Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração. (Hebreus 4:12)

Uma das verdades que mais distinguem o Deus da revelação bíblica é que ele é um Deus que fala. Ao contrário dos ídolos pagãos – que, sendo mortos, são mudos – o Deus vivo falou e continua falando. Eles têm bocas, mas não falam; ele não tem boca (porque é espírito) mas, mesmo assim, fala. E, já que Deus fala, nós devemos ouvir. Este é um tema constante no Antigo Testamento, em todas as três das suas divisões principais. Na Lei, por exemplo: “…amando ao Senhor teu Deus, dando ouvidos à sua voz”.¹ E nos escritos da Sabedoria: “Oxalá ouvísseis hoje a sua voz!”.² Existem também muitos exemplos nos Profetas. Em que residia a “dureza de coração” da qual Deus vivia reclamando para Jeremias? Era porque o povo “se recusa a ouvir as minhas palavras”.3 O trágico nesta situação é que o que fazia de Israel um povo especial, diferente, era precisamente o fato de Deus tê-lo chamado e falado com ele. Mesmo assim, ele não ouvia nem respondia. O resultado foi juízo: “Visto que eu clamei e eles não me ouviram, eles também clamaram e eu não os ouvi”.4 Quase se poderia dizer que a epígrafe gravada na lápide da nação seria: “O Senhor Deus falou ao seu povo, mas ele recusou-se a ouvir”. Por isso Deus enviou seu Filho, dizendo: “Eles ouvirão ao meu Filho”. Mas, ao invés disso, eles o mataram.

Ainda hoje Deus fala, se bem que há certas discordâncias na igreja quanto à forma como ele o faz. Eu mesmo não creio que ele fale conosco hoje em dia de maneira direta e audível, como fez, por exemplo, com Abraão,5 com o menino Samuel6 ou com Saulo de Tardo no caminho de Damasco.7 Nem poderíamos garantir que ele se dirige a nós “face a face, como um homem fala com seu amigo”,8 já que esta relação íntima que Deus manteve com Moisés é especificamente relatada com tendo sido única.9 Para falar a verdade, as ovelhas de Cristo reconhecem a voz do bom Pastor e o seguem,10 pois isto é essencial para o nosso discipulado; mas em nenhum lugar nos é prometido que essa voz será audível.

Mas, então, como é que Deus falou diretamente através dos profetas? Nós certamente deveríamos rejeitar qualquer afirmação de que existam hoje profetas comparáveis aos profetas bíblicos. Pois eles eram a “boca” de Deus, instrumentos especiais da revelação, e seu ensinamento faz parte do alicerce sobre o qual está construída a igreja.11 Pode até ser, no entanto, que haja algum tipo secundário de dom profético, como quando Deus dá a certas pessoas uma percepção especial quando à sua Palavra e seu querer. Mas não deveríamos atribuir infalibilidade a tais comunicações. Pelo contrário, deveríamos avaliar tanto o caráter como a mensagem daqueles que dizem falar da parte de Deus.12

A principal maneira pela qual Deus nos fala hoje é através da Escritura, como o tem reconhecido a Igreja geração após geração. As palavras que Deus falou através dos autores bíblicos e que ele providenciou para que fossem escritas e preservadas não são uma letra morta. Um dos principais ministérios do Espírito Santo é tornar a Palavra escrita de Deus “viva e eficaz” e “mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”.13 Portanto, nunca devemos separar a Palavra do Espírito ou o Espírito da Palavra, pela simples razão de ser a Palavra de Deus a “espada do Espírito”,14 a principal arma usada por ele para realizar seu propósito na vida de seu povo. É essa confiança que nos capacita a pensar nas Escrituras tanto como texto escrito como mensagem viva. Por isso é que Jesus podia perguntar: “O que está escrito?” ou “Vocês nunca leram?”,15 enquanto que Paulo indagava: “O que dizem as Escrituras?”,16 quase que personificando-as. Em outras palavras, a Escritura (que significa a Palavra escrita) tanto pode ser lida como ouvida, e o que ela diz é aquilo que Deus diz através dela. Através da sua antiga Palavra Deus se dirige ao mundo moderno. Ele fala através do que já falou uma vez.

E Deus nos convida a darmos ouvidos àquilo que, através da Escritura, “o Espírito diz às igrejas”. 17 O problema é que ainda hoje, tal como nos dias do Antigo Testamento, as pessoas geralmente não ouvem, não podem ou não querem ouvir a Deus. A falta de comunicação entre Deus e nós ocorre, não porque Deus esteja morto ou calado, mas porque nós não estamos ouvindo. Se, durante um telefonema, o telefone fica mudo, nossa conclusão imediata não é que a pessoa do outro lado morreu. Pelo contrário: a ligação é que foi cortada.

O mesmo estado de “ser desligado de Deus” geralmente acontece conosco, como cristãos. Não é esta a principal causa da estagnação espiritual que às vezes experimentamos? Nós paramos, deixamos de ouvir a Deus. Talvez tenhamos deixado de ter um período diário de oração e leitura da Bíblia. Ou então, se continuarmos a fazê-lo, talvez seja mais uma rotina do que uma realidade, pois já não temos aquela expectativa de que Deus nos fale. Neste caso, precisamos adotar a atitude de Samuel e dizer: “Fala, Senhor, pois o teu servo ouve”.18 Assim como o servo de Deus, deveríamos estar aptos para dizer? “Ele me desperta todas as manhãs, desperta-me o ouvido para que eu ouça como os eruditos”.19 Deveríamos imitar Maria de Betânia, que “quedava-se assentada aos pés do senhor a ouvir-lhe os ensinamentos”.20 Naturalmente, precisamos não apenar ser contemplativos, mas também ativos; trabalhar, mas também orar, ser tão “Martas” quanto “Marias”. Mas não seria o caso de não permitimos que a Marta que há em nós ceda lugar a Maria? Porventura não temos negligenciado aquilo que Jesus chama de “a melhor parte”?21

Notas
1 Dt 30.20
2 Sl 95.7
3 Jr 13.10; cf. Is 30.9
4 Zc 7.13; cf. Jr 21. 10-11
5 Gn 22.1
6 1 Sm 3.4, 6, 8, 10
7 At 9.3-7
8 Êx 33.11
9 Dt 34.10
10 Jo 10. 3-5
11 Ef 2.20
12 Mt 7.16; 1 Ts 5. 20-22
13 Hb 4.12
14 Ef 6.17
15 Mt 19.4; 21.42
16 P.ex., Rm 4.3; Gl 4.30
17 Ap 2.7
18 1 Sm 3,9-10
19 Is 50.4
20 Lc 10.39
21 Lc 10.42
Texto originalmente publicado no livro Ouça o Espírito, Ouça o Mundo.

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