Inverso – A voz do povo “sem fala”
Publicado em 2014, com apoio do Instituo Antropos, Inverso é um livro que ajuda no processo de entendimento do ambiente amazonense, em especial, o ambiente do povo Húpd’äh, que vive na região do Alto Rio Negro, no Amazonas.
“É um acervo indispensável para quem quer entender a cultura dos indígenas e pegar um gostinho do estilo da fala e do pensamento deles. Inverso deve ser promovido como ‘leitura obrigatória’ para quaisquer pessoas interessadas nos assuntos de língua e cultura indígena Alto Rio Negrina, inclusive antropólogos e linguistas”, descreve Alexandra Aikhenvald, diretora do Centro de Pesquisa de Língua e Cultura do Instituto Cairns Universidade James Cook, Austrália.
O próprio autor, Marcelo Carvalho, enfatiza que sua obra “não é sobre os indígenas, é a voz dos indígenas. São eles que estão falando, denunciando, reclamando, confessando, revelando suas necessidades, gostos, anseios, crenças, prazeres e dores. Mais que isso, Inverso é a voz de um povo que é chamado ‘Os Sem Fala’ pelas outras etnias do Alto Rio Negro. É a voz dos Húpd’äh.”
Marcelo Carvalho é pastor presbiteriano, missionário da Missão AMEM e consultor do Instituto Antropos. Junto com sua esposa, Cláudia, atua dentre indígenas no Alto Rio Negro desde 2002 e atualmente coordena o Programa de Letramento Hupd’äh (Pró- Hupd’äh) pela Pró-Amazônia, dando curso de aquisição (escrita/leitura) da língua Húp. Com outros professores, Marcelo também produz material didático na língua para suas escolas.
Leia a seguir um dos 36 capítulos de Inverso.
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Até o pajé benzeu, mas ela morreu…
(Texto baseado em observação e conversas com homens e mulheres Húpd’äh adultos)
Ela morreu, não tem mais jeito! A gente fez de tudo pra trazer ela de volta. Os titios dela apertaram a barriguinha e o peito dela, pegaram na perninha dela fazendo o mesmo movimento de quando ela caminhava, seguraram nas mãozinhas dela até o pulso pra ver se esquentava o corpinho dela e até assopraram no narizinho, mas ela não voltou.
Depois disso, os parentes começaram a soprar fumaça de tabaco nela. Sopraram nos pés, na cabeça, nos ouvidos, nas mãos, no peito e na barriga. Aí, o pajé entrou na casa, olhou pra ela, pegou na cabeça e no peito e foi pra um canto fumar tabaco falando aquelas palavras de benzimento* nele. Aí, ele mesmo pegou o tabaco e começou a soprar a fumaça no corpo todo dela; nos pés, nas mãos, na barriga, no peito, na cabeça, mas ela não voltou. Ela morreu mesmo.
A morte dessa criança foi muito triste. Era o primeiro filho homem da família do Casimiro. Ela tinha tido só filha mulher. Dizem que ele estava na beira brincando e foi atravessar o igarapé* junto com sua irmã. Na verdade, ele estava nas costas dela, quando um galho grande árvore caiu em cima deles. Ela conseguiu nadar, mas ele caiu na água e desapareceu. Só encontraram ele depois de uma hora, três voltas rio abaixo, preso num galho debaixo da água na beira do igarapé. Mas ele já estava morto.
Agora, a mamãe dele está enrolando o seu corpinho com as roupinhas e pano que ele usava. E os titios da criança estão fazendo o caixão com a canoa, enquanto a vovó dele e as titias estão chorando, dizendo assim pra mãe da criança: “Tu tem culpa, porque você não cuidada dela, você também batia nela, agora bem feito pra ti!”. Não sei se você consegue ouvir daqui. Mas elas ainda estão chorando falando isso! Acho que elas vão chorar ainda até amanhã ou quem sabe até outra semana… Porque é assim pra nós. A gente chora, às vezes, um mês inteiro.
Escutei que amanhã o catequista vai fazer missa. Acho que pra encomendar a alma dessa criança. Foi assim que me disseram, não sei se é verdade. Porque não é nosso costume fazer missa quando morre uma pessoa.
Como já é tarde vão enterrar só amanhã. Não sei se vão enterrar no cemitério, ou se vão enterrar dentro de casa mesmo. Porque quando é criança assim, a gente às vezes enterra dentro de casa ou no cemitério mesmo. Cada um é que sabe como quer fazer. Dizem que depois que uma pessoa morre, ela fica por aqui. A alma dela fica quarenta dias no meio aqui da comunidade. E a gente escuta o barulho dela fazendo as mesmas coisas que ela costuma fazer. Quando o velho meu pai morreu, a gente costumava escutar ele saindo de casa com a bota pra ir pra roça e escutava o barulho dele quando ele comia.
Na casa da minha comadre, diziam que quando a filha dela morreu, ela continuou vindo pra casa e dava pra ouvir tudo que ela fazia. Dizem que deram até comida pra ela. Deram beiju, mingau e ela comeu tudo. Disseram que ela até estava comendo as bananas que ela plantou na roça.
Isso é verdade mesmo. Sempre a gente escuta o barulho do espírito dos finados nossos parentes aqui, a gente fica com muito medo. Muito medo mesmo. Depois de quarenta dias é que elas vão embora e não voltam mais. Alguns dizem que eles vão morar com o Filho do Osso*. Outros, que são ruins ou que se matam se enforcando, não vão morar com eles e ficam aqui mesmo no mato.
Uma vez o pajé disse que sonhou com um rapaz que se enforcou e no sonho ele pedia pra ir embora morar com o Filho do Osso, mas ele disse que não podia fazer isso. Que não podia levar ele pra lá. Ele tinha que ficar morando aqui mesmo na terra. Por causa do tipo de morte dele.
A gente tem muito medo do espírito morto, porque ele dá doença pra nós. Por isso que a gente sempre mora todo mundo junto. Você pode ver que nossas casas sempre têm mais de uma família ou está todo mundo sempre dormindo junto. Isso é porque a gente tem muito medo. E sempre tem de ter fogo na nossa casa, porque a gente tem medo de ficar no escuro. É muito perigoso ficar no escuro.
Quando eu fui pra cidade, fiquei num quarto que não dava pra fazer fogo, aí eu deixei a luz acesa toda à noite, porque é muito perigoso ficar sem luz no quarto. Dá muito medo e o espírito do mal ou os espíritos dos mortos podem aparecer pra nós.
Você não tem medo do espírito morto?
… Eu tenho!
Glossário
Benzimento: processo mágico de proteção, cura, prevenção de doenças, conflitos, etc. praticado especialmente pelos benzedores, homens-de-banco e pajés, por meio da manipulação de palavras, objetos da natureza e fabricados. O benzimento, também conhecido como encantamento, sempre tem objetivos benéficos.
Filho do Osso: demiurgo comumente comparado ao Deus cristão pelos indígenas do alto Rio Negro.
Igarapé: do tupi iara’pé, “caminho da água”. Canal fluvial natural; rio pequeno.
O livro pode ser adquirido em contato com autor pelo email: marcclau@hotmail.com.
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