A Escolha da Morte
LA tinha estado em suas conversas, desde o começo. Seus discípulos o ouviam falar dela com frequência e naturalidade. Falava no sinal de Jonas; dizia que o grão precisava morrer para germinar; que aquele que nele cresse não morreria, eternamente; que aquele que quisesse salvar sua vida, perdê-la-ia, mas quem a perdesse, por sua causa, salvá-la-ia; que cada um deveria tomar a sua cruz e segui-lo. Ensinava-os sobre uma morte voluntária, para os apelos da carne e do mundo. Falava sobre uma “escolha da morte”, no momento de uma disputa; de uma discussão, de uma partilha de bens. Falava sobre a “escolha da morte” no andar da segunda milha, e no deixar a capa e a túnica. Para ele, um simples calar, como sacrifício voluntário, como oferta a Deus, seria sinal de vida interior. Da sua vida neles.
Incompreensivelmente, entretanto, em seus lábios a morte agora se transformava em símbolo do cordeiro que, ao morrer, traria vida. E assim a vida venceria, justamente por escolher morrer, em tantas circunstâncias em que, normalmente, nos apegaríamos aos nossos bens e direitos — como quem se apega à vida. Ao escolhê-la e acolhê-la, tornar-nos-íamos altruístas, humildes e mansos de coração.
Nestes últimos dias, porém, ele passou a se referir a ela de modo diferente; começou a falar dela como destino, como um encontro marcado. Dizia que precisava ir a Jerusalém, onde seria morto. E não havia quem o dissuadisse. Os discípulos chegaram a pensar que ele tivesse esquecido essas coisas, quando foi bem recebido em Jerusalém. Mas voltou a falar no assunto, ao celebrar a ceia da Páscoa. Ele parecia bem triste, por sinal. Agora usava metáforas lúgubres, sobre seu corpo ser comida e seu sangue bebida.
A reunião daquela quinta-feira foi um pouco desconcertante. Tinha tom de despedida. E a morte voltou sutilmente à cena, na figura de uma bacia e uma toalha, com as quais lavou os pés de seus discípulos. E os convidou a todos para esse sacerdócio de abnegação; esse ministério de serviço, que se construiria sobre a morte de egos, orgulhos e vaidades.
E partiu o pão como quem parte o próprio corpo; e serviu o vinho como quem asperge o sangue de um cordeiro sobre o altar da propiciação.
No jardim do Getsêmani ele estava muito aflito. Nunca havia sido visto assim, tão angustiado. Chegou a pedir a Deus que o livrasse da morte, que se avizinhava. Entretanto, aceitaria sua vontade com submissão. Não seria possível livrá-lo, ele sabia, porque para esse propósito ele viera. A morte fazia parte de sua missão; esse momento que a tantos atemoriza e diante do qual tantos fraquejam.
O antigo desafio é lembrado: “o que dará o homem por sua vida?” Tudo! — é a resposta do inimigo de nossas almas. “Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida”. Diante da morte, ele blasfemará contra ti na tua face (Jó 1).
Saindo do jardim, Jesus é preso e interrogado à exaustão. No dia seguinte, ele é espancado, julgado e sentenciado à morte de cruz.
Ao ser levantado, passa a experimentar, juntamente com as dores físicas, os terrores trazidos pela “súcia de cães” e pelos “touros de Basã”. A sugestão que trazem consiste em uma troca simples: Desiste! Amaldiçoa teu Deus e abreviaremos teu sofrimento. Porque, que pai há que permita tal coisa a seu filho, dito amado?
O príncipe das trevas, então, se aproxima, e traz consigo, em forma de acusação, a justificar aquele momento, todo o pecado do mundo. E lança aos olhos de Deus e do crucificado todo o mal, todo o engano, todo o pecado, toda mentira, traição, maldade, perfídia, sedução, lascívia, vício, gula. Faz presente todo o desejo insaciável de transgressão; toda a delinquência e blasfêmia; toda a mentira proferida no mundo. Nesse momento, as trevas são tão densas que, por pouco, não apagam “a luz do mundo”.
