Por Cleres Pacheco

“Imagine” é o título de uma canção. Muito famosa que faz com que viajemos no nosso desejo de liberdade e paz. Talvez a pergunta que soa em nossos ouvidos neste momento é: O que tem a haver a música com a realidade que estamos vivendo? Realidade esta que tem trazido sofrimento em vez de paz.

Imagine você indo dormir como de costume, fazendo o que faz todas as noites: os casais se beijam e dizem “até amanhã”, os filhos pensam nas tarefas e nas aulas que terão, os pais no trabalho e nas contas a pagar, os jovens preocupados com suas provas na faculdade e no desejo de um dia serem bem-sucedidos. Tudo isto dentro de uma normalidade de vida do dia a dia.

Imagine, no dia 24 de fevereiro de 2022, às 5 horas da manhã, toda essa rotina sendo mudada em um grande pesadelo. Ao invés do silêncio da madrugada e dos poucos transeuntes e carros que já circulavam, ouve-se o som de bombas caindo, destruindo e matando. Uma ucraniana que mora na Polônia contou-nos que estava dormindo e, de repente, o seu telefone começou a tocar. Do outro lado da linha, sem poder entender muito bem, sua família falava em desespero sobre bombas caindo, segundo ela, parecia que ela estava dormindo e tendo um pesadelo. Era exatamente esta a sensação que todos estavam tendo, ninguém podia acreditar que depois de 77 anos desde que a Segunda Guerra mundial acabou, alguém havia tomado a decisão de assassinar milhares de pessoas por um projeto de poder.

Imagine agora que a vida de milhões de ucranianos já não é a mesma, não só a dos ucranianos, mas de todo o mundo que estava perplexo com o que estava vendo. Milhares de pessoas correndo para fugir do país deixando para trás suas casas, empregos, escolas pensando que a única esperança que tinham era de sobreviver. As longas filas e horas na fronteira era nada comparado ao que estava acontecendo nas cidades bombardeadas. Nas suas mãos somente o suficiente para não morrer durante a viagem de fuga. O lema neste momento era “sobreviver” e somente isto, não importava para onde, mas o mais importante era estar onde não há bombas caindo e soldados russos atirando em tudo que se move.

A perplexidade diante dos fatos fizera com que o sentimento de solidariedade brotasse no coração de poloneses que sabiam muito bem o que é ser perseguido e viver as dores de uma guerra, afinal a Polônia, em toda a sua história, sempre lutou por liberdade e agora é hora de ajudar os que estão perdendo a sua e não os deixar desistir e, sim, acreditar. Milhares de poloneses de imediato abriram as portas das suas casas para acolher pessoas que nunca viram, alimentá-las, oferecer um teto e, o principal, segurança. Milhares de carros a toda a hora chegavam na fronteira para buscar famílias e levarem-nas para um local de refúgio. Até o meio do dia 6 de março estavam passando pela fronteira homens, mulheres e crianças; mas já no começo da noite veio a ordem de que nenhum homem de 18 a 64 anos poderia passar, pois era hora de lutar pela liberdade de sua pátria.

Imagine, milhares de mulheres e crianças ucranianas vindo para a Polônia em busca de paz, mas com o desejo de voltar para logo para sua pátria, suas casas, dormir na sua cama, ir para sua escola, ir para o seu trabalho, até mesmo a conversa com a sua vizinha fazia falta. São muitas as histórias de dramas vividos por elas; cicatrizes que ficarão. Lembro-me que recebemos uma jovem de 16 anos que viajou durante quatro dias para chegar à Polônia, na nossa cidade. Recebemos um telefonema perguntando se poderíamos hospedá-la por alguns dias pois ela estava a caminho da Espanha onde tinha família. Estávamos jantando todos juntos quando o telefone dela tocou; o simples som fazia nosso coração palpitar mais rápido, pois nunca sabíamos o que ouviríamos. Vimos quando as lágrimas começaram a descer do rosto e logo os gritos de desespero tomaram conta da nossa casa. Horas antes o exército russo tinha bombardeado uma maternidade onde muitos recém-nascidos e mães tinham morrido; naquela hora não tínhamos palavras de consolo, não sabíamos o que fazer, nossas lágrimas se uniram às dela e começamos a orar. Ela não era convertida e não sabia o que estávamos fazendo, mas se juntou a nós nesse momento de dor.

