Guilherme de Carvalho – L’Abri Brasil[1]

“Árvore da Vida” (The Tree of Life, 2011) não é uma unanimidade. Em Cannes foi criticado por metade da plateia e aplaudido pela outra metade. Levou a Palme D’Or em Cannes (2011) e não levou nada no Oscar (2012), a despeito das indicações. Foi assistido quatro, cinco, seis vezes pelos fãs, e abandonado na metade ou antes por quase a metade do publico (ao menos na sala de cinema aonde eu estava). Pelo que ouvi, quase sempre no mesmo ponto (a parte do “dinossauro”).

Pessoalmente, considero este filme como uma das grandes obras-primas da história do cinema, e como uma das maiores peças de arte religiosa desde que a sétima arte foi inventada. E muita gente diria amém, seja pela sua qualidade técnica e artística, seja por sua profundidade espiritual.

Que tipo de filme poderia levar cristãos e não cristãos a “cuspir” sobre ele e ao mesmo tempo em que um ateu professo como o apresentador da Globo Zeca Camargo chega a reconhecer publicamente que seu ateísmo foi abalado pela película? (Veja o seu artigo, “O Cômico e o Cósmico”).

 

PORQUE MUITA GENTE NÃO ENTENDEU MALICK

Com a licença dos leitores, vou agora ferir nervos sensíveis: exceto, talvez, por uma estreita faixa da assistência que não gostou do filme por razões genuinamente técnicas ou ideológicas, suspeito que a maior parte dos cristãos e não cristãos que viram e não gostaram não souberam ver o filme, devido aos longos anos de condicionamento televisivo e hollywoodiano.

Ou melhor: não sabemos ver cinema como arte. Uma das observações mais duras do cineasta russo Andrei Tarkovski sobre o cinema é exatamente essa: que o cinema deixou de ser uma arte relacionada à imagem e à imagem no tempo e se tornou teatro filmado.

“… os filmes de Lumière foram os primeiros a conter a semente de um novo princípio estético. Logo a seguir, porém, o cinema distanciou-se da arte e empenhou-se em seguir o caminho mais seguro dos interesses medíocres e lucrativos. Nas duas décadas seguintes, filmou-se praticamente toda a literatura mundial, além de um grande número de obras teatrais. O cinema foi explorado com o objetivo direto e sedutor de registrar o desempenho teatral; tomou o caminho errado…”

Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, Martins Fontes, p. 71.

 

Não é preciso ser purista nem gostar dos filmes de Tarkovski (o que, na verdade, é difícil) para reconhecer que há algo verdadeiro aí. Se o cinema for apenas teatro filmado, não é uma forma de arte distinta. Se for apenas tecnologia de efeitos especiais, o cinema e o game poderiam ser a mesma coisa.

Não há pecado em assistir a um filme por pura diversão – é para isso que serve o filme “pipoca” – e ninguém tem a obrigação de gostar e de aprender a gozar de cada forma de arte criada pelo homem. Mas não é inteligente utilizar o entretenimento como critério final de julgamento da arte.

Mais do que isso, talvez possamos até dizer que se Blaise Pascal estiver certo, e o entretenimento for uma forma do homem evitar a consciência de sua ruína espiritual e de sua necessidade de Deus, é subecristão considerar o poder de entretenimento um critério final para qualquer coisa, e muito menos para a arte.

A questão é que o último filme de Malick não é, definitivamente, uma peça de entretenimento. Vou aqui tentar interpretá-la como uma obra de arte no sentido Tarkovskiano, que gira em torno do princípio estético próprio do cinema, da criação de “esculturas” temporais; e que evita perder-se no teatro, ou no recurso tecnológico. Não se pode assistir The Tree of Life como se assiste “O Homem Aranha”. Não é que não se possa assistir “O Homem Aranha”, mas que não se pode assistir aos dois filmes com o mesmo espírito.

