Leandro Silva

Não é de hoje a constatação da forte presença da igreja nos bairros mais empobrecidos. Das favelas do Rio de Janeiro às comunidades urbanas do Nordeste, extrema pobreza, violência e injustiça convivem lado a lado com a profusão de templos.

Oficializado no dia 22 de agosto de 1968, o bairro de Felipe Camarão, em Natal, capital do Rio Grande do Norte, é um exemplo dessa realidade.

Segundo o censo de 2000, a população do bairro está calculada em 45.907 habitantes, mas as estimativas são de que já existam cerca de 72 mil pessoas, vivendo em uma área de 663,4 hectares. São 10.782 domicílios, sendo que 1.227 são moradias construídas em área de risco (Censo 2000); 31,39% dos moradores sobrevivem com um salário mínimo, 41,08% recebem até três salários, 12,82% não têm renda alguma. A média mensal dos rendimentos é de 1/3 da média da cidade, o que significa R$ 327,00 por família. 29,82% da população é formada por jovens; 35,4% está na faixa etária de 0 a 14 anos; apenas 11,81% da população terminou o Ensino Médio. O número de pessoas analfabetas chega a 22,9% da população com mais de 25 anos. Um dos principais líderes em número de casos de violência contra a mulher, maus-tratos e abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, Felipe Camarão é também o bairro que detém o maior volume de submoradias, com pelo menos oito favelas em seu espaço geográfico. Em 2009 mais de 40 jovens foram vitimas da violência armada. Entre os mais de 36 bairros que compõem a cidade de Natal, é o 4° mais populoso; é formado por 18 comunidades, dentre as quais 8 são irregulares. Está localizado na zona oeste de Natal, região que em conjunto com a zona norte abriga mais de 50% da população pobre e 60% do total das favelas do município.

Mas há uma boa notícia: Felipe Camarão é também o bairro mais evangélico de Natal. Em 2001 o Serviço para Evangelização da América Latina (SEPAL) fez um levantamento das igrejas evangélicas em Natal e encontrou 41 igrejas no bairro. Em 2005, com financiamento da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi realizada uma cuidadosa pesquisa e encontramos 59 igrejas no bairro. Hoje, já existem diversas outras que surgiram depois do levantamento, de modo que podemos dizer com bastante certeza que no atual momento existem pelo menos 70 igrejas atuantes na comunidade. Os evangélicos de Natal começaram a ser despertados para o desafio de Felipe Camarão em setembro de 2003, no Seminário Teológico-Estratégico Modos de Enfrentamento da Pobreza em Natal, no qual ficou clara a urgência de voltar nossos olhos para a região. Naquele mesmo ano, a pesquisa divulgada pela SEPAL chamou a atenção de vários líderes cristãos atuantes na comunidade, que se reuniram para refletir sobre a contribuição que poderiam dar para a reversão dos cruéis indicadores sociais de Felipe Camarão. A pergunta central no evento era o porquê essas duas realidades (a combinação dos piores índices de desenvolvimento humano e maior concentração de igrejas) não se cruzarem durante anos, permanecendo isoladas e intactas, como se não coexistissem. Porque a forte presença da igreja não se traduz em transformações do contexto injusto em que está inserida? As perturbadoras constatações sobre a apatia das igrejas em relação aos alarmantes desafios sociais levaram os líderes a refletir sobre a necessidade de dar continuidade a este trabalho.

Em 2005, enquanto eram realizadas reuniões mensais nas mais diversas igrejas do bairro, uma pesquisa patrocinada pela UFRN ia descobrindo cada igreja de Felipe Camarão. Ao longo destas reuniões, uma rede de igrejas e líderes foi sendo construída coletivamente. Em dezembro de 2005 a Associação de Líderes Evangélicos de Felipe Camarão (ALEF) foi oficialmente criada, com o objetivo de reunir as igrejas que atuam localmente para o desenvolvimento de programas focados na transformação comunitária e missão integral. As igrejas possuem uma capilaridade que não pode ser encontrada em nenhuma outra forma de organização social das comunidades, estando presentes em todos os recantos dos bairros e favelas, mesmo os mais inóspitos, onde os problemas sociais mostram sua face mais cruel e os serviços públicos são ainda mais ausentes. O resultado é revolucionário: não apenas uma organização, mas uma rede de igrejas e líderes (não apenas pastores, mas líderes comunitários, de jovens, de mulheres, de missões…), que gerenciam e executam um amplo programa de desenvolvimento local e atuam para a transformação comunitária,  nos oito eixos de atuação da entidade: educação, formação de líderes, saúde, meio ambiente, construção da paz, economia solidária, cultura e juventude.

