Contextualização e simbolismo na Santa Ceia
Por Héber Negrão
Era um momento de festa e de muita alegria. Naquela noite de 2012, encerrava o 7º CONPLEI Nacional. Aquele evento, marcado pela diversidade, contou com a presença de 2.300 indígenas de mais de 80 etnias, de dentro e de fora do país. Foram dias de grandes comemorações: o casamento de um dos líderes do CONPLEI, a celebração dos 100 anos de evangelização do povo Terena, e a tão amada Ceia do Senhor. Na ocasião, participei pela primeira vez de uma Ceia contextualizada.
Muitos de vocês já devem ter visto ou ouvido notícias de que nossos irmãos indígenas têm celebrado a Ceia utilizando elementos de sua própria cultura, substituindo o pão pelo beiju de tapioca e o vinho pelo açaí. É possível que a primeira pergunta que venha à sua mente é: será que é certo trocarmos elementos tão explícitos nas Escrituras por algo de outra cultura? Para ajudar a responder essa questão quero apresentar nesse texto três princípios para a celebração de uma Ceia contextualizada.
Alimento Diário
“Dai-nos hoje o pão de cada dia” (Jesus)
Não é novidade alguma que, em muitas culturas, o pão representa o principal alimento diário. Nos tempos de Jesus, era um item tão essencial que a expressão “comer pão” em hebraico significava literalmente “fazer uma refeição”, e Homero, em suas Ilíada e Odisseia refere-se ao homem como “comedor de pão”. [1]
Para Ronald Hanko, um dos motivos para o pão ser utilizado como um dos elementos da Ceia do Senhor é que ele representa as necessidades básicas da vida. Segundo ele a petição “o pão nosso de cada dia dai-nos hoje” na oração do Pai Nosso, inclui todas as necessidades terrenas da vida humana. Dessa forma, o pão, na Ceia do Senhor representa nossa total necessidade do sacrifício de Cristo para a nossa vida espiritual. “Assim como não podemos viver sem o ‘pão diário’, não podemos viver sem Cristo, o pão da vida.”[2].
Nas culturas indígenas do Brasil é difícil definir o valor da mandioca[3] e seus derivados para a alimentação diária do povo. Com a mandioca é feita a farinha que eles comem com a carne e peixe ou tomam em forma de chibé (um mingau de farinha com água). Com o caldo da mandioca prensada é feito o tucupi, que serve como tempero para muitos alimentos. E com a massa da mandioca deixada de molho é feita a tapioca, da qual eles preparam o beiju.
O uso da mandioca como agricultura básica dos indígenas tem sido identificado até mesmo antes do contato, através de pesquisas arqueológicas. Na realidade, não precisamos fazer um grande esforço para identificar a mandioca e seus derivados como parte fundamental da alimentação diária dos indígenas do Brasil. Ela pode facilmente ser considerada o pão diário desses povos.
Alimento Moído
“Ele foi ferido pelas nossas transgressões” (Isaías)
Também é preciso considerar o aspecto da produção do pão e do vinho, que fazem referência ao sofrimento de Cristo. Para a preparação do pão é necessário que o trigo seja moído, amassado, e por fim assado. Já a uva passa por todo um processo de prensa e fermentação por diversos dias para que o vinho fique pronto para ser bebido.
Na última ceia, ao partir o pão e o derramar o vinho no cálice oferecendo-os aos seus discípulos, Jesus disse: “Isto é o meu corpo dado em favor de vocês” e “este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês” (Lc 22.19, 20). E no Evangelho de João Jesus diz que “este pão é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo” (Jo 6.51). Estes textos mostram que Jesus se identifica claramente com os elementos da ceia. O partir do pão e o derramar do vinho unem-se ao dolorido processo da sua produção para exemplificar o sofrimento que Cristo passou em nosso lugar.
Da mesma forma, o beiju de tapioca e o açaí passam por processos extremamente rígidos para chegarem à sua versão para consumo. A mandioca precisa ser moída; a massa resultante disso é espremida e decantada resultando numa goma da tapioca que, quando seca, é usada na preparação do beiju que vai ao fogo para ser assado. O açaí depois de colhido do pé passa por um processo de fervura (para amolecer a popa), depois todos os caroços são ralados, amassados e batidos tantas vezes forem necessárias até que saia o sumo que será bebido.