Assistir “A Árvore da Vida” é mais como ir a um museu de arte, para ter a chance de ver um Rembrandt: prende-se a respiração e gastam se pensamentos e emoções na busca de uma experiência estética intencional. Não se trata de uma “distração”, de buscar algo para “rir um pouco”, nem do estímulo de uma história aventuresca. Se alguém nunca foi a um museu de arte e jamais quis ir a um; se a única música que ele escuta é a do rádio (para não se sentir sozinho em casa) ou aquela música que evoca as sensações da última balada, é evidente que tal pessoa não está preparada para avaliar o cinema de Malick.

Repito: se você sabe ver um filme como arte e não gostou de Tree of Life, isso não se aplica a você. É perfeitamente adequado desaprovar de forma inteligente uma obra de arte. Mas infelizmente isso não se aplica à maioria do público brasileiro; de modo que uma leve e saudável suspeita de si mesmo pode ajudar bastante ao cinéfilo.

Mas há algo mais em jogo. Segundo minha percepção, o filme de Malick não é apenas uma obra de arte, mas uma obra de arte religiosa. E isso acrescenta uma segunda complexidade: é que assistir “A Árvore da Vida” é um pouco como ir à Igreja; ou, para aqueles com uma espiritualidade mais ampla, ter uma visão espiritual de uma paisagem natural grandiosa. De fato “Terry” chega à ousadia de transformar a sala de cinema em uma igreja ao botar o público para ouvir o sermão de um padre, dentro de uma capela, baseado no livro de Jó; e um sermão de arrancar o couro (veja o texto AQUI). Quem, hoje, teria a coragem, a capacidade, e a autoridade para fazer uma coisa dessas? Uns poucos… e Terrence Malick.

E daí a dúvida: a igreja estava em Cannes? Ou será que Cannes foi à igreja? Uma coisa é certa: se você não sentiu essa fusão religiosa ao ver o filme, então você ainda não viu o filme. E essa é a outra razão, creio, porque muita gente não entendeu Malick: é que lhes faltavam categorias espirituais e até mesmo teológicas para assistir ao filme. Posso citar uma: A Árvore da Vida é inacessível sem uma categoria teológica básica, um teosofema que é enunciado explicitamente por Malick no princípio do filme como sua subestrutura fundamental: a distinção de Natureza e Graça, que tem uma longa história no ocidente desde suas raízes bíblicas, passando por Agostinho, Tomás de Aquino, Calvino, Pascal, até o pensamento cristão do século XX (Tillich, Barth, Dooyeweerd, de Lubac, entre outros).

A completa ignorância sobre a profundidade e a importância dessas categorias bloquearam a compreensão do filme para uma miríade de críticos de cinema – alguns até experientes – que tentaram reduzi-lo a uma leitura psicológica edipiana, ou a uma crítica da sociedade americana dos anos 50, ou a um experimento surrealista, ou uma imitação de Kubrick em “2001” (absurdo dos absurdos), ou a mais ridícula de todas: uma coleção sem propósito de imagens e sons na esteira dos documentários da NatGeo. E quando esse secularismo raso se misturava com a falta de educação artística, os resultados só poderiam ser catastróficos. Ao que parece esses críticos simplesmente assumem que as categorias teológicas cristãs (que, a propósito, foram essenciais para a própria constituição das categorias filosóficas modernas) “não podem” ser essenciais para compreender uma obra-prima contemporânea. Não podem porque isso seria anacrônico, porque seria kitsch, porque “ninguém usa isso mais”, porque isso não é coisa de gente “inteligente”, porque seria “propaganda religiosa”… E assim eles prosseguem, arrancando os próprios olhos bem diante da evidência.

De novo, preciso observar que alguns expectadores e críticos realmente entenderam a carga religiosa e existencial do filme, e não gostaram exatamente disso. Ao que se sabe essa foi a motivação de parte das vaias em Cannes; mas não deveríamos esperar algo diferente de um filme que pretende atingir o expectador em sua raiz espiritual. Isso dói tanto quanto tocar na raiz de um dente.