Nosso alvo: a transformação integral das comunidades

Felipe Camarão ilustra um cenário comum às comunidades empobrecidas de todos os rincões do país. Nenhuma outra organização está tão presente nos bairros. Porém, quando comparamos a presença da igreja com seu impacto ficamos frustrados. Embora muitas pessoas estejam sendo alcançadas pelo evangelho, coletivamente a igreja não está influenciando na estrutura social das comunidades do país. O resultado está aí: quanto mais empobrecida a comunidade, maior o número de igrejas. O evangelho cresce, mas não há mudança, transformação. É razoável afirmar que podemos fazer mais!

Dois são os motivos principais de dezenas de igrejas em um único bairro não conseguirem causar impacto social: a falta de unidade e a uma missiologia reducionista.

Cada igreja tem se voltado para suas próprias atividades, não reservando espaço em sua agenda para o trabalho conjunto com outras igrejas. Se desejarmos influenciar as comunidades em que atuamos com o evangelho integral, devemos inserir em nossas agendas esta palavra bem específica: unidade. Mas que tipo de unidade devemos buscar? Certamente que a concepção ufanista das marchas e movimentos pontuais não é suficiente. É necessário construir um amplo esforço conjunto, baseado em projetos, ações e programas direcionados a provocar transformações sociais que possam fazer da comunidade um lugar mais parecido com o Reino de Deus e construir uma face pública relevante, que expresse de forma contundente os valores do evangelho para regiões que clamam por uma intervenção efetiva do corpo de Cristo. Por maior que seja, nenhuma igreja pode mudar sozinha toda uma região. Este trabalho é coletivo.

É necessário repensar a eficácia de nossos modelos missiológicos. As comunidades estão cheias de igrejas irrelevantes, centradas apenas no esforço evangelístico, entendido como salvar almas para o céu, mas que não se lembram do quão radical foi a encarnação de Jesus, que em seu ministério ia por toda a parte “pregando, ensinando e fazendo o bem” (Mt 10.38). Urge que empreendamos esforços a fim de ampliar nossa compreensão da missão, que esta se baseia não apenas em “ganhar almas”, mas em discipular e servir as comunidades nas quais atuamos, sinalizando com a maior densidade possível, em palavras e ações, o Reino de Deus, que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo! Felipe Camarão está aí para mostrar que isto é possível!

* Leandro Silva é Presidente da Associação de Líderes Evangélicos de Felipe Camarão (ALEF) e coordena a Campanha Nacional de Políticas Públicas de Juventude da Rede Fale.

  1. Pois é Leandro. Moro em uma cidade do interior do Estado do Ceará, Sobral, onde a presença evangélica (não confundir com ação cristã) é significativa. Sobral é uma cidade característica do semi-árido nordestino, católica, e com terríveis contrastes sócio-econômicos, onde à maioria pobre falta quase tudo. Me sinto cada vez menos atraído em fazer parte de uma dessas ditas igrejas. Não conseguiremos impactar a sociedade se não tivermos como exemplo a igreja de Atos, lógico, guardando as devidas transformações históricas e culturais que o mundo moderno nos impôs. Desejo a todos os que estão envolvidos neste trabalho em Natal, mais especificamente no bairro de Felipe Caramão muita saúde e a força do Espírito Santo.

  2. Maristela Araujo

    Pois é pessoa,
    Eu moro em uma bairro da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. Aqui há uma profusão de igrejas evangélicas por metro quadrado, que surpreende.
    Porém o bairro é assolado por homosexualismo, pobreza e falta de estrutura. Nossos jovens são completamente alienados e muitos estão nas igrejas apenas para namorar ou passar tempo.
    A cada dia que passa sinto menos vontade de entrar nos templos e as atitudes que vejo em seus membros me envegonha e me entristece.
    Acredito que chegamos a um momento onde aqueles que não se conformam com essa situação tomem uma atitude ou será impossível pregar o evangelho.
    A Biblía diz que virá dias onde o amor de muitos esfriará e nós estamos vivendo esses dias.
    Fica a pergunta: o que fazer?

  3. Miguel Arcanjo

    Caro Leandro,
    Fico muito alegre em ver a materialização desta obra no bairro de Felipe Camarão em Natal-RN. Não sei se lembra quando eu estava pastoreando a igreja MEPB do bairro das Quintas, Novo Horizonte, e você ainda bem mais jovem do que hoje, mas já cheio de sonhos, nos visitava para mostrar e demonstrar como alguns projetos de políticas públicas e um pouco de conscientização da comunidade poderia transformar não só o espaço urbano, mas os seus habitantes principalmente.
    Acredito, igualmente, que a igreja poderá ser usada como catalisador nas transformações das comunidades enquanto, simultaneamente, é “transformada” ou reformada. Espero vê-lo em breve. Deus te Abençoe!

  4. Isabelle Ludovico da Silva

    Parabéns pelo exemplo que este ministério representa para todos nós. Que esta experiência seja amplamente divulgada e sirva de referência para a Igreja Evangélica! Sendo sal e luz no mundo, ela se torna não somente sinal do Reino, seguindo e exemplo de Cristo, mas nos liberta da mensagem demoníaca da teologia da prosperidade.

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