Vida mudada. Igreja reavivada. Mundo evangelizado
[Héber Negrão]
Talvez você já tenha ouvido falar dos Irmãos Morávios e do seu incrível engajamento com missões. O que pretendo apresentar aqui é um pouco mais da história deles e da obra missionária que eles realizaram. Com isso, quero apontá-los como um exemplo de serviço e abnegação que devemos imitar. Obviamente o assunto é vasto demais e aqui não é o local adequado para aprofundar em cada detalhe da história. Por isso, já me dou por satisfeito se você, instigado pela curiosidade e pela brevidade desse texto, for atrás de outras fontes para conhecer melhor a história tão inspiradora desses nossos irmãos.
Pietismo
Um dos lemas da Igreja Reformada é “Igreja Reformada, Sempre Reformando.” Essa frase demonstra profunda consciência da fraqueza humana e de dependência do Deus Soberano para que faça a obra continuamente na vida da Sua Igreja. As instituições humanas sempre estão sujeitas a cair, mas a Igreja de Cristo sempre se manterá de pé. Isso não quer dizer que não venha a sofrer de um esfriamento espiritual. Era exatamente isso que estava acontecendo com as Igrejas Reformadas da Alemanha do sec. XV. Era necessário um avivamento espiritual dentro da ortodoxia morta da Igreja Luterana. Foi com esse objetivo que em 1666, Philip Spener separou um grupo de irmãos da sua igreja para reuniões regulares de estudo bíblico e oração em sua própria casa. Esse foi o marco do início do movimento Pietista na Alemanha. Para Cairns,
O pietismo acentuava um retorno interior, subjetivo e individual ao estudo bíblico e à oração. A verdade bíblica se manifestaria diariamente numa vida de piedade, tanto de leigos quanto de ministros.1
A influência do pietismo em missões foi muito importante. Com o avanço do movimento várias iniciativas missionárias foram tomadas que se organizaram em agências de envio de missionários. Todas tiveram sua inspiração no pietismo.
Missão de Halle
Outro grande nome do pietismo foi August Francke, professor da Universidade de Halle, na Alemanha. Ali ele se esforçou para trazer os alunos de volta à Bíblia e à piedade. Francke definiu o pietismo como “uma vida mudada, uma igreja reavivada, uma nação reformada e um mundo evangelizado”. O resultado disso foi que Halle passou a ser um importante centro do pietismo e também uma prolífera agência missionária. Naquela época vários estudantes da Universidade de Halle partiram como missionários para África, América, Ásia, Ilhas do Pacífico, Índia dentre outros.
Esta universidade trabalhou em parceria com o rei da Dinamarca. Frederico IV decidiu começar uma obra missionária no Oriente e pediu que Halle lhe enviasse missionários. Bartolomeu Zingenbalg e Heinrich Plütschau foram os primeiros obreiros transculturais da Missão Dinamarquesa Tranquebar. Sobre essa missão, Justo González diz que:
“O trabalho desses missionários foi variado, pois além de ministrar aos colonos dinamarqueses e alemães, trabalhavam entre católicos que falavam português e entre os índios.”2
Irmãos Morávios
Talvez o pietista mais conhecido seja o conde Nicolau von Zinzendorf. Quando jovem estudou na Universidade de Halle, onde teve Spener e Francke como professores, sendo profundamente influenciado pelo pietismo. Em uma de suas viagens se deparou com o quadro “Ecce Homo”, onde Cristo era retratado dizendo as seguintes palavras: “Dei minha vida por você; o que você faz por mim?”. Sensibilizado por essa obra de arte, Zinzendorf passou a se dedicar ao trabalho de Cristo.
Em 1722, ele deu abrigo em sua propriedade chamada “Herrnhut” (cabana do senhor) a um grupo de 300 pessoas que estavam sendo perseguidas na Morávia (Áustria e Leste Europeu) por serem adeptas da sã doutrina pregada por John Huss. Esse grupo de imigrantes deu origem aos conhecidos Irmãos Morávios (“Unitas Fratrum”).
Cinco anos depois ocorreu um significativo avivamento trazendo grande transformação na vida dos morávios. Eles conduziram uma vigília de oração ininterrupta durante 100 anos e adotaram a simplicidade como modo de vida dando grande assistência aos necessitados de sua sociedade.
No ano de 1731 o conde Zinzendorf teve um encontro com cristãos nativos da Groelândia e da Índia (frutos do trabalho missionário de Halle) e ficou chocado com o apelo deles para que tivessem mais missionários em suas terras. O conde levou este apelo aos morávios que habitavam em Herrnhut e estes abraçaram a causa de maneira empolgante. Começou aí o despertamento da igreja morávia para as missões transculturais.
Missões Morávias
É importante lembrar que até essa época a igreja cristã acreditava que era responsabilidade do Governo alcançar os outros povos com o Evangelho, através das atividades de colonização. Segundo Kenneth Mulholland, “os morávios foram os primeiros cristãos a colocar em prática a ideia de que a evangelização dos perdidos é dever de toda a igreja, não apenas de uma sociedade ou de alguns indivíduos.”3
Uma das principais características do movimento missionário moraviano era que eles não eram sustentados pela igreja local. Os próprios missionários se dispunham para o campo, comprometendo-se a utilizar a sua profissão para manterem-se ali. Grande parte dessas profissões envolvia trabalhos manufaturados, o que dava maior flexibilidade para o missionário na administração do seu tempo. Por isso, eles eram orientados por Zinzendorf a não assumirem qualquer função nas fábricas e fazendas do local.
