Quando se fala de “missões”, um dos problemas mais complexos, um verdadeiro quebra-cabeça para jovens que estão considerando um ministério transcultural é a questão de um chamamento missionário. Neste capítulo trataremos da necessidade e da natureza de tal chamamento, distinguiremos entre o chamamento e a direção de Deus e ainda daremos algumas sugestões de como receber este chamamento.

Primeiro, vale a pena logo advertir sobre duas posições extremas. Por um lado, alguns insistem que há um chamamento sobrenatural como o que Paulo experimentou para ir à Macedônia (At 16.9-10) e que este é o padrão para todo chamamento missionário. Geralmente se pensa em vozes, visões e acontecimentos misteriosos através dos quais Deus fala audivelmente. Outros alegam que não há nenhum tipo de chamamento exigido, já que a tarefa missionária cabe a todos os cristãos. Parecem duas posições extremamente contrárias. E para complicar mais, as duas demonstram um pouco a perspectiva bíblica, mas nenhuma a revela totalmente. Podemos desemaranhar esta questão?

UM CHAMAMENTO É NECESSÁRIO?

Esta é a pergunta que a segunda posição acima levanta. Se a tarefa missionária cabe a todos os cristãos, será que um chamamento é necessário?
Tudo depende do tipo de chamamento em que se pensa. A palavra “chamamento” é usada de várias maneiras no Novo Testamento. A maioria das vezes, se refere à vida cristã e não ao ministério. Há um chamamento geral de Deus (Rm 9.24-26), articulado por Cristo (Lc 5.32) para todos os crentes serem santos (Rm 1.7) segundo o padrão de Jesus Cristo (Rm 8.30). De fato, a igreja toda exerce um papel missionário (1ª Ts 1.18). Portanto, até certo ponto, podemos concordar com a segunda posição acima de que todo crente, por ser crente, possui um chamamento geral para a vida cristã, isto é, para a santidade (testemunho de vida) e evangelização (testemunho verbal). Isto é um chamamento geral e “automático” para todos os crentes.

Quer dizer que nenhum tipo de chamamento específico e especial existe? Não. Há também um segundo tipo de chamamento -ao ministério de tempo integral (At 6.4; 1ª Co 12.29). Este não é automaticamente para todos os crentes, como o primeiro tipo de chamamento, mas é resultado da operação específica de Deus. Paulo era apóstolo pela “vontade de Deus” foi constituído ou designado ou feito ministro (Gl 1.1; Ef 3.7; 2ª Tm 1.1). Não era o chamamento macedônio que constituía seu chamamento vocacional para o ministério de tempo integral, pois este já recebera antes (At 9.15; 13.2). O “chamamento” macedônico era mais propriamente a direção específica do Espírito para uma etapa do ministério de Paulo, e não o chamamento de vida.

O chamamento para o ministério de tempo integral é exemplificado por Jesus. Jesus chamou André e Pedro, e imediatamente o seguiram (Mt 4.20). Chamou Tiago e João, que também o seguiram sem demora (Mt 4.22).

Este é um chamamento ao ministério evangelístico de tempo integral (Lc 5.11), contudo não é necessariamente a um ministério missionário transcultural. Quanto a isto, reparamos em primeiro lugar que alguns protestam contra uma distinção entre o ministério “sagrado” (de tempo integral) e o ministério “secular” (de tempo parcial), mas Paulo aparentemente separa o ministério de carreira da vocação secular (At 20.24; 2ª Tm 4.7). É difícil escapar da convicção que a igreja primitiva considerou “oração e o ministério da palavra” como iguais ao que chamamos hoje de ministério de tempo integral. Em segundo lugar, que este chamamento é de tempo integral é evidente, pela observação que nenhum dos discípulos mencionados acima—André, Pedro, Tiago e João—jamais voltou à sua profissão anterior. E terceiro, reparamos que Paulo foi chamado para ser apóstolo, um ministro de tempo integral, quer como missionário para seu próprio povo judeu (um ministério monocultural) quer para o gentio (um ministério transcultural) (Atos 9.15; 13.2; 16.46) Por outro lado, ele foi dirigido por Deus duma maneira especial e específica para um ministério entre os gentios, um ministério transcultural (Ef 3.8). Mais adiante, voltaremos à distinção entre o chamamento de Deus e sua direção. Aqui, apenas ressaltamos que o chamamento de Paulo se referia à sua separação como ministro de Deus de tempo integral e que a especificação deste chamamento veio depois através da direção do Espírito Santo.