Com efeito, “desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a terra.” (Mt 27:45). É quando aquele que se impõe, decidido a esmagar, com o calcanhar, a cana quebrada e apagar a torcida que fumega; esse mesmo que cita as escrituras, reivindica do Pai, o que está escrito em Dt 21:23: “porquanto o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus”.
Diante disso, o Altíssimo desampara seu filho, que grita em agonia e desespero: “Eli, Eli! Lamá sabactani?!” (Deus meu! Deus meu! Por que me desamparaste?) Entretanto, talvez mais forte que a falta de ar; as fibrilações musculares, com reflexo nos furos dos pregos; talvez mais forte que contemplar a agonia de sua corajosa mãe, e debandada dos discípulos, seja o desamparo do seu Pai. Sim, nesse momento, ele está absolutamente só. Resta-lhe a fé; isso não lhe foi tirado: seu pai está fora das vistas, mas está em todo lugar. Certamente poderá vê-lo e ouvi-lo. Então, ele ora silenciosamente: “Não te afastes de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e, das presas do cão, a minha vida. Salva-me das fauces do leão e dos chifres dos búfalos; sim, tu me respondes. A meus irmãos declararei o teu nome; cantar-te-ei louvores no meio da congregação; vós que temeis o Senhor, louvai-o; glorificai-o, vós todos, descendência de Jacó; reverenciai-o, vós todos, posteridade de Israel. Pois não desprezou, nem abominou a dor do aflito, nem ocultou dele o rosto, mas o ouviu, quando lhe gritou por socorro” (Sl 22: 19-24).
Confortado pela oração, e percebendo que “ela” se aproxima, Jesus acrescenta, agora de modo audível: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Ao ouvir isso, um soldado precipita as coisas, enfiando-lhe na boca uma esponja embebida em vinagre nojento. Juntando, então, o que lhe sobrara de forças, disse, num fiapo de voz, que tudo estava consumado, e morreu (Jo 19:28-30).
Ato contínuo, as forças espirituais que mantinham disciplina, ao redor da cruz, irrompem em fúria incontida; eram pelo menos 12 legiões de anjos, e agem do mesmo modo que o exército de Israel, quando Davi levantou a cabeça de Golias. Conta-se que perseguiram os filisteus “até Gate e até às portas de Ecrom”. E diz-se ainda que “caíram filisteus feridos pelo caminho, de Saaraim até Gate e até Ecrom” (1Sm 17:52). Essa terrível cena de guerra passou quase despercebida aos habitantes de Jerusalém, a não ser pelo véu do templo, que se rasgava de alto a baixo, enquanto a terra tremia e as rochas se fendiam, “abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram; e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos” (Mt 27:51,52), e a luz do mundo, que se apagara, voltava a brilhar com incompreensível intensidade.
Naquele momento, a morte, tão presente na vida e nas palavras do Mestre, agora se transformava em poderoso meio de expiação, libertação e vida. A morte havia sido vencida! E, com isso, o diabo, o acusador, “a antiga serpente” fora desmascarada e humilhada em suas mentiras e chantagens; e exposta, ela e seus anjos, ao escárnio celestial. De fato, ela havia ferido o calcanhar do Filho do Homem, mas este agora lhe feria a cabeça. Porque a partir de agora, o grande trunfo de Satanás, a morte, não teria mais poder sobre aqueles que reivindicassem solidariedade nessa exuberante vitória.
Para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida”. (Hb 2:14,15)
Desse modo, o escrito de dívida ficou ali, cravado na cruz (Cl 2:14,15), agora como escrita de alforria sobre as almas contritas do mundo. “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Co 15:55). Porque quem morreu está justificado do pecado. Mais ainda: se com ele morremos, com ele também viveremos (Rm 6:8).
É assim que os discípulos de Cristo, por amor a ele, também escolhem a morte. Aceitam ser entregues à morte o dia todo, como ovelhas de matadouro; sabendo que, por meio daquele que nos amou, e aos olhos de quem importa que sejamos vistos, somos mais que vencedores (Rm 8:37).
No domingo, de madrugada… bem, esta história eu já contei. Intitulei-a “Χριστός ἀνέστη”.