O principal objetivo destes irmãos era levar o Evangelho até os confins da terra, mas não se limitava somente ao anúncio da Palavra; eles estavam comprometidos também com o desenvolvimento econômico e social da sociedade em que trabalhavam. Falando sobre o ministério que os irmãos morávios desenvolveram em Labrador, Ruth Tucker diz que “à medida que sua influência econômica cresceu também aumentou a sua influência espiritual, e uma igreja Morávia florescente surgiu neste país”4. Eles eram leigos que usavam suas profissões não somente para manterem-se no campo missionário, mas também para criar vínculos de amizade com os moradores locais.
Outras características do movimento missionário dos Irmãos Morávios era que eles deveriam iniciar um trabalho missionário entre povos pouco ou não evangelizados. Eles aceitavam a cultura do povo, sem impor seus costumes europeus. Segundo o conde Zinzendorf, o missionário era enviado para evangelizar, não para doutrinar, por isso a mensagem que eles anunciavam era tão somente o amor de Cristo, e deixavam para se aprofundar em outras doutrinas após a conversão da pessoa.
Depois de 100 anos de intensa atividade missionária os Irmãos Morávios tinha estabelecido 41 centros missionários, 40 mil batizados nos campos e 208 missionários ativos. 50 anos depois este número subiu para 700 centros missionários, 83 mil batizados, 335 missionários ativos e 1500 obreiros nacionais. A proporção chegou à impressionante marca de um missionário para cada 25 cristãos morávios, marca essa que dificilmente será superada por alguma empreitada missionária.
Antes de finalizar, é importante observarmos um círculo de influências que ocorreram naqueles anos. John Wycliffe foi considerado a “estrela-d’alva” da Reforma porque lutou pelos mesmos ideais dos reformadores, séculos antes destes existirem. Wycliffe influenciou John Huss, que também lutou contra os dogmas e as heresias da Igreja Católica. Perseguido e morto, Huss deixou, como fruto de seu trabalho, os Irmãos Boêmios que defenderam a sã doutrina em meio à escuridão espiritual da sua época. Os Irmãos Morávios eram descendentes espirituais dos irmãos boêmios, pois seguiam as doutrinas de Huss e fugiram da Morávia por causa da perseguição religiosa indo se refugiar em Herrnhut, as terras do conde Zinzendorf. Anos mais tarde, John Wesley (o pai do Metodismo) em uma perigosa viagem marítima admirou-se com a paz de espírito que sentiam alguns cristãos morávios que estavam no mesmo navio que ele durante a tempestade. Naquela ocasião os morávios mostraram a Wesley que ele ainda não havia “nascido de novo” e que estava vivendo uma religiosidade vazia. Depois disso, Wesley fez uma visita a Herrnhut para conhecer o trabalho dos Irmãos Morávios e padronizou o metodismo de acordo com o modelo que viu ali.
J. Wycliffe >> J. Huss >>Irmãos Boêmios >> Irmãos Morávios >> John Wesley >> Metodismo
A única razão de tamanho sucesso missionário foi a visão cristocêntrica que os Irmãos Morávios tinham. Cristo, e somente Cristo, era o foco da obra que eles realizavam. E o lema missionário que eles assumiam deixava isso ainda mais claro: “Conquistar para o Cordeiro a recompensa de seu sacrifício”.
Notas
1. O Cristianismo Através dos Séculos. CAIRNS, Earle, p 370.
2. História do Movimento Missionário. GONZÁLEZ; ORLANDI, p 219.
3. Perspectivas no Movimento Cristão Mundial, p 277.
4. TUCKER, Ruth. Missões até os Confins da Terra, p.116
______________
Héber Negrão é paraense, tem 30 anos, mestre em Etnomusicologia e casado com Sophia. Ambos são missionários da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB), com sede em Belém, PA.
Matheus Cruz
Muito bem amarrado o texto.
consegui assimilar muitas coisa que não tinha entendido nas aulas do professo Jonas Cunha 😀
eei, acho que tu poderia indicar esse texto pra ele usar como referencia, Héber.
tá muito bom.
Jean
Precisamos nos desprender do comodismo e nos envolver entre os menos abastados e lá fazermos a Missão Integral: Ministrar-lhes a alma e ao corpo (alimentação, saúde, etc.)
Rev. Sérgio Donizeti Párice
Que alegria ler esta matéria e relembrar fatos da história da evangelização mundial; de como o amor pelas almas fervia nos corações. Oh Deus, aviva em nós a tua obra, aviva a paixão pela salvação das almas.
Antonia Leonora van der Meer
Excelente reflexão, que mostra como nossa igreja brasileira tem muito a aprender para tornar-se realmente uma igreja missionária…
Tonica
Pr. Alexandre Villarinho
Muito bom artigo, só fico me perguntando se a igreja atual não está também vivendo uma religião vazia como foi falado pelos Moravianos a John Wesley. Percebam que quando Wesley ouviu isto dos moravianos, ele não estva a passeio naquela viagem marítima.
Yago Goulart
Ótimo texto amigo, parabéns pela bela síntese.