Vale a pena ler de novo

 

Matéria publicada há 40 anos na revista Ultimato. Ainda atual!

Artigo publicado há 40 anos na revista Ultimato. Ainda atual!

Poucas pessoas têm a nobreza de caráter e a delicadeza de espírito daquele que escreveu a maior parte dos Salmos, o livro mais lido da Bíblia. Oitavo e último filho de Jessé, ruivo, de grande talento, homem de fé, ao mesmo tempo forte e corajoso, sisudo em palavras, profundamente humano, desprovido de vaidade, espírito de vingança, nascido em Belém da Judeia. Davi começou a vida exercendo a profissão de pastor de ovelhas. Saiu da obscuridade de repente, ao aceitar por conta própria o desafio de Golias. Pouco depois tornou-se chefe da guarda pessoal e genro do rei Saul. A sua popularidade foi tal, que despertou os ciúmes do rei e foi obrigado a fugir por tempo indeterminado. Neste período juntaram-se a Davi “todos os homens que se achavam em aperto, e todo o homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles” (1Sm 22.2). Com a morte de Saul, Davi foi aclamado rei e tratou com benevolência os seus inimigos. Fez o que era agradável aos olhos de Deus, a ponto de se tornar padrão para os demais reis, até o cativeiro babilônico. Mas há um grave senão, que a Bíblia não oculta: “Davi fez o que era reto perante o Senhor, e não se desviou de tudo quanto lhe ordenara em todos os dias da sua vida, senão só no caso de Urias, o heteu” (1Rs 15.5). O chamado caso de Urias foi o escândalo provocado por um escorregão moral de grandes proporções envolvendo o rei e Bate-Seba, a mulher de Urias. A análise cuidadosa deste famoso adultério e de suas consequências há de produzir nos leitores boa dose do temor do Senhor e oportunas advertências para o dia de hoje. Para tornar as cousas mais vivas, apresentaremos os fatos por meio de uma suposta entrevista com o autor da comovente confissão do Salmo 51. As respostas colocadas na boca de Davi têm base bíblica e uma dose muito pequena de imaginação.

 

A concupiscência dos olhos

 

Ultimato – Ninguém poderia supor que o Rei seria capaz de todas aquelas misérias contidas no 11º capítulo do 2º livro de Samuel…

Davi – Nem eu tampouco. Posso, no entanto, garantir que não foi uma cousa premeditada. Fui tomado de surpresa.

 

Ultimato – Os psicólogos dizem que há uma idade considerada perigosa, entre os 31 e os 50 anos, um período de tumulto interior, quando a juventude já acabou, mas a velhice ainda não se estabeleceu. O Rei pecou quando estava nesta faixa?

Davi – Sim, mas não exagero o valor destas pesquisas. Se há crises de idade, não há algo como dispensa de certas obrigações morais, que devem ser guardadas a qualquer custo, para o nosso próprio bem. José era jovem sadio e solteiro quando, em circunstâncias tremendamente favoráveis ao pecado, rejeitou a proposta da mulher de Potifar, sob a alegação de que pecaria contra Deus (Gn 39.7-20). Jamais tentei desculpar o meu pecado.

 

Ultimato – Como o Rei explica o seu adultério com Bate-Seba?

Davi – Creio ter havido o concurso dos seguintes elementos: 1º) Naqueles dias eu não estava fazendo o que deveria fazer. Meu lugar era o campo de batalha e não Jerusalém (2Sm 11.1 e 12.26-31); 1Cr 20.1). 2º Dei um valor exagerado ao ímpeto das paixões. Dispus-me a satisfazer a carne de imediato, sem mais nem menos. Por esta razão passei por cima de tudo e contrariei inclusive certas facetas de minha personalidade. 3º) Além disto, provavelmente porque atravessava um período de relativa segurança e facilidade, o meu relacionamento com Deus não estava na melhor fase.