As palavras “traspassado”, “esmagado” e “feridas”, que descrevem os sofrimentos do Servo Sofredor, em Isaías 53.5, facilmente se aplicam ao processo de produção tanto do pão quanto do beiju de tapioca; tanto do vinho quanto do açaí.
Alimento Substituído
“O pão significa o corpo de Cristo” (Zwinglio)
É conhecido o debate na História da Igreja entre os reformadores e a Igreja Católica Romana a respeito da literalidade dos elementos da ceia. Enquanto a igreja de Roma afirmava que o pão e o vinho eram de fato transformados no corpo e no sangue de Cristo, Lutero defendia que isto era verdade apenas em parte afirmando que o corpo de Cristo está presente, com e sob o pão, já Calvino defendia a presença espiritual de Cristo nos elementos e Zwinglio considerava apenas o caráter simbólico dos elementos. É importante destacar que, apesar da discussão girar em torno da presença ou não de Cristo nos elementos, todos os reformadores consideravam que eles eram um símbolo do sacrifício de Jesus.[4]
Sendo, portanto, simbólicos os elementos da ceia, são passíveis de mudança, desde que mantenham a simbologia e relação direta com o significado original[5]. É exatamente este o caso da contextualização na ceia indígena. Foi uma defesa a esta analogia próxima que tentei apresentar nos dois princípios anteriores.
Paul Hiebert no livro “O Evangelho e a Diversidade das Culturas” defende a contextualização crítica, onde os elementos da cultura são avaliados pelos cristãos locais. Este exercício de olhar para a própria cultura através das lentes das Escrituras leva o povo tomar atitudes drásticas em relação aos elementos de sua cultura que são antibíblicos. Essas lentes também podem levar o povo a reafirmar práticas culturais que a Bíblia valoriza. A mudança contrária também acontece. É possível haver uma reinterpretação de elementos bíblicos para adaptar a cultura em questão. “As pessoas também podem criar novos símbolos e rituais para comunicarem as crenças cristãs em maneiras autóctones”[6]. Sem sombra de dúvida, a reflexão da igreja indígena que fundamenta o ato de uma Ceia contextualizada é o resultado de uma contextualização crítica como a defendida por Paul Hiebert.
Caso semelhante ocorre nos trabalhos de tradução das Escrituras. Por ser um livro cultural, a Bíblia apresenta muitos animais, alimentos e elementos da natureza que são totalmente desconhecidos para culturas indígenas. No livro “Indígenas do Brasil”, o missionário Norval Silva, que tem experiência de muitos anos traduzindo as Escrituras para línguas indígenas do Brasil, orienta que quando o tradutor se depara com situações assim, ele tem três alternativas: 1) fazer uma associação com um elemento conhecido da cultura; 2) usar uma frase explicativa do conceito e 3) usar um substituto cultural que exerça a mesma função[7].
Claramente é a prática desta última alternativa que ocorre na ceia contextualizada, nas igrejas indígenas. E isso não acontece apenas na prática da ceia, mas também na tradução do termo pão. Nas palavras do próprio autor: “alguns tradutores têm usado o beiju como um bom substituto para o ‘pão’, inclusive com referência ao primeiro elemento servido na Ceia do Senhor”[8].
Conclusão
Este breve texto não pretende ser uma defesa teológica e doutrinária exaustiva a respeito do uso contextualizado de elementos da Ceia do Senhor. É necessário um estudo aprofundado para ter algo mais validado para ser praticado transculturalmente, mas deixo este privilégio para pastores e teólogos indígenas.
Na última ceia Jesus prometeu que ele não participaria de outra ceia semelhante até que ele estivesse com os seus no reino de seu Pai (Mt 26.29). Quer as igrejas indígenas usem elementos contextualizados ou não; quer os pastores e teólogos não indígenas concordem com este uso ou não, eu não consigo evitar um sorriso no rosto ao imaginar como será o Casamento do Cordeiro quando todos os salvos, de todas as raças, tribos, línguas e nações se assentarem para cear junto com Cristo.
Notas
[1] A vida diária nos tempos de Jesus – Henri D. Rops, p. 132.
