The First Thanksgiviving at Plymouth (1925), de Jennie Augusta Brownscombe. Presente de Wallace and Wilhelmina Holladay (National Museum of Women in the Arts).

Por Héber Negrão

Os puritanos fizeram parte da Reforma Protestante na Inglaterra no século XVI. Influenciados pelos ensinamentos de Lutero e Calvino, procuraram libertar a Inglaterra – e posteriormente a Nova Inglaterra – das práticas eclesiásticas errôneas impostas pela igreja romana que ainda permeavam a recém-formada Igreja Anglicana.

A visão que temos dos puritanos é que eles eram mal humorados, avessos à recreação, cheios de censura e intolerantes. H. L. Mencken chegou a dizer que “O puritanismo é o temor persistente de que alguém, em algum lugar, possa ser feliz”[1]. Entretanto esses irmãos eram fervorosos espiritualmente, acadêmicos profícuos, trabalhadores esforçados, amante das artes e membros influentes em sua sociedade. Augustus Nicodemos nos ajuda a ter uma compreensão sobre eles:

“Devemos imaginar estes puritanos como o extremo oposto daqueles que se dizem puritanos hoje. Imaginemo-los jovens, intensamente fortes, intelectuais, progressistas, muito atuais. (…) Puritanos… caçavam, praticavam esportes, usavam roupas coloridas, faziam amor com suas esposas, tudo isto para a glória de Deus, o qual os colocou em posição de liberdade”.[2]

Uma vez que o objetivo deste texto é mostrar os princípios do envolvimento social dos puritanos, não será possível entrar em detalhes sobre sua teologia, vida cotidiana e práticas eclesiásticas. Caso você queira conhecer mais sobre eles, indico, dentre as obras consultadas para este artigo, o livro “Santos no Mundo”, de Leland Ryken. O autor aborda com esmero questões relacionadas ao casamento, família, trabalho, eclesiologia e teologia desses cristãos, reservando inclusive um capítulo para mostrar de maneira muito transparente onde eles tropeçaram por causa do seu excesso de zelo.

Vida cristã integral
A fim de entendermos a visão puritana a respeito da ação social é importante que levemos em consideração a compreensão que eles tinham sobre a vida cristã, o ser humano e o relacionamento deste com a sociedade.

Para começar, devemos saber que os puritanos não faziam uma distinção entre sagrado e secular. Eles viviam um estilo de vida holístico, se esforçando para que o menor dos seus trabalhos fosse para a glória de Deus. “Para os puritanos, toda a vida era a vida de Deus. Seu objetivo era integrar seu trabalho diário com sua devoção religiosa a Deus.”[3]

A explicação para esse pensamento fundamenta-se no entendimento de que o Criador é Senhor sobre cada área da vida. Portanto, eles “aplicavam o seu entendimento a respeito da mente de Deus a cada aspecto da vida, considerando a igreja, a família, o Estado, as artes e as ciências, o mundo do comércio e da indústria, como sendo tão importantes quanto às devoções individuais do crente e também como várias esferas nas quais Deus deve ser servido e honrado.” [4]

Em meio a uma sociedade onde prevalecia a cosmovisão católica romana que valorizava o nobre serviço do clero em detrimento do humilde serviço dos leigos, William Perkins orientou seus fiéis mostrando-lhes que “a ação de um pastor guardando as ovelhas… é um trabalho tão bom diante de Deus como a ação de um juiz ao sentenciar, ou de um magistrado ao regulamentar , ou de um ministro ao pregar.”[5]

No início de seu livro “Entre os Gigantes de Deus” J. I. Packer nos apresenta uma série de lições que podemos aprender com os puritanos. A primeira delas é justamente a integração de suas vidas diárias.

“Viam a vida como um todo, integravam a contemplação com a ação, culto com trabalho, labor com descanso, amor a Deus com amor ao próximo e a si mesmo, a identidade pessoal com a social, e um amplo espectro de responsabilidades relacionadas umas com as outras, de forma totalmente consciente e pensada”[6]

O homem e a sociedade
Os puritanos tinham um conceito tríplice acerca do homem: perfeito, como criado por Deus; pecaminoso em decorrência do pecado original; e capaz de redenção e glorificação uma vez alcançada pela graça de Deus.

Packer afirma que a “apreciação [dos puritanos] pela dignidade humana como criatura feita para ser amiga de Deus era intensa, e também o era seu senso da beleza e nobreza da santidade humana.”[7] Lendo esse testemunho, lembro-me imediatamente da seção 5 do Pacto de Lausanne: “porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada”[8]

A compreensão puritana neste ponto é de que o homem foi feito por Deus como um ser social e, portanto, deve viver em sua sociedade. É provável que essa informação confronte o senso comum onde o puritanismo é visto como uma forma de monasticismo protestante, que se afasta do mundo para viver em santidade junto com outros cristãos. Porém o pregador Samuel Willard elogiou um comerciante de sua congregação quando disse que ele era um santo na terra que vivia em meio a ocasiões extremas e urgentes do seu negócio.

