Perfil de Lucy Yamakami e Silêda Steuernagel: como mulheres que nunca planejaram ser tradutoras foram responsáveis pela difusão da obra de John Stott em português

 

Por Abraão Filipe Marques de Oliveira*

 

A ABU Editora é conhecida pela qualidade do conteúdo dos livros que produz. Entre os autores que colaboram para esse catálogo primoroso, um dos principais é John Stott: o pastor inglês que dedicou a vida inteira a mergulhar na Palavra e pregá-la. Desde as primeiras publicações, no início da década de 1970, sua obra é lida por todo o movimento estudantil ao redor do mundo.

 

No Brasil, é impossível falar do impacto da produção de Stott sem fazer referência a aqueles e aquelas que se lançaram no trabalho de transpor suas ideias para o nosso idioma: palavra por palavra, frase por frase. Afinal de contas, parafraseando o texto bíblico de Romanos 10, verso 14, como conhecerão (ou lerão), se não há quem traduza?

 

“Você escolheu uma profissão que é exercida no silêncio” – disse John Stott a Silêda Steuernagel, na última vez em que se encontraram, na cozinha do John Griffin (editor-chefe da ABU Editora, entre 1987 e 2000): “Ali Stott me deu conselhos que eu nunca esqueci. Ele me agradeceu por traduzi-lo e me fez ver: o tradutor é simplesmente porta voz. Isso mexeu muito comigo”, recorda Silêda, “ele não me via como tradutora, mas sim como uma companheira de missão”.

 

Falar do trabalho dela enquanto tradutora é falar de sua história com a Aliança Bíblica Universitária do Brasil – ABUB. Formada em Letras pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, apaixonada por livros desde criança, a nordestina sonhadora não imaginava que seus planos seriam encontrados pelos sonhos de Deus.

 

Em 1973, em um Curso de Férias, Silêda foi convidada para assumir o cargo de Secretária de Literatura e liderar um novo e intenso programa de formação bíblica entre os estudantes. Foi uma experiência “muito, mais muito forte”, nas palavras dela, que repete “muito” pausadamente e em tom mais grave, deixando soar na palavra a intensidade da experiência.

 

Silêda conta como aceitou o desafio: “eu disse ‘não’ para a estrada já asfaltada, a carreira acadêmica que eu tanto sonhava, e disse ‘sim’ para ser estagiária por um ano, usando meu dom para servir à literatura da ABU. O que eu não sabia é que isso seria uma guinada total na minha carreira profissional”. Embora o sim tenha sido para ficar um ano, Silêda atuou por dois anos consecutivos na secretaria de Literatura, em 1974 e 1975.

 

Em 1978, Silêda retornou a São Paulo, agora como chefe de Editoração da recém-fundada ABU Editora. A equipe era pequena e o trabalho era árduo, contando com muitos voluntários. Aos poucos, pela pressão das circunstâncias, surgiu sua face de tradutora. A necessidade de trazer para o público da ABUB “as grandes referências” da época estimulou o trabalho de tradutora: “a primeira fase do meu trabalho com a ABU Editora, na realidade, era como revisora. Quando eu cheguei em São Paulo, o meu papel como secretária de Literatura era corrigir tudo que passava pela minha mão. Revisão de conteúdo, de estilo, de gramática e também de tradução. Eu estava fazendo o que eu amava, que era corrigir. Eu fui revisando e me tornando conhecida como revisora. A tradução veio na carona. A empolgação de estar fazendo o que gosta e de estar diante das grandes referências de nossa geração era um combustível a mais para seguir, não um fator paralisante”.

 

Lucy Yamakami: “por acaso”

Com Lucy Yamakami não foi diferente. “Fui parar na tradução por acaso”. O acaso colocou nas mãos de Lucy a responsabilidade de traduzir algumas das obras de John Stott mais lidas e conhecidas no Brasil, como A Bíblia: o livro para hoje (atualmente em reeditoração), A Mensagem de Atos (da série A Bíblia Fala Hoje), O Incomparável Cristo e A Igreja Autêntica — exatamente nessa ordem. A soma corresponde a mais de mil páginas escritas por John Stott e traduzidas por Lucy.