Assim, sugiro àqueles que viram o filme e não o entenderam, ou não gostaram dele, que tentem de novo. Tentem diferente, com outra atitude. Mais do que isso: orem (ou meditem, se não forem cristãos) antes e depois de ver o filme. Não dá pra assistir A Árvore da Vida só com os olhos. Tem que ser com a alma.

 

MALICK E O FILME

Não temos espaço para uma sinopse aqui, então recomendo a Sinopse da Wikipédia, onde há detalhes sobre o enredo.

Quanto ao diretor, também não faltam websites com informações, embora faltem, efetivamente, informações! Terrence Malick é uma das figuras mais enigmáticas do cinema contemporâneo. Avesso a fotografias, a entrevistas, ausentou-se até mesmo de Cannes para evitar publicidade.

Malick nasceu em Waco, Texas, em 30 de Novembro de 1943, cresceu num contexto rural, estudou filosofia em Harvard (aluno de Stanley Cavell, importante estudioso de Heidegger, Kierkegaard e Wittgenstein, e filósofo do cinema) e no Madgalen College de Oxford (sem completar sua tese). Entre seus maiores interesses, a filosofia de Martin Heidegger, o qual ele conheceu pessoalmente. Tornou-se jornalista freelance e chegou a ensinar filosofia no M.I.T. quando se voltou para estudos de cinema, já em 1969. Desde então realizou poucos filmes que o projetaram como um dos maiores diretores americanos contemporâneos (Lanton Mills, 1969; Badlands, 1973; Dias do Paraíso, 1978; Além da Linha Vermelha, 1988; Novo Mundo, 2005; A Árvore da Vida, 2011).

Vale mencionar que suas origens espirituais são cristãs; o pai era cristão maronita, de origem assíria-libanesa, e o próprio Malick foi educado em uma escola episcopal em Austin, Texas. Atualmente ele frequenta uma Igreja Episcopal em Austin (especula-se que seria a Igreja Episcopal “Good Shepherd”) com sua esposa Ecky Wallace, que é filha de um pastor episcopal, estudou teologia e é descrita como “muito devota” (mais do que o marido, talvez!). Até onde vai a fé pessoal de Malick, no entanto, é difícil dizer já que ele não parece interessado em anuncia-la publicamente. No momento o melhor que temos é, provavelmente, a própria obra de Malick.

 

TEMA E MÉTODO

O tema do filme é a “árvore da vida”, uma imagem bíblica que representa a Vida Eterna no Éden. Malick associa essa imagem a outro tema bíblico tradicional: a dos “dois caminhos” (de fato o endereço oficial do filme na internet é “dois caminhos através da vida”, http://www.twowaysthroughlife.com). Há dois caminhos possíveis para responder à árvore, segundo se anuncia logo nas primeiras cenas do filme: um é o caminho da Natureza, que rejeita desapegar-se de si e alimentar-se da árvore, que insiste em sua rigidez e por isso se quebra, e o caminho da Graça, que aceita a dor com esperança e que vê na Árvore tanto a fonte última da Natureza como a única capaz de leva-la à Vida Eterna. O símbolo da árvore aparece do início ao fim do filme, e em todos os seus momentos cruciais. Às vezes como uma pequena planta, às vezes como uma árvore frondosa.

O filme é aparentemente irregular, descontínuo, ignorando a demanda intuitiva que todos nós temos pela linearidade temporal e por conexões lógicas de causalidade. Mas não é que elas sejam negadas no filme; é que sua apresentação é organizada em uma estrutura poética. Na poesia as relações entre as coisas são captadas de forma estética, por meio de associações imagéticas, rítmicas, sonoras, e conceituais, mas sem afirmações diretas e rigores silogísticos. Isso é possível em um filme porque poesia não é apenas um gênero, mas “uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade” (Tarkovski, 18) e assim o artista

“… é capaz de perceber as características que regem a organização poética da existência. Ele é capaz de ir além dos limites da lógica linear, para poder exprimir a verdade e a complexidade profundas das ligações imponderáveis e dos fenômenos ocultos da vida.” (Tarkovski, 19).