O QUE CONSTITUI UM CHAMAMENTO?

Poucas vezes vem como relâmpago caindo do céu. Mais freqüentemente é uma convicção profunda e crescente baseada em princípios bem definidos pela Palavra de Deus, testemunhada no interior pelo Espírito de Deus e confirmada no exterior pelo corpo de Cristo, a igreja. Vejamos cada um destes elementos do reconhecimento dum chamamento:

1. A PALAVRA DE DEUS. À medida que o crente anda com o Senhor à luz da Sua Palavra, ele descobre passo a passo o lugar onde escuta aquela voz que diz: “Este é o meu caminho, andai por ele” (Is 30.21). O discípulo cristão precisa reconhecer em primeiro lugar o senhorio de Cristo para ser sensível à Sua voz na leitura da Bíblia. Quem não se submete às diretrizes do Senhor, mal pode esperar receber orientação muito clara d’Ele. “Jesus Cristo é o Senhor” era a grande afirmação e o primeiro credo da igreja primitiva. Este fato deveria resolver tudo. Ele tem o primeiro direito na nossa vida.

2. O ESPÍRITO SANTO. O testemunho no interior do discípulo pelo Espírito Santo é mais intangível e pessoal, variando de pessoa para pessoa (Jo 3.8). Infelizmente, hoje em dia muitos cristãos não desenvolvem sua percepção espiritual. O Espírito Santo virou “doutrina” em vez da pessoa dinâmica que capacita o corpo de Cristo para o alcance missionário, como era comum na vida cotidiana da igreja primitiva.

É o testemunho do Espírito Santo que dirige o cristão e revela a vontade de Deus. A vontade de Deus é dupla: é geral e é específica. A vontade geral abrange toda a criação e se manifesta na Bíblia. Não há mistério quanto a ela. Por exemplo, quanto à perdição, a Bíblia revela que Deus não quer que ninguém pereça (2Pe 3.9). Entretanto, a condição eterna específica de cada um é outra questão.

A vontade específica de Deus é o que o Espírito Santo revela para cada crente. Isto varia entre os cristãos individualmente. Os detalhes da sua percepção não são tão claramente delineados. Para conhecê-la, deve-se ser renovado dia após dia em consagração (Rm 12.12). Exige tempo e disciplina para acertá-la. Dr. Leighton Ford, da Associação Evangelística Billy Graham, uma vez me falou que conhecer a vontade específica de Deus é como conhecer o cenário da próxima esquina—só chegando lá é que conhecemos. Isto é, precisamos tomar primeiro os passos diante de nós, que fazem parte da direção que já sabemos, para que chegando adiante conheçamos o que vem depois. Muitos cristãos tentam saber a vontade específica de Deus para suas vidas adiante, sem obedecer a vontade geral d’Ele para hoje.

3. O CORPO DE CRISTO, A IGREJA—A igreja local confirma exteriormente aquilo que o Espírito testemunha no interior. Este é um aspecto comum no Novo Testamento, mas levado pouco a sério hoje em dia. Na Bíblia, por mais claro que fosse o chamamento, sempre havia confirmação pelo igreja. Isto foi o caso tanto de Paulo e Barnabé (At 9.15; 13.2) quanto de Timóteo (At 16.1-2), Epafras (Cl 1.7; 4.12), Gaio de Derbe, Sópatro de Beréia (At 20.4; Rm 16.23).

O chamamento para o ministério de tempo integral só pode vir através do Espírito Santo, mas deve haver algum tipo de confirmação da parte da igreja local onde o indivíduo participa. Essa igreja conhece-o melhor. Se isto fosse feito, fortaleceria muito as mãos e encorajaria os corações dos candidatos jovens para o ministério. Caso contrário, seria como a auto-afirmação da profetiza Jesabel em Apocalipse 2.20. Quanto a isto, comentou recentemente Guilherme Kerr Neto: “Deus é que declara alguém profeta e a igreja reconhece, concorda e usufrui deste ministério. Quem a si mesmo se declara profeta, em geral não é!” (Liderança Pastoral, nº 56).