 

“Olha, eu fico surpresa de alguém querer me entrevistar, porque não tem muita graça conversar comigo. Não tenho quase nada…”, dizia Lucy no início da conversa. Cinquenta minutos depois, ao final da entrevista, afirmava: “Ser tradutora de Stott?!”, pausa por uns segundos… “É uma honra, um presente de Deus! Com tantos tradutores no país, tanta gente que teve contato com o Stott, que estudou e foi discipulada por ele… Realmente, é uma honra, um privilégio muito grande.”

 

Lucy integra a comunidade Nikkei de São Paulo. Ela nasceu no Brasil, tendo pais e avós japoneses. Suas experiências de vida a forjaram como tradutora. “Com meus avós, a gente só falava em japonês. Com meus pais, era uma mistura de português e japonês. Então toda vida eu falei duas línguas. Com 11 anos me botaram para aprender o inglês, e eu gostei!”. Crescer entre as diversas línguas a fez desenvolver, desde criança, habilidades que utilizaria no futuro, como tradutora: “Essa coisa de passar uma ideia de uma língua para outra e não precisar ser ao pé da letra já fazia parte do meu jeito”.

 

Com a naturalização da experiência multilíngue, Lucy atua como tradutora mesmo sem ter uma formação específica da área. “Foi tudo muito empírico. Eu não estudei inglês, não estudei português, nem literatura [no ensino superior]. Fiz colegial só. Dois anos de Seminário em um Instituto Bíblico, muito básico, e mais algumas matérias avulsas que eu fazia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Lá, fiz um trabalho em que tinha que ler um livro de uma editora e comentá-lo. Aí eu reclamei: as páginas tal e tal estão com problemas de tradução. Petulante, né?!”, conta ela, rindo. “Então comecei trabalhar como revisora dessa editora, isso em 1989. E aos poucos passei para tradução”.

 

Num dos momentos de sua vida, chegou a São Paulo, em 1991, com os três filhos e o marido, que é pastor. Uma família que já tinha passado por Londrina (no Paraná), Bastos e São José dos Campos (dois municípios no interior de São Paulo) e acabou se encontrando na capital. A sua primeira experiência realmente como tradutora foi na ABU Editora, com A Aids e os Jovens (do Dr. Patrick Dixon), obra publicada em 1992.

 

Lucy é cuidadosa. Para ela, as principais marcas para a tradução [de Stott] são a escrita simples e a cadência na organização. “O maior desafio é fazer numa linguagem boa aquilo que o Stott faz na sua própria língua. Porque ele escreve simples, então queria escolher palavras mais simples também, fazer uma frase mais direta”, confessa. “Eu gosto de escolher bem as frases. Gosto de achar palavras que cabem melhor. Então, eu sou capaz de passar um tempão procurando. Pensando como a pessoa falaria essa frase em português. O que vem primeiro, o que vem depois, e como o leitor vai conseguir entender sem ficar indo e voltando. Eu gosto desse quebra-cabeça”, diz rindo, com tanta serenidade que realmente faz acreditar que se trata de um jogo simples e divertido.

 

 

 

 

 

 

Lucy concedeu a entrevista da sua casa, em São Paulo.

 

Detalhes e “a linguagem da fé”

As duas tradutoras, Silêda e Lucy, dizem que é um trabalho que exige atenção aos detalhes. E percebem nos escritos de J. Stott algo encantador: simplicidade e profundidade, simultaneamente.

 

Para Silêda, a sobreposição das duas características era desafiadora. “Como tradutora foi um desafio enorme para mim. Como é que eu poderia não trair e escrever com precisão, em português. Isso é um trabalho espiritual. Mas eu sentia que Stott falava a minha língua, ele falava a linguagem da minha fé, a fé que tinha me formado e isso fazia toda a diferença. Era o conhecimento bíblico que eu ansiava” – afirma Silêda, que acumula nas experiências a tradução do último livro da série As Crônicas de Nárnia, do também britânico C. S. Lewis.