Para superar o incômodo da ausência de linearidade o expectador precisa saltar da atitude naturalista para uma atitude poética, e explorar as analogias e conexões estéticas entre as partes aparentemente “soltas” do filme, exatamente como na poesia escrita. A diferença é que a poesia agora é feita de imagens e narrativas. E na verdade a vida é muito mais poética do que “naturalista” (Tarkovski, 20); a mesma intuição necessária para ver o sentido das nossas vidas concretas é a atitude necessária para ver esse sentido no filme de Malick; quando ela está ausente em um, estará ausente no outro e vice versa. Nesse sentido o filme se torna uma pedagogia do significado da vida; a imaginação poética que vê o sentido espiritual da vida no universo do filme ganha a capacidade de imaginá-lo em sua própria existência.

Outro ponto importante é que o filme é completamente autoral. Quase sempre, quando vemos um filme, ficamos impressionados (ou não) com a atuação dos atores. Mas em nosso filme a experiência é completamente diferente. Apesar das grandes atuações e dos grandes nomes, o que vem à mente é o diretor, não os atores. Nisso Malick é fiel ao programa Tarkovskiano de “cinema de autor”. O filme não pretende pôr à frente o ator, a atuação, nem ser fiel a uma narrativa escrita anterior, mas exprime a interioridade do diretor, sua experiência do mundo e sua percepção poética das coisas. “Só em presença de sua visão pessoal, quando ele se torna uma espécie de filósofo, é que o diretor emerge como artista – e o cinema como arte” (Tarkovski, 68).

Quem acompanhou as notícias sobre o filme deve ter topado com a crítica de Sean Penn – o “subjecto” principal do filme, embora não o papel principal – a Malick numa entrevista do jornal francês Le Figaro: “eu não encontrei na tela a emoção do roteiro, que é o mais magnificente que jamais li. Uma narrativa mais clara e convencional teria ajudado o filme sem, na minha opinião, reduzir sua beleza e seu impacto … Francamente, ainda estou tentando descobrir o que é que estou fazendo a li e o que eu deveria adicionar naquele contexto … Terry nunca conseguiu me explicar isso claramente”. O filme foi por outro lado defendido incondicionalmente por Brad Pitt, que faz outro papel central.

Na verdade tudo faz sentido quando o filme é visto como um filme completa e radicalmente autoral. Mas além disso, Jack (representado a vida adulta por Penn) tem uma presença múltipla no filme, como criança, adulto, e mente autorreflexiva; ele claramente não poderia estar contido na atuação de Penn. É claro que pode ter havido uma falha de Malick em relação ao seu próprio roteiro (ainda mais grandioso que o filme?), mas o resultado final não diz respeito à atuação de Penn, e sim à poesia de Malick, e é sobre ele que nos perguntamos assim que pisamos fora da sala de cinema: quem é esse poeta, filósofo e – segundo vou alegar ao final do artigo – esse teólogo?

 

ORGANIZAÇÃO NARRATIVA

Quero sugerir, sem nenhuma prova incontestável (exceto a intuição do próprio expectador, quando assistir ao filme munido dos meus palpites) que temos quatro níveis poéticos/narrativos/temporais no filme, e é de grande ajuda identificar os quatro níveis e o que é contado em cada um deles, pois Malick salta repetidamente de um nível ao outro sem aviso, mas sempre para estabelecer conexões poéticas entre esses diferentes níveis narrativos. E a mesma história é contada em todos os níveis, embora com recursos distintos, de forma que é preciso interpretar um nível temporal a partir do outro, discernindo como a mesma noção é apresentada de um jeito em nível, e de outro em outro nível.

