Por Héber Negrão

O convite

Foi debaixo de um sol forte e de um clima árido que chegamos às terras do povo Xerente, no estado de Tocantins. Estivemos lá no mês de julho de 2017, a convite da Junta de Missões Nacionais (JMN), da Convenção Batista Brasileira, e da igreja indígena, que viram a necessidade de se fortalecer a música tradicional nas reuniões cristãs daquele povo.

Sabendo do ministério que temos desenvolvido nessa área, alguns missionários da JMN, juntamente com o Elcio Portugal – que é voluntário desta organização e músico envolvido em etnoartes –, nos convidaram para dar um treinamento de uma semana para líderes e cantores da igreja xerente.

Dessa forma, o propósito de nossa viagem foi capacitar aqueles irmãos na compreensão de que é possível usar músicas baseadas em seus estilos culturais para o louvor a Deus e a edificação dos irmãos. Para mim, esta viagem foi particularmente especial, pois fui acompanhado de toda a família: Sophia, minha esposa, e Thalita, nossa filha.

A cultura do povo Xerente é riquíssima. Sendo do tronco linguístico Macro Jê, eles têm uma acentuada divisão em sistema de clãs na aldeia, cada um deles com seus próprios padrões de pintura corporal e sistema de nomeação. Nossa equipe foi tão bem recebida que fomos imediatamente inseridos em seus clãs e recebemos os nomes dos seus parentes.

Uma cultura transformada por um evangelho contextualizado

Logo nas primeiras conversas com os irmãos indígenas percebemos que raízes profundas do cristianismo se fixaram entre aquele povo, não apenas em práticas exteriores, mas também no seu pensamento e cosmovisão. Em suas falas era evidenciada a consciência de que em sua cultura havia algo da beleza do Criador que deveria ser enfatizado, bem como algo deturpado pelo pecado, que deveria ser descontinuado ou adaptado.

Esta mentalidade se tornou prática, logo no primeiro dia, antes mesmo de começarmos nosso curso. Estávamos conversando durante o café da manhã e surgiu a questão do uso do maracá para acompanhar músicas cristãs. Naquela cultura, o maracá é um instrumento de uso exclusivo do pajé, porém os irmãos indígenas disseram que existem coisas na cultura que podem ser usadas para o bem e para o mal. Nas palavras de um dos líderes: “você pode usar o instrumento para as coisas do mundo e para as coisas espirituais. A gente entende que da mesma forma podemos usar o maracá, depois de consagrado, para a obra de Deus”.

Com isso, nos reunimos na igreja para a consagração do maracá para o louvor ao Senhor. Logo depois, o líder daquela igreja e cacique da aldeia pediu para cantar uma música louvando a Deus com o maracá. Todos os irmãos ali presentes ficaram bastante emocionados e alguns até empolgados com a possibilidade de tocarem pela primeira vez em um maracá.

O mais interessante é que, apesar de saber que os missionários tiveram um papel fundamental para esta compreensão, este não foi um posicionamento de gente de fora, mas dos próprios líderes cristãos Xerente. A contextualização crítica, aquela onde a própria igreja avalia sua cultura e decide o que usar e como usar, foi aplicada com êxito. Esta é uma demonstração clara de que o Evangelho tem sido bem vivenciado naquela cultura.

Do concreto ao teórico. Da Bíblia à inspiração

Como o sistema de aprendizagem dos povos de tradição oral é baseado em ensinos concretos para depois chegar em teorias abstratas, nós decidimos começar o curso mostrando exemplos positivos de como outras igrejas indígenas têm usado novas músicas compostas em seu próprio estilo cultural, e  depois passamos a estudar vários textos bíblicos que fazem referência à música.

Enquanto eu expunha o Salmo 40, onde Deus nos ensina novas canções que podem servir de testemunho e salvação para os não cristãos (v.3), algo incrível aconteceu. Um dos indígenas se levantou e disse enfaticamente: “A música é como uma flecha que atravessa o nosso coração!”. Que belíssima interpretação para este Salmo. Eu jamais poderia entender o versículo desta maneira. Fui profundamente edificado por este irmão.

Uma segunda etapa foi a Oficina de Composição. Nós lhes ensinamos alguns passos que poderiam ser tomados para a criação de novas canções no estilo Xerente e após um tempo de reflexão e conversa entre si, os participantes identificaram cinco tipos de canções da cultura que poderiam ser utilizadas na igreja: canções de ensinamento, de acolhimento, de convite, de batismo e de lamento.

Sugerimos então alguns versículos bíblicos relacionados a esses temas e eles passaram a compor novas canções dentro desses estilos culturais. O resultado foi a criação de 4 novas canções Xerente adaptadas com texto bíblico para serem cantados em diferentes momentos da igreja, todas acompanhadas do maracá. Esses foram alguns versos das novas canções, verdadeiras orações ao Senhor:

“Eu fiz uma oração a Deus,
Senhor venha nos ajudar
Que nós te amemos verdadeiramente”

“Jesus está gritando por você
Venha rapidamente até ele”

“Eu sou pra vocês, o caminho pra vocês
Quem for meu seguidor, eu não o deixarei.
Agora eu sigo a Jesus
Agora eu vou cantar pra ele junto com as pessoas”

A reação por parte dos participantes ao ouvirem as músicas foi muito interessante. Um deles, visivelmente emocionado, disse: “Eu só não choro aqui mesmo porque eu tô me segurando”. Outro participante, ao imaginar como as igrejas de outras aldeias receberiam essas novas canções disse: “eu tenho certeza que os irmãos vão ficar muito emocionados quando ouvirem essas músicas”.

A flecha poderosa

A última parte do nosso treinamento foi a gravação das músicas xerente compostas naquela semana e também várias outras que eles já haviam composto no estilo da cidade, porém que ainda não estavam gravadas. Gravamos um total de vinte e oito canções que em breve farão parte do novo CD e da segunda edição do hinário da igreja Xerente.

Participaram do nosso treinamento cerca de quinze líderes e cantores xerente de sete aldeias diferentes. Na última noite, todo o grupo foi até uma aldeia vizinha para participar de um culto ali. Eles cantaram as novas músicas que fizeram acompanhados do maracá e, sob os ouvidos atentos dos irmãos daquela aldeia, testemunharam das coisas que aprenderam durante a semana. No final do culto, o missionário que nos acompanhou perguntou ao cacique o que ele havia achado das músicas e do maracá. A verdade é que ele gostou tanto da inovação que até sugeriu outra música da cultura que também poderia ser adaptada com textos bíblicos.

Ter uma compreensão bíblica a respeito de sua cultura e uma percepção de que Cristo é Senhor de tudo, inclusive das artes, pode levar uma comunidade a romper com antigos padrões culturais, redimindo aspectos da sua cultura que foram manchados pelo pecado, reivindicando-os para a adoração ao Deus Criador. Podemos afirmar com segurança que a Palavra de Deus, uma vez comunicada através de meios apropriados culturalmente, é uma flecha poderosa capaz de atravessar juntas, medulas e corações.

Ouça abaixo uma das músicas compostas pela igreja indígena Xerente

• Héber Negrão é paraense, mestre em Etnomusicologia e casado com Sophia. Ambos são missionários da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB)e da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM). Residem em Paragominas (PA) e trabalham com o povo Tembé.

  1. Que alegria ver a transformação que somente o evangelho de Jesus pode operar quando aplicado de modo saudável e contextualizado dentro de uma cultura. Glória a Deus e parabéns a todos os envolvidos.

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