 

Lucy destaca a dimensão do serviço cristão na tradução de livros. “Eu, quando pego um livro, se ele está mal escrito eu largo. Então, um livro bem traduzido já é um incentivo para alguém ler…”, defende Lucy, “a pessoa não fica fazendo muito esforço para entender. Eu acho que é uma forma de serviço cristão que a gente presta. E o Stott fala com a gente na linguagem da gente, sem usar palavras difíceis, sem fazer frases rebuscadas”.

 

É interessante observar como traduzir os escritos do Stott teve impacto na vida de ambas as profissionais. “O Incomparável Cristo é o mais impressionante. Porque a estrutura, enquanto livro, eu nunca vi. Não conheço nenhuma obra que tenha esse tipo de estrutura de ver Cristo por todos os ângulos, como ele conseguiu. Não imagino que alguém mais possa ter inventado um livro desse tipo”, compartilha Lucy. “Escolher os personagens que ele escolheu, a perspectiva que ele dá de igreja no mundo, como o mundo latino-americano vê Cristo. Nossa, é muito legal!”, exclama, sem esconder o entusiasmo com a obra.

 

Silêda, que foi obreira e assessora entre os universitários tanto do nordeste quanto do sul do país, traduziu vários livros do Stott. A Verdade Do Evangelho e A Mensagem de Romanos foram alguns deles, publicados pela ABU Editora. Este último — lançado em 2000, com 528 páginas — foi uma experiência de “discipulado literário”, traduzido em conjunto com o filho, com o intuito de treinarem a língua inglesa. “Praticamente um curso de teologia bíblica na companhia do pastor Stott”, conta ela.

 

Silêda mostra A mensagem de Gálatas, o primeiro livro que revisou na ABU Editora. A edição que ela tem em mãos traz uma dedicatória do próprio John Stott: “Muito obrigado pelo seu trabalho de amor!”

 

Quando perguntada sobre a experiência que mais lhe marcou, a voz da Silêda nos leva longe. Sua memória é firme. “Foi quando eu terminei de traduzir o ‘Ouça o Espírito, Ouça o Mundo’. Eu me lembro exatamente do momento em que fechei o computador, tirei o disquete. O Valdir e os meninos estavam me esperando na mesa para almoçar e eu pedindo mais uns minutinhos. E eu cheguei lá com o disquete na mão e disse: ‘nasceu, finalmente! Finalmente, eu acabei!’ E eu desmaiei, de tão intensa que foi essa sensação de conclusão. A linguagem mesmo é de um parto, de uma gestação difícil, desafiadora, que deu à luz algo que não seria só meu”. Pela intensidade da cena que Silêda descreve, percebemos a força dessa obra, não só pelo volume de páginas, mas também pela sua densidade e riqueza.

 

Coincidentemente, o marido da Lucy Yamakami trabalhava no escritório da ABU Editora na época e foi quem revisou esse clássico, lançado com o título diferente do original – que em português seria “O cristão contemporâneo” (The Contemporary Christian). A avaliação de Silêda é que a simples tradução do título original “parecia muito passivo, muito igrejeiro”, com pouca identificação para aquele momento dos evangélicos em nosso país.

 

Nesse período em que celebramos os 100 anos do nascimento de John Stott, os relatos dessas mulheres são uma forma de louvarmos ao Senhor pelo florescimento do seu legado. Um homem. Duas mulheres. Pessoas simples, à serviço do Rei e à disposição do Espírito. Plantados pelo Eterno para revelar a sua glória!

 

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*Abraão Filipe é acadêmico do 5º período de Jornalismo na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Natural de São Mateus-ES, atua na ABU Editora como estagiário de Produção de Conteúdo e é presidente do Grupo Base da ABUB em Viçosa-MG. Com supervisão da jornalista Priscila Vieira.

 

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