Para eles havia uma dinâmica coerente da vida em sociedade que deveria ser benéfica para ambos os lados. O homem trabalha para o bem da sociedade para que esta lhe retribua sendo um ambiente agradável para viver. O puritano Cotton Mather disse que “Deus fez o homem uma criatura de sociedade. Esperamos benefícios da sociedade humana. Isto equivale a que a sociedade humana deveria receber benefícios de nós.”[9].

Era comum o ensinamento de que o cristão deveria buscar o bem-estar de sua comunidade. Frases como esta de John Cotton se repetem na pena de vários autores puritanos: “devemos visar não só ao nosso próprio bem, mas ao bem-estar público.”[10]

O grande diferencial é que os puritanos enxergavam a sociedade ideal não como um estado laico, mas como um agrupamento de pessoas que deveria se render aos pés do Salvador, vivendo de modo digno dele, para agradá-lo. J. I. Packer disse que os puritanos foram muito influenciados pelo interesse secular de John Knox, que clamava em suas orações “dá-me a Escócia, ou então morrerei”.

“[John Knox] via a bênção da reforma nacional como algo que envolvia a chamada de Deus para conformarem-se à piedade coletiva, para que todos a vissem (…). Os Puritanos, como um grupo, compartilhavam [esse interesse] da santificação social com a qual sonhavam — ainda que, entre os nobres, clérigos, educadores, advogados, políticos, tecelões, negociantes e outros, sem esquecermos das mulheres, que faziam parte do Puritanismo, alvos específicos e ênfases sobre questões eclesiásticas e comunitárias variassem de pessoa para pessoa.”[11]

A ação social
Levando em consideração a cosmovisão puritana de que não há distinção entre uma vida religiosa e uma vida secular, onde Deus é o Senhor de tudo; de que o ser humano foi feito para viver em sociedade, beneficiando-a e sendo beneficiado por ela; e de que, apesar de caído, o homem tem dignidade por ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, não fica difícil imaginarmos como era a assistência social que esses irmãos davam fora de suas paróquias.

Os puritanos sempre tiveram um grande envolvimento na política de seus países. Na Inglaterra os puritanos influenciaram fortemente o governo por quase duas décadas na metade do século XVI. Nos Estados Unidos (principalmente nas colônias de Massachusetts e Connecticut onde se instalaram) eles tiveram papel de destaque na elaboração das políticas governamentais.

Eles estavam longe de ser um povo obscuro e bitolado. De fato, uma característica que marcou este movimento foi o seu alto grau de formação acadêmica. Somente seis anos após sua chegada à Baia de Massachusetts, eles fundaram a faculdade de Harvard (que depois se tornou universidade), sendo mantida inicialmente à custa dos fazendeiros puritanos.

Fundar escolas passou a ser uma distinção deste grupo de irmãos. Em certa ocasião John Eliot fez a seguinte oração: “Senhor, [rogamos] por escolas em todos os lugares entre nós… Oh, que nossas escolas possam florescer. Que cada membro desta assembleia possa ir para casa e consiga uma boa escola para ser encorajado na cidade onde mora”[12]. O investimento que os puritanos deram para a educação do povo até hoje é reconhecida por pedagogos como J. W. Ashley Smith que disse que foi na época do governo puritano na Inglaterra que os estudos universitários alcançaram o ápice.

Engana-se quem acredita que os puritanos era um grupo exclusivista que só cuidava dos seus. Richard Baxter ensinou que os santos devem ter lágrimas para derramar até pelos seus inimigos. Um dos alvos de maiores cuidados desses irmãos eram os mais pobres da cidade. Em um panfleto distribuído por eles, lê-se: “um dos principais objetivos de todas as nossas ações sociais, empregos políticos e empreendimentos tangíveis em nossos chamados particulares, deve ser o de cuidado dos pobres.”[13] Os próprios pregadores puritanos, muitas vezes com pouquíssimas condições financeiras recebiam em suas mesas “mendigos e gentes pobres”.

Os puritanos também lutavam contra a injustiça social que era tão frequente naquela época. Eles usavam o próprio púlpito para denunciar os preços exagerados que eram cobrados pelos gêneros alimentícios mais essenciais. Do púlpito, Increase Mather dirigiu-se à sua congregação: “o homem pobre chega a vocês necessitando determinada mercadoria, e vocês o farão pagar o que lhes satisfaz, pondo o preço que lhes agrade no que ele precisa… sem o menor respeito pelo justo valor da mercadoria.”[14]

Conclusão
Por entenderem que o homem deve trabalhar para o benefício da cidade onde vive, e por ela ser beneficiado, era natural que eles lutassem contra todo o tipo de opressão que esta impunha sobre os mais carentes. Por terem uma visão holística da vida, ao assistir o pobre em suas necessidades básicas, os puritanos estavam prestando um culto (serviço) ao próprio Deus.