RESUMO

Afirmamos que enquanto todos os cristãos são chamados para um testemunho missionário pela sua vida consagrada e a proclamação verbal e então já são “missionários”, Deus chama alguns para o ministério de tempo integral, quer monocultural (trabalho dentro da sua própria cultura) quer transcultural (através duma cultura diferente). No contexto do ministério de toda a igreja, o “sacerdócio dos santos” encontra a liderança ministerial de tempo integral — os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Tal chamamento é percebido através da convivência na Palavra de Deus prefaciado com o reconhecimento do senhorio de Jesus Cristo, é testemunhado no interior pelo Espírito Santo, e é confirmado pelo corpo de Cristo, a igreja.

Quanto à natureza deste último tipo de chamamento específico para o ministério de tempo integral, afirmamos que surge duma convivência íntima e contínua com Deus. Pode acontecer de várias maneiras, mas sempre em relação aos seguintes fatores: a convicção cresce através do conhecimento da Bíblia, do reconhecimento do senhorio de Jesus e do testemunho interior do Espírito Santo; e esta convicção pessoal é reconhecida e confirmada publicamente pela igreja.

Resta esclarecer a distinção entre um chamamento e a direção do Espírito e dar algumas sugestões de como acertar a direção do Espírito para o ministério missionário.

CHAMAMENTO OU DIREÇÃO

Deve-se fazer uma distinção. O “chamamento” macedônio era mais precisamente a direção do Espírito Santo (At 16.6-10). O chamamento vem uma vez na vida, e uma vez compreendido e obedecido, não precisa ser repetido. Mas a direção sobre a maneira que o chamamento é desempenhado, é necessária continuamente, através da vida toda.

O chamamento de Paulo era para o ministério de tempo integral, neste caso como apóstolo, quer num ministério monocultural—para Paulo, entre os judeus—quer transcultural—entre os gentios. O chamamento de Paulo era como apóstolo, sem esta distinção monocultural ou transcultural, visto que pregava tanto entre judeus quanto gentios (At 13.1-49; 19.8-10; Rm 1.16). Seu chamamento, ao apostolado, era ligado primeiro ao sujeito do chamamento, Jesus Cristo (Rm 1.1; 1ª Co 1.1; 2ª Co 1.1; Gl 1.1; Ef 1.1; Cl 1.1; 1ª Tm 1.1; 2ª Tm 1.1). E só com mais tempo e através da direção do Espírito Santo, Paulo entende que seu esforço maior no desempenho do seu chamamento, será um ministério transcultural entre os gentios. Então, pode se referir ao aspecto secundário do seu apostolado, o objeto de seu chamamento, como apóstolo dos gentios (Ef 3.7,8; Rm 11.13; Gl 1.15-16). A especificação do chamamento de Paulo—como apóstolo—veio através da direção do Espírito Santo, para um ministério transcultural.

Servir aqui entre seu próprio povo ou numa situação transcultural? A direção do Espírito é precisa. Ele dirige seus servos segundo sua vontade. Não é por acaso. Enviou Paulo aos gentios e Pedro aos judeus. Dirigiu William Carey à Índia, Hudson Taylor à China e Sadhu Sundar Sing ao Tibete.

PERCEBENDO A DIREÇÃO DO ESPÍRITO

Já mencionamos que Paulo recebeu a direção do Espírito em Atos 16 para ir à Macedônia. As circunstâncias daquela visão são instrutivas para entender como funciona a direção do Espírito. Reparamos que Paulo havia feito várias tentativas anteriores de ministrar em várias regiões, mas o Espírito Santo o impedia (vv. 6-7). Em nenhum dos casos de impedimento pelo Espírito, Paulo é admoestado por tomar decisões sem primeiro receber um “sinal” de Deus. Aliás, a impressão do leitor é de que Paulo fez o certo tentando penetrar naquelas regiões, e que assim o Espírito o dirigiu. O princípio em jogo neste relato é que Paulo não era passivo mas que agia e tomava decisões para estas depois serem confirmadas ou não.

Desta forma a direção do Espírito pode ser descrita como o leme dum barco que não dirige o barco, a não ser que este esteja se movimentando. O servo de Deus percebe melhor a direção do Espírito justamente enquanto ativamente procura exercitar o ministério.