 

Ultimato – Por que não inclui a falta de recato de Bate-Seba entre os elementos que o levaram ao pecado?

Davi – Não há dúvida de que houve da parte dela uma provocação. Mas não se pode depender da ausência de tentação para se viver corretamente. O mundo inteiro jaz no maligno e tudo que já no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede de Deus neste ambiente hostil (1Jo 2.15-17; 5.19). Foi aí que eu falhei, porque fiz a minha vontade. Não há aquilo que se chama pressão esmagadora da carne, pois a tentação é humana e não divina, e Deus não permite que sejamos tentados além das nossas forças (1Co 10.13). Também não se pode confundir sexo com pecado. O sexo faz parte da criação de Deus e é elemento indispensável na biologia atual. Pecado é aquela tendência sempre presente de não se aceitar as regras do jogo, a presunção de achar que Deus não existe ou, se existe, não ditou lei alguma.

 

A diferença entre perdão e correção

 

Ultimato – Parece que o pecado trouxe alguns problemas para o Rei.

Davi – Primeiro, a preocupação de ocultar o ocorrido. Segundo, a gravidez indesejável de Bate-Seba. Terceiro, o fracasso da tentativa de trazer o marido dela do campo de batalha e fazê-lo estar com ela, para que o filho fosse tido como de Urias.

 

Ultimato – Foi aí que o Rei resolveu matar Urias, um e seus valentes (2Sm 23.39)?

Davi – Não o matei com as minhas próprias mãos. Enviei por Urias uma carta ao comandante do Exército, ordenando que pusesse o marido de Bate-Seba na frente da maior força da peleja para que a morte dele parecesse acidente de guerra. Tenho repugnância disto tudo, especialmente da falsidade e da maldade de meus atos. O pecado nunca vem só. Ele cria um círculo vicioso e ilude.

 

Ultimato – Depois da morte de Urias, o Rei levou a viúva para o palácio e a fez sua mulher. Houve algum problema de consciência?

Davi – O pecado insensibiliza. Só acordei para a hediondez de minha conduta meses depois, por ocasião do nascimento de nosso filho, quando a palavra do Senhor veio a mim por intermédio do profeta Natã.

 

Ultimato – Foi nesta ocasião que o Rei compôs o Salmo51?

Davi – Minha alma se derreteu como cera. Nunca senti tanto a necessidade de perdão e purificação. Orei para que o Senhor me lavasse completamente da minha iniquidade, não retirasse de mim o seu Santo Espírito e me devolvesse a alegria da salvação.

 

Ultimato – Deus o perdoou?

Davi – Enquanto calei os meus pecados, não obtive cousa alguma do Senhor. Mas, quando confessei tudo que havia feito, ele me perdoou. Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada e cujo pecado é coberto (Sl 32.1-5).

 

Ultimato – Se Deus o perdoou, por que, então, feriu a criança?

Davi – É necessário fazer distinção entre perdão e correção. Deus me livrou da culpa, mas não me poupou das consequências naturais do pecado. Por meio do perdão, eu me aproximei dele outra vez, reatei a comunhão perdida, achei-me purificado de minha iniquidade, encontrei ânimo e alegria para viver e livrei-me de sua mão que pesava sobre mim dia e noite. Por meio da correção, Deus mostrou o seu desagrado pelo meu pecado e os homens viram que ele é Deus zeloso. O Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe (Hb 12.6). A vara e o cajado de Deus me consolam (Sl 23.4).

 

Ultimato – O Rei nunca teve um sentimento de aversão por Bate-Seba?

Davi – Por que o teria? Quando a criança morreu, fui a ela e consolei-a. Não a deixaria sozinha numa hora desta.

 

Ultimato – A natureza humana tem dificuldade para acolher crítica e repreensão. Quanto mais alta a posição do indivíduo, maior é esta dificuldade. Guarda o Rei algum rancor contra o profeta Natã?

