Compartilhei, na Ultimato 361 (2016), sobre uma prática cristã recebida de meus pais, sobre a disposição consciente de ouvir a voz de Deus, num culto ou numa classe de escola dominical. Trata-se de uma tradição cristã bem corrente; passada de pais para filhos, e reforçada no púlpito. Refiro-me à oração: “Pai, fala comigo”.

Dizia eu que é tão comum essa oração ser feita no início dessas reuniões, que nem sempre lhe damos a devida atenção; e por isso nem sempre lhe dizemos um amém consciente. Quando ela não é feita ou sugerida, liturgicamente, seria o caso de orarmos, no íntimo, de modo a predispor o coração para ouvir a voz de Deus.

Eu considerava sobre o alcance dessa oração, quando feita intencionalmente; desejando ouvir a voz de Deus. Dizia da excitante expectativa que essa predisposição nos causa: “o próprio Deus falando comigo, pessoalmente?” Como assim!? Você ali, sentado no salão de culto, no meio da multidão, e, de repente, percebe que Deus está lhe falando?! Você sentado num “banco escolar” dominical, achando até que já conhece aquela lição; que é capaz de predizer o que o professor vai dizer em seguida, e, porque pediu “fala comigo, Senhor” o Altíssimo resolve lhe surpreender com uma palavra nova, inesperada; sussurrar ao seu coração alguma coisa íntima; tipo, entre você e seu Pai!? Pensar que essas mensagens de Deus, quando chegam assim, são tão reveladoras e transformadoras!

Entretanto, o que não consideramos, à época, foi que essa sucinta oração, tão fundamental, nem sempre garante que vamos ouvir da voz de Deus. Por que será?

Estou dizendo isso porque recentemente me peguei fazendo uma retrospectiva da minha “presença” nos cultos, ao retornar aos cultos presenciais. Sim, presença entre aspas, porque percebo em mim vários níveis de presença. Há dias em que estou todo ali, com um “fala comigo” bem consciente. Em outros, nem tanto.

Acho que há muitas razões para isso. Razões que me levam a não querer que Deus fale comigo. Claro que não oro pedindo: “Senhor, hoje não, por favor”. Mas é mais ou menos essa realidade. Essa indisposição pode advir de cansaços, turbulências, tristezas, aflições, iras, conflitos, soberba etc. Nessas horas, é bom pensar que Deus compreende essas impermeabilidades da nossa alma.

Quando o pastor nos recomenda: “prepare-se para o culto da noite”, ele está falando disso. Ele tem em mente algo como aconteceu com Elias, na caverna, fugido de Jezabel. Aquela alma tumultuada não ouvia a Deus. Mas Deus aguardou, até que ela estivesse pronta. Mas há também muita coisa que podemos fazer a respeito; daí a recomendação pastoral. Eventualmente, nossa impermeabilidade tem a ver com o filme que vamos assistir; com as atividades que vamos exercer, e até com os assuntos que vamos abordar em família no almoço (e a temperatura da conversa que nos permitiremos). Posso imaginar o apóstolo Paulo nos recomendando sobre as conversas das tardes de domingo, família reunida, em plena polarização política:

Longe de vós, toda amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e bem assim toda malícia (Ef 4,31).

Os que ainda tiverem ânimo para ir ao culto da noite certamente terão dificuldade de orar “Senhor, fala comigo”. Mas penso que, ainda assim, Deus, em sua gentileza, nos diria: “outro dia, então; está bem?” (Ap 3:20).

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