Desde o início os puritanos foram ensinados a olhar para o próximo com amor. William Tyndale – considerado o primeiro puritano – disse que o termo “próximo” é uma palavra de amor e que o cristão sempre deve estar pronto para auxiliar quem se encontra em necessidade. Richard Sibbes disse que “quando estamos em Cristo, vivemos para os outros e não para nós mesmos”.[15] Uma visão consistente considerando que eles tinham grande apreciação pela dignidade humana.

Para eles, o Novo Nascimento vinha acompanhado de uma profunda preocupação social e os atos de bondade eram uma forma de gratidão, não de mérito. A essência do cristianismo era expressar o amor a Deus para com o seu próximo. O famoso pastor puritano Richard Baxter escreveu: “a verdadeira ética cristã é o amor a Deus e ao homem, incitado pelo Espírito de Cristo, pela fé; e exercido nas obras de piedade, justiça, caridade e temperança”.[16]

Um pensamento que resume bem a Ação Social dos Puritanos é expresso por William Perkins: “A verdadeira finalidade de nossas vidas é prestar serviço a Deus no serviço aos homens e nos afazeres de nossos chamados.”[17]

Que possamos aprender com estes bons exemplos do passado. Podemos servir a Deus no serviço ao nosso próximo.

• Héber Negrão é paraense, tem 33 anos, mestre em Etnomusicologia e casado com Sophia. Ambos são missionários da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB)e da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM). Residem em Paragominas (PA) e trabalham com o povo Tembé.

 

Leia também
Memória histórica
As origens do evangelicalismo
A caminhada cristã na história

[1] Os Puritanos, sua origem e sua história, Alderi Souza de Matos. http://www.mackenzie.br/7058.html
[2] Quando a cultura vira evangelho – http://ow.ly/YtysN
[3] Santos no Mundo, Leland Ryken. p.63
[4] Entre os Gigantes de Deus, J. I. Packer. p. 26
[5] Ryken, p.62
[6] Packer. p.20
[7] Ibid, p.22
[8] O Pacto de Lausanne – http://ow.ly/Ytyn6
[9] Ryken, p. 72
[10] Ibid, p. 72
[11] Packer, p.358
[12] Rycken, p.264
[13] Ibid, p.295
[14] Ibid, p.297
[15] Ibid, p.292
[16] Ibid, p. 299
[17] Ibid, p.71

 

  1. Rubens Rodrigues da Silva

    ”A verdade vos libertará”. Mesmo que venham surgir muitos Pilatos nesta vida, os quais não irão ouvir da boca do Mestre, a Palavra, o que é a Verdade, ela sempre estará presente em nosso meio. Este artigo sobre a obra social dos Puritanos traz a tona a verdade que desconhecida da maioria. Foi muito edificante para mim.
    Vosso conservo,
    Rubens Rodrigues,Pr.

  2. Caro pr Rubens.
    Que bom que esse artigo serviu para mostrar “verdades desconheidas da maioria”. Que os puritanos sejam um grande exemplo para todos nós.

  3. Muito boa a maneira como este artigo nos traz uma perspectiva sobre os antigos puritanos que muitas é vezes esquecida. Nós sempre tendemos a observar as falhas que eles cometeram.

    Como bem dito, os antigos puritanos em nada parecem ter relação com os que hoje são denominados puritanos (ou neo-puritanos).

    Estas pessoas são realmente grandes exemplos. De fato, homens e mulheres que foram grandemente usados pelo Senhor em seus tempos. E isso sem ficar à parte da sociedade e cultura, sem segregação, mas interagindo, influenciando, e impactando onde quer que estivessem.

    Que o Senhor lhes abençoe.
    Victor Augusto
    http://www.paraprapensar.com

  4. Olá Victor,

    Sugiro a leitura do livro “Santos no Mundo” de Leland Ryken (Editora Fiel) que apresenta os puritanos em várias áreas da vida. Esse livro também ataca as falsas acusações que eles têm recebido nos ajudando a entender a realidade por trás dessas alcunhas.

    Abraço

  5. Natanael Cardoso Negrão

    Muito bem, meu filho. Que continues trazendo ao conhecimento de todos nós, coisas boas para o avanço da fé cristã em todos o mundo. Que o SENHOR te use cada vez mais e assim possas erguer bem alto a tocha da fé cristã.

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