Davi – Natã veio a mim por ordem do Senhor. Não havia nada de pessoal nas palavras dele. Graças ao profeta, o círculo vicioso criado pelo pecado se rompeu. Portanto, nada tenho contra ele. Quando Bate-Seba me deu à luz o segundo filho, Salomão, este dentro do matrimônio, eu o entreguei nas mãos de Natã (2Sm 12.25). Anos a fio o profeta foi amigo particular da família. Ele teve papel importante para que Salomão subisse ao trono após a minha morte (1 Rs 1.5-31). Dois filhos dele foram oficiais de meu filho (1Rs 4.5).

 

Os riscos a longo prazo

 

Ultimato – Natã anunciou que o Rei, por ter desprezado a palavra do Senhor, veria acontecimentos bastante desagradáveis, envolvendo membros da família real. Estas coisas se deram?

Davi – Elas foram acontecendo aos poucos. A primeira tragédia foi o incesto de Amnon. Este meu filho primogênito se apaixonou por uma meia-irmã, chamada Tamar, filha de outra esposa, forçou-a e abandonou-a. A segunda ocorreu dois anos depois: meu filho Absalão matou Amnon à traição para vingar a irmã, e fugiu para o exterior. Ao cabo de três anos, permiti que Absalão voltasse ao país, mas ordenei que permanecesse em sua casa, em Jerusalém. A liberdade total só a concedi depois de mais dois anos. A terceira tragédia deu-se quatro anos mais tarde: este mesmo Absalão furtou o coração dos homens de Israel para si e levantou uma conspirata contra mim. Fui obrigado a fugir de Jerusalém. Deixei dez concubinas para cuidarem da casa, e Absalão, para se mostrar odioso a mim, armou uma tenda no eirado e, à vista de todo o povo, coabitou com elas.

 

Ultimato – Mas tudo isto tem relação com o seu pecado com Bate-SEba?

Davi – O Senhor me disse por boca de Natã: “Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo, o qual se deitará com elas, em plena luz deste sol”.

 

Ultimato – Então, Deus é mau e vingativo?

Davi – Entendo doutra maneira. Eu provoquei o Senhor a agir, a descarregar a sua mão sobre mim, a exercer a sua própria justiça ou a sua ira. Já disse, e repito: o Senhor é Deus zeloso (Ex 20.5). Por esta razão, quando Simei, valendo-se da situação, me amaldiçoou e me atirou pedras, estando eu fugindo de Jerusalém, não permiti que Abisai lhe tirasse a cabeça, dizendo-lhe: “Deixai-o, que amaldiçoe, pois o Senhor lhe ordenou” (2Sm 16.5-14).

 

Ultimato – Quer dizer que Deus mandou Absalão possuir as concubinas do Rei?

Davi – Deus não mandou que ele fizesse isso. Foi Aitofel quem lhe deu este conselho. Também não foi Deus quem sugeriu que os irmãos de José intentassem contra a sua vida, mas o Senhor fez uso daquele crime como lhe aprouve e o transformou em bem (Gn 50.20). Deus tem tudo sob controle. Absalão agiu como quis e não deixou de responder por seus atos, mas Deus se serviu de tudo aquilo para cumprir o seu intento.

 

Ultimato – Diz-se que onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5.20). O Rei o comprova?

Davi – Acho notável que Natá tenha chamado Salomão de Jedidias, que quer dizer “amado do Senhor”. Foi este meu filho com Bate-Seba que ocupou o trono após minha morte. Exatamente ele conduziu o país ao período de maior glória e construiu o templo do Senhor em Jerusalém. O perdão de Deus é algo maravilhoso. É como se nada tivesse acontecido. Por esta razão, lê-se na genealogia de Jesus, de acordo com Mateus: “Jessé gerou ao rei Davi; e o rei Davi, a Salomão, da que fora mulher de Urias” (1.6)!

 

Nota: Artigo publicado na revista Ultimato de junho de 1976 (p. 6-7)

 

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