[2] O beiju é feito de tapioca, produto derivado da mandioca.
[3] Os índios antes do Brasil – Carlos Fausto, p. 18 (versão epub).
[4] Teologia dos Reformadores – Timothy George, p. 151.
[5] Em nossas igrejas hoje não usamos pães sem fermento e boa parte delas substitui o vinho fermentado pelo suco de uva.
[6] O Evangelho e a Diversidade das Culturas – Paul Hiebert, p. 189.
[7] Traduzindo a Bíblia para Povos Indígenas. In: Indígenas do Brasil, p. 213.
[8] Ibid.
• Héber Negrão é paraense, mestre em Etnomusicologia e casado com Sophia. Ambos são missionários da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB)e da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM). Residem em Paragominas (PA) e trabalham com o povo Tembé.
Gilson Ricardo
Bom artigo colega. Uma base para entendermos um pouco mais sobre a contextualização missionária e sua aplicação em missões transculturais.
jana
Só não compreendo porque não pode ser o pão e o vinho como está escrito,já que todas pessoas das igrejas tem acesso a comprar um pão e um suco industrializado de uva,essa explicação de ‘contextualização’ está mais para encontrar justificativa para a era da ‘normalização’ da atualidade:tudo pode,tudo é natural,tudo é substituível,tudo é aceitável…
Graças a Deus que podemos contar com Sua misericórdia!
Héber Negrão
Obrigado Gilson, temas como esse são sensíveis, mas importantes para fundamentar as práticas eclesiológicas indígenas.
Héber Negrão
Cara irmã Jana
O foco principal deste texto não são igrejas da cidade, mas igrejas indígenas. A sua frase “já que todas pessoas das igrejas tem acesso a compra um pão e um suco industrializado” não contempla a realidade da maioria das aldeias indígenas. O texto não dá base pra você fazer uma inferência como esta.
A verdade é que as aldeias indígenas, via de regra estão muito distantes das cidades e sem acesso fácil à uma padaria pra comprar pão ou a um supermercado para comprar suco de uva.
Espero ter esclarecido!
Maria Ricardina F. Teixeira
A paz de Cristo! Compreendo sua opinião JANA, ela me fez pesar “sim porque não usar pão e vinho, já que são tão acessíveis?”
Porém compreendo também que o uso do beiju e do açaí torna mais fácil e forte o simbolismo da ceia por ser elementos da sua realidade que tem grande representação( todos sabem seu processo de fabricação ), já o pão e o vinho não.
nando Teixeira's
Entendo perfeitamente.É certo que, se Jesus estivesse numa dessas aldeias certamente usaria os elementos dessa cultura com o mesmo sentido que usou entre os Judeus. Como é bom saber que as nações indígenas foram alcançadas para Cristo e entendem perfeitamente o sentido da Ceia. Héber Negrão e Sophia Deus vos abençoe nesta missão. missão pela qual, digo em Cristo, até heroica. Saúdo os irmãos indígenas com a perfeita graça e paz de Cristo Jesus. Parabéns pelo texto. Nando Teixeira’s comenta.
Jefferson adriano
Um dos piores problemas do Cristianismo hoje em dia é aceitar o novo irmão, infelizmente essa é a realidade, se observarmos que o beiju de tapioca derivado da MANDIOCA que é a principal fonte de alimentação de sobrevivência e se não de renda até,para os nossos irmãos indígenas logo vamos entender que eles entenderam o real sacrifício de Cristo na Cruz por todos nós, é como se eles estivessem declarando dentro da sua cultura JESUS É O NOSSO MEIO DE SOBREVIVÊNCIA ,NOSSA FONTE DE VIDA, DE ALIMENTO, NOSSO TUDO,porque eles sabem todo o processo que a mandioca passa até que vire o beiju de tapioca,bem como o açaí até que vire suco, existe todo o processo de esmigalhar assim como Cristo foi espancado esmigalhado por nós.
PS: Não estou dizendo o que é certo ou errado, mas acredito que Cristo trataria com eles assim como tratava com pescadores, agricultores e etc…Com cada qual por parábolas dentro de cada cultura. Que Deus abençoe a todos e que cada vez mais povos e culturas e nações possam ser alcançados por Cristo!!!