Por Sérgio Lyra

O registro do livro de Jonas retrata um contraste entre duas percepções diferentes sobre a missão urbana. O conflito entre as cidades de Jerusalém e Nínive, capital da Assíria com seu forte e perverso exército, mostrava um forte antagonismo, fato suficiente para produzir em Israel a rejeição de qualquer proposta de enviar missionários, produtores de paz e restauração para a cidade de Nínive. O caso de Jonas revela a realidade do dilema interno do profeta que produz uma fortíssima tentação para se desviar da missão. O Deus Eterno decidiu enviar seu profeta missionário para pregar o arrependimento justamente na principal cidade do povo inimigo. Seria essa uma “missão aceitável”? Não haveria uma “alternativa melhor”? Não seria tal proposta missionária uma “perda de tempo e esforços”?

Analisar o caso Jonas sob este prisma nos faz perceber que de um lado está a teologia urbana do profeta e do outro, a ação de Deus que lhe comissionou para a missão. A empreitada missionária de Jonas tinha como alvo a população da grande Nínive, cidade que estava situada na região superior da Mesopotâmia, tendo sido edificada por Nimrod, um poderoso caçador e fundador de cidades (Gn 10.11). Posteriormente, Nínive veio a se tornar a cidade capital da Assíria e se tornou conhecida pela sua perversidade, tendo como sua principal divindade Ishtar, a deusa da guerra e do amor.

Nínive era um centro urbano produtor de brutalidades e torturas militares, um centro de exploração do trabalho escravo e muitas imoralidades. Ela é mencionada pelo profeta Naum como “a cidade sanguinária” (Na 3.1). Suas obras artísticas eram repletas de sensualidade e a sua idolatria era abundante. A maldade de Nínive provocou a ira de Deus (Jn 1.2) e o aviso do seu julgamento fora divinamente decretado. Deus, assim, soberanamente convocou e ordenou a ida do profeta Jonas para pregar e advertir a cidade do julgamento que estava por vir sobre a cidade.

A ação divina de enviar um pregador a uma cidade gentia aponta para uma ação missionária centrífuga, ação que sai do centro para os extremos, nos moldes da missão igreja revelada no livro de Atos (At 1.8). Por esta razão, a missão de Jonas se torna um ensino explícito de que Israel, também, possuía responsabilidade proclamadora de ir ao encontro dos outros povos, em contraposição à ação centrípeta, ação que se orienta das extremidades para o centro. Esta ação apontava para Israel como o “showroom” do Reino, povo que deveria ser luz para as nações, missão enfaticamente registrada na maioria dos escritos do AT. Ao ressaltar este fato, Verkuys destaca que a tradução do livro de Jonas na Septuaginta utiliza o verbo “poreuomai” (Jn 1.2-3 e 3.2-3), o mesmo verbo que é utilizado no texto da grande comissão de Mateus 28 para indicar a ordem de ir, sair para anunciar.

O desvio missionário se instalou quando Jonas decidiu não compactuar com o “projeto Nínive”, nem muito menos desejou obedecer a missão projetada por Deus para salvar aquela cidade. Na verdade Jonas procura mostrar uma aparência de concordância com a ordem missionária (Jn 1.3), entretanto comprou uma passagem para Társis, uma espécie de paraíso turístico da época. O relato da história do profeta é um registro do mandato divino para uma missão urbana, missão que, no enfoque particular do texto, se caracterizou por uma ação denunciadora da violência e injustiças, acompanhada de uma chamada ao arrependimento. Lançando mão das cenas missiológicas nas quais Verkuys divide o livro de Jonas, escolhemos quatro que se apresentam importantes para a construção de uma missiologia urbana.

Cena 1: Jonas recebe novamente a missão
Jonas deveria proclamar na cidade de Nínive que o Senhor é Deus misericordioso, é Deus de salvação, mas que rejeita e pune a violência e a perversidade do pecado. Arrependimento era a condição indispensável, sem a qual Deus destruiria a cidade. Note bem, a mensagem que Jonas tinha recebido possuía duas partes. A primeira consistia na ordem de avisar à cidade que Deus haveria de trazer sobre ela um terrível julgamento. Porém, havia uma segunda parte da mensagem. Era nessa parte que Jonas deveria expor um pouco mais de teologia, mostrando o caráter misericordioso de Deus em perdoar quem se arrepende. Jonas deveria proclamar uma mensagem de livramento caso houvesse arrependimento, pois Deus é Deus perdoador e bondoso que não despreza o coração quebrantado e sincero (Sl 51), e isto o profeta conhecia muito bem.

Hermeneuticamente podemos utilizar a pessoa de Jonas como uma figura da igreja que tem sido enviada às cidades perversas e violentas e que, à semelhança do profeta, tem frequentemente apresentado razões pessoais para uma “missão alternativa”, desvios perigosos da ordem recebida de Deus. Quando a igreja toma “navios para Társis”, é pintado um quadro embaçado de evangelho, porém apenas por algum tempo, pois o plano missionário na cidade onde Deus tem dado um ministério a igreja, nunca será frustrado.
Com isto, um importante aspecto da missão urbana pode ser identificado: os membros da igreja possuem a responsabilidade de proclamar o duplo caráter da mensagem de salvação – um aviso de julgamento e uma chamada ao arrependimento. Esta tarefa foi confiada a todos, pois ser igreja é ser profeta missionário.