Esta perspectiva pode parecer um tanto “carnal” ou “não-espiritual”. Parece que é resultado das idéias próprias. Mas evidentemente é o processo que encontramos na Bíblia. Até Paulo falou assim “penso que também tenho o Espírito de Deus” (1ª Co 7.40) e Lucas também, “concluindo que Deus nos havia chamado” (At 16.10). A direção do Espírito é acertada somente depois que o servo toma decisões e age, confiando não na certeza da sua decisão mas na convicção que o Espírito o dirigirá ou impedirá, ou permitindo ou se revelando de outra maneira.

Enfim, quem quer acertar a direção do Espírito precisa ser ativo—com uma mente aberta (disponível de pensamento), um ouvido atento (acostumado a ouvir e obedecer a direção de Deus), um coração puro (a imoralidade ensurdece a percepção, Sl 24.3-4; 66.18), mãos ocupadas (lembra do leme do navio) e os pés prontos (disponibilidade de ação, Sl 119.32; Is 52.7).

Aqui, há dois perigos: hiperatividade ou passividade, correr antes do Senhor ou ficar para trás. Creio que por cada um que cai no primeiro, há dez que caem no segundo. São pessoas que não conseguem fazer uma decisão importante como quanto ao ministério. Examinam os fatores, oram a respeito, conversam com os outros, mas não tomam uma decisão. Um problema é que querem 100% de certeza, o que, é claro, nunca acontece. A direção do Espírito sempre é perfeita — 100% — mas nunca é percebida assim, pois tem que passar pelo filtro da nossa mente humana. É por isso mesmo que precisamos de fé. Certeza isenta a fé. Por isso mesmo, não há certeza, pois agrada a Deus que confiemos n’Ele, tendo fé, sempre dependentes d’Ele. Os cristãos andam pela fé, e não pelo que vêem (2ª Co 5.7).

Chega a hora em que o indivíduo tem que fazer uma decisão, agir, e ir em frente, disposto a encontrar impedimentos do Espírito e visões para outros caminhos.

“Não é tolo quem entrega o que não pode possuir a fim de ganhar o que não pode perder” (Jaime Elliot escrito em 1949, como estudante na Universidade cristã).

Uma missionária na Índia escreveu duma visão que viu quando deitada na cama. Aos seus pés havia um precipício, um abismo que cai para baixo, tão largo como o espaço. Passando por cima da borda do precipício para dentro do espaço havia um fluxo de pessoas de toda direção. Todas eram totalmente cegas e se dirigiam diretamente para a borda do precipício. Algumas gritavam quando de repente se viam caindo. Outras iam silenciosamente sem qualquer som.

Ao lado da borda havia umas placas de vez em quando, mas os intervalos entre elas eram grandes demais para ter êxito. As pessoas caíam na sua cegueira, sem aviso. E a grama ao seu redor ficou vermelha com sangue.

Então ela via no fundo um grupo de pessoas sentadas num bonito jardim debaixo das árvores e elas estavam fazendo correntes de margaridas. De vez em quando pareciam um pouco preocupadas com os gritos horríveis. Quando um deles queria se levantar e ajudar, o resto o segurava e dizia: “Por que se preocupa? Deve esperar por um chamamento definido. Ainda não terminou sua corrente de margaridas.” Uma menina ficava de pé sozinha à borda do precipício corajosamente acenando com a mão e avisando as pessoas que iam cair. Os pais dela lembraram-na que era tempo de férias, mas ninguém foi designado para tomar o seu lugar e dentro do precipício caía uma cachoeira de gente. E daí, o grupo no jardim cantava um hino.

Então chegou o som de um milhão de corações quebrados exclamando numa só gota cheia—num soluço—e o horror da escuridão estava sobre mim, escreveu esta missionária, Dona Amy Carmichael, pois eu sabia o que era—o grito de sangue.

“E ouvi a voz do Senhor dizendo: ‘o que tens feito?ʼ A voz do sangue do teu irmão me clama da terra.”

A visão dum mundo agonizante e amortecido. Isto é alguma coisa que deve estar em nossas mentes e nossos corações à medida que nós juntos enfrentamos o desafio de Deus em missões mundiais—a grande tarefa ainda diante de nós. Estamos preparados para pedir que Deus nos dê nestes dias tal visão dum mundo agonizante?

Extraído do Ultimato, ano XVIII, nº 164 e 165, de 1985. Usado com permissão.

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