A revista Ultimato 343 (julho-agosto/2013) já está no portal, mas liberada apenas para assinantes. Ao mesmo tempo, a edição 342, antes restrita, agora já pode ser lida por todos. Por isso, aproveitamos o embalo para publicar aqui o artigo da seção Altos Papos da revista Ultimato 342. Leia a seguir.

 

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A sabedoria está nas ruas

“A sabedoria clama lá fora; pelas ruas levanta a sua voz. Nas esquinas movimentadas ela brada; nas entradas das portas e nas cidades profere as suas palavras: Até quando, ó simples, amareis a simplicidade? E vós escarnecedores, desejareis o escárnio? E vós insensatos, odiareis o conhecimento?” (Pv 1.20-22).

UltJovem_19_07_13_Altos_papos_ruasCaminho por cima de rios, camadas de concreto e arames dobrados. Passo por uma senhora que aguarda no ponto de ônibus; então, cabeleireiros, farmácias e bares. Ora sinto medo, ora sinto liberdade, mas este último é mais raro. Na maior parte do tempo procuro olhar para o horizonte. Mas aqui existem muros que me forçam a olhar apenas para o óbvio, para a rua de pedras fincadas. Pedras. Fincadas. Meu Deus, o que estamos fazendo? Em vez de campo estancado, vemos muros. Muros, muros, muros. Muros que afirmam a todo tempo “isso é meu”. Temos medo. Sim, medo da violência e da agressão. Mais do que isso, temos medo de sermos descobertos, de que nos vejam em nossa naturalidade.

Fecho os olhos para sentir a brisa no rosto sem dó. Às vezes me sinto ameaçada, às vezes sinto que sou a ameaça. Esta cidade cresce se autodestruindo. Desmorona a vida para que novas vidas cresçam em deleite. E não temos mais tempo nem para conhecer até onde levam as ruas. Levam a algum lugar, “só que agora não tenho tempo”. Eu, que me programo para ficar à toa, vou lá para ver, e sei que ela continua um pouco mais. Sigo o trilho, depois o chão batido, trechos em paralelepípedo e novamente pedra fincada. Pedras fincadas, de onde tiramos essa ideia?

As irregularidades são tantas. É sábado, tudo está quieto, exceto ali. Seguindo aquele trecho, há um som alto e pessoas aglomeradas. Mas não vou. Continuo, vejo o menino soltando uma pipa branca de rabiola e tudo. Agora outro jogando futebol com seus iguais, meninos do mesmo chão. Meu Deus, esse lugar é de todo mundo, a rua é nossa! Nela o moço anda de bicicleta, e aqueles ali põem mesas e cadeiras para conversar. Mas não é. Nela deixamos claras a nossa sujeira e falta de autocontrole. O moço deita porque bebeu demais. O lixo é nosso, as pilhas de lixo são nossas. O lixo escorrendo no rio é daquela casa, e daquela outra, e daquelas lá na frente. O lixo empilhado no muro veio do prédio ao lado. O menino jogou um pedaço de papel e nem sequer olhou para ver. A rua, Deus, a rua não é mais de ninguém.

Fico pensando por que me importar com tudo isso. Vejo uma escola e atrás dela um pasto queimado. Uma trilha subindo o pasto é o rastro das pessoas que passam por ali. Aí queimam o capim para timbrar tudo conforme o cinza do asfalto. Passam ali porque são apressadas, queimam porque dá na mesma. Que coisa, pedras fincadas e pastos queimados. Chego ao topo. Vista? Não, uma antena e mais uma casa murada. Dos dois lados, cercas e muros.

Sigo em frente porque acho que me levará a um lugar seguro. Vejo mais casas e mais sinais de capim queimado. Vejo pessoas conversando na calçada, e elas me veem. A rua é um lugar para ver e ser vista. Quero me esmorecer desse cinza, lembrar-me dos lugares sem pedras fincadas, sem lixo, sem muros. Meu Deus, de minha peregrinação brota a velha certeza: quero chegar à minha morada.

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Liz Valente, 28 anos, casada com Pedro Paulo, é arquiteta e gosta de passear por vários campos da arte.

 

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