lamentável, mesmo que esperado…