Imagine ajuda humanitária chegando de todos os lados para os refugiados, nossa vida se transformou do dia para a noite. Por todos os lados víamos pessoas se movimentando para ajudar, de todo o mundo recebíamos ligações oferendo auxílio, a solidariedade era algo que jamais tinha visto em uma escala tão grande como estava acontecendo. Em questão de dias, milhares de ucranianos estavam sendo abrigados, alimentados, leis sendo modificadas para regularizar o mais rápido possível sua situação na Polônia. Nós, como igreja, começamos a trabalhar para ajudar o maior numero de pessoas possível. Irmãos pegavam seus carros e iam para fronteira buscar mulheres e crianças, as casas dos irmãos se transformaram em abrigo, enfim estávamos tentando trazer alguma forma de normalidade para os refugiados. O mais difícil era quando tentávamos conversar e ouvir como estavam se sentindo e eles começavam a contar as suas histórias, a medida que contavam nosso coração doía e as histórias nos deixavam sem palavras.

Nossa igreja esta localizada ao lado de uma escola de artes. Antes da guerra já havia milhares de ucranianos trabalhando na Polônia por causa da crise econômica no país. Na escola, há uma senhora que era professora na Ucrânia e que deixou seu emprego para vir trabalhar e ajuntar dinheiro para poder comprar um apartamento. Foram alguns anos limpando em vários lugares, economizando para voltar para sua pátria; o tão esperado dia havia chegado, despediu-se e disse que já tinha o dinheiro para comprar o apartamento; agora imagine que ela pagou o apartamento na planta ainda, que começaria a ser construído no momento que a guerra estourou, seus sonhos e seu esforço arruinados. Correndo saiu agora não para trabalhar, mas para salvar a sua vida. Conversando com ela, é possível ver a esperança de que vai voltar para o seu país e verá o seu apartamento ser construído.

São muitas as histórias como a que acabei de contar, mas algumas nos deixam sem chão em embaixo dos pés e o desejo de voltar o tempo e mudar a pergunta para não ouvir a resposta dada. Junto com minha esposa, lideramos o trabalho com jovens da igreja, nos reunimos todas as sextas; em uma das nossas reuniões apareceu uma adolescente que foi convidada por um dos nossos jovens. Como de costume demos as boas vindas e perguntei o que ela mais sentia falta; de imediato respondeu: “Da minha casa”, até aí normal, ela continuou falando que um dia antes da guerra começar eles haviam mudado para a casa que acabaram de comprar; nesse momento me perdi, não sabia mais o que falar, não tinha palavras, o silêncio tomou conta da nossa reunião.

Todas as histórias são impactantes, mas talvez uma das mais marcantes é a de uma família, mãe com três crianças recém-chegadas da área de conflito, que foi até um dos pontos de doação de alimentos e roupas. Quando um dos voluntários começou a conversar com as crianças e perguntou a elas: “O que vocês mais gostam da Polônia?”. A resposta foi chocante: “O que mais gostamos é que todos os dias não precisamos correr para nos esconder no porão para nos proteger das bombas”. Histórias como estas temos ouvido aos montes, crianças tiradas da sua rotina, da sua escola, longe de seus amigos, em um país onde não falam a sua língua, não vivem em suas casas nos seus quartos, essa é a realidade que estão enfrentando. Só Deus poderá curar a sua alma e mostrar-lhes uma perspectiva para futuro.

Nossos irmãos ucranianos estão resistindo bravamente, lutando pela sua pátria, muitos deles, simplesmente estão arriscando suas próprias vidas para poder ajudar seus conterrâneos, encontrando forças onde não têm, forças estas que vêm do Senhor. Quantas vezes lemos na Bíblia histórias de pessoas, de reis cuja situação estava perdida. Eram menores e menos preparados que outros e, no final, o triunfo foi daqueles que confiaram em Deus e na força do seu poder, um exemplo claro foi de Josafá que estava em menor número e não precisou sequer colocar as mãos em espadas, o próprio Deus deu o livramento.

Esperamos em Deus o cessar desta guerra, para que os milhares de ucranianos voltem para suas cidades e casas, para poderem reconstruir o que foi destruído. Cremos que Deus dará tudo o que é necessário para eles reconstruírem e, no final, poderão dizer: “Até aqui nos ajudou o Senhor”.

  • Cleres Pacheco, pastor da Igreja Presbiteriana Renovada e Missionário da Missao Antioquia em parceria com a Mispa (Missão Priscila e Áquila), morando com a família na Polônia há 20 anos.

 

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