Merece destaque o fato de que Jonas possuía todos os recursos para ir diretamente à cidade de Nínive forma tranquila e até confortável. Dizemos isto pois ele teve como comprar sua ida para Társis. Comparando o contexto do segundo chamado e o primeiro há uma diferença imensa. O desvio abraçado por Jonas lhe custou grande sofrimento e até angústia de morte. O fato que depois de três dias de jejum e oração no mais indesejável dos lugares, o ventre escuro de um grande peixe, o profeta ouve novamente as mesmíssimas palavras vocacionais (Jn 3.1-2). A diferença agora é que Jonas não fingiu obedecer (Jn 3.3). Fica aqui o alerta contra a tentação de abraçarmos os perigosos desvios da missão que o Senhor nos ordena fazer e assim evitarmos grandes danos, dores e angústias. Obedecer a Deus logo de início é a melhor e mais sábia opção.

Cena 2: a cidade responde ao apelo
O fato de Jonas ter rejeitado ir a Nínive, apenas retratou o pensamento do povo de Israel que não via com bons olhos qualquer ação missionária de Deus que não se restringisse apenas aos seus limites nacionais, postura que praticada hoje reflete a ação exclusivista da Teologia de Gueto. Jonas sendo judeu, não podia se conformar que existissem razões plausíveis que pudessem justificar um profeta de Israel ir pregar em cidades gentias e inimigas, a não ser que fossem mensagens de denúncia e posterior destruição (Jn 3.5).
O fato, porém, é que Deus o mandara a uma cidade idólatra para anunciar juízo, mas também para proclamar arrependimento e perdão. Apesar do profeta ter omitido a condição do arrependimento em sua pregação, a reação dos moradores da cidade produziu uma ação positiva em direção a Deus, atitude que nunca ocorreu em qualquer cidade do reino do norte – Israel, durante todo o tempo de sua existência.

Ao se arrepender, o cruel rei ninivita cobriu-se de cinzas e vestiu-se de saco em símbolo de humildade e se tornou um modelo oposto de todos os dezenove reis idólatras de Israel, acerca dos quais as Escrituras dizem repetidas vezes “… e fez o que era mau perante o Senhor”. Nínive, a cidade perversa, imoral e idólatra se arrependeu. Seus governantes se arrependeram, suas estruturas de opressão e violência se renderam, um Shalom (ambiente de paz) antecipado se instalou. Deus demonstrou que a restauração de Nínive era resultado de uma missão sua, do seu senhorio e amor pelas cidades. Nas palavras de Gleason Archer Jr., “não teria havido muita razão de ser, a insistência de Deus que Jonas fosse a Nínive, se ele mesmo não estivesse disposto a tornar eficaz a pregação do profeta.”

Este é um ponto doutrinário da fé e da teologia que não deve cair no esquecimento: a “chamada eficaz”. Esta doutrina nos ensina que a conversão apenas se dará através da chamada irresistível do Espírito Santo ao pecador que está morto em seus delitos e pecados. É o próprio Deus que ordena o missionário anunciar e é o Espírito Santo quem capacita o pecador a ouvir e crer na Palavra da salvação. A ação do profeta Jonas entrou em conflito com a ordem missionária divina. O quadro tomou as seguintes cores contrastantes:

a) Deus ordena a pregação: trata-se da responsabilidade de pregar, ação que deve ser simplesmente obedecida pois é através da pregação do evangelho que Deus chama eficaz e soberanamente o pecador à salvação através do arrependimento.

b) Interesses nacionalistas pessoais de Jonas: o conteúdo do anúncio divino foi recortado pelo profeta e a parte acerca do arrependimento foi omitida. Todavia, o que Deus planejou realizar na cidade aconteceu. A falha de Jonas não pode ser utilizada como pretexto para se fazer missão de qualquer forma, assumindo-se que Deus fará a sua obra de um jeito ou de outro.

O povo de Deus precisa sempre agir como povo que busca a excelência no servir, povo servo-cruzador-de-fronteiras com uma mensagem de salvação em obediência a Deus “o qual deseja que todos os homens sejam salvos” (1 Tm 2.5). Povo que obedece ao Deus que convence o mundo do pecado da justiça e do juízo (Jo 16.8). Além disto, tão verdade quanto a doutrina da “chamada eficaz “ é a doutrina da “responsabilidade humana”. Jonas decidiu desobedecer e tal decisão o fez sofreu e fazer os outros sofrerem as angústias do quase naufrágio. Ele foi o responsável por todas as perdas materiais do navio e sofreu outras danosas consequências por ter desobedecido a Deus. Destaco também como resposta responsável a ação do povo ninivita que ao ouvir o juízo de Deus arrependeu-se em busca da misericórdia divina.

Reconhecendo que a conversão é uma ação exclusiva e soberana de Deus, de imediato se deduz que a ação restauradora que uma igreja venha a produzir nas pessoas de uma cidade não é o pronto resultado de métodos ou ações que os seus membros venha utilizar. Jonas, não pode ser considerado um pregador que anunciou “todos os desígnios de Deus”. Sua mensagem foi truncada e “enlatada” para os seus ouvintes.

O teólogo Antonny Hoekema resume muito bem a questão entre pregação e conversão. Ele denomina a pregação do evangelho de “Convite do Evangelho”. Afirma que o anúncio da mensagem e convite das boas novas deve ser feito por todos os crentes a todas as pessoas, e este convite não deve ser confundido com a doutrina da “chamada eficaz” que produz a conversão realizada pelo Espírito Santo.

 

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Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor do livro “Cidades para a Glória de Deus” (Visão Mundial). É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).

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