Meus alegados “níveis narrativos” são os seguintes:

(1) O Tempo Interno, que acontece dentro de Jack O’Brian (Sean Penn). É o tempo da autorreflexão de Jack, um homem adulto e “bem sucedido” do ponto de vista secular, trabalhando em Nova Iorque. Toda a história do filme acontece dentro da autorreflexão de Jack, iniciada com a notícia da morte do irmão. No encontro com a família O’Brian (mais para o fim do filme) ele se pergunta como é que a mãe, a senhora O’Brian (Jessica Chastain) suportou a perda do irmão. Essa pergunta reflete o que deixa Jack intrigado: o mistério da graça na vida de sua mãe. Ele encontrará a resposta no final do filme.

(2) O tempo histórico é repassado na memória de Jack, mas é contado de uma forma mais completa, de um ponto de vista narrativamente privilegiado, como um diálogo entre a mãe e Deus. Esse tempo é também iniciado com a perda do filho pela mãe, e pelas perguntas que a mãe faz a Deus (ou seja, a resposta à pergunta de Jack depende da relação entre a mãe e Deus). Essas perguntas introduzem a apresentação do terceiro e do quarto nível temporal, de que falaremos mais adiante.

A perda do filho leva a mãe a uma crise profunda, que a faz perguntar a Deus “por que”. A sogra, numa conversa particular, sugere a ela que não devemos nos prender a nada temporal, e que ela deveria esquecer o filho para evitar a dor. A mãe é submetida à mais terrível tentação quando a sogra diz que o Senhor “envia moscas às feridas que deveria curar” (e a sogra desaparece na cena final do filme). Enquanto ela e Jack fazem essas perguntas, somos levados ao terceiro nível temporal. Mas o fato é que a mãe supera essa tentação; mais ao final do filme ela é representada entre muitas árvores, caminhando e confessando a sua fé em Deus.

Mas voltemos ao segundo nível: o tempo histórico é o tempo da família, no interior da qual o problema da relação entre Natureza e Graça se desdobra. Esse problema é anunciado verbalmente na abertura do filme pela senhora O’Brien, a mãe, ao mesmo tempo em que as imagens revelam como ela foi ensinada sobre isso por seu próprio pai, cuja face não aparece. Com ele ela aprende a recorrer à graça diante da dor na natureza (na cena do contato com uma vaca).

A dualidade de natureza e graça é mostrada no conflito progressivamente revelado entre o patriarca da família O’Brian (Brad Pitt), que existe de forma contraditória e cega, negando a Graça, mas dependendo dela em todos os momentos, e a mãe, que escolheu viver pela Graça e, por assim dizer, “dançar em torno da árvore da vida” (a “dança no ar”, quando a mãe flutua em torno da árvore, é a propósito um tema característico de Andrei Tarkovski). O Pai ensina aos filhos o caminho da Natureza, e a Mãe o da Graça. Por isso eles entram em conflito constante.[2]

Um interessante exemplo da tolice espiritual do pai é o momento do sermão, quando o Padre explica na igreja a mensagem de Jó, de que não existe ponto de estabilidade e garantias de felicidade dentro do tempo, e que ninguém pode impor condições a Deus, nem negar sua presença em razão do sofrimento. Logo depois o pai tenta ensinar aos filhos que a mãe é ingênua, e que o caminho da natureza, em sua busca egoísta por segurança, é o melhor caminho. Mas a mãe também ensina. Ela comunica a necessidade do amor para alcançar a felicidade.[3]

Dentro de si mesmo Jack (representado na infância pela atuação esplêndida de Hunter McCracken) incorpora esse conflito, tendo dificuldades para ser consistente, e sofrendo com grandes dúvidas sobre a existência e a bondade de Deus. Ele passa por momentos de graça e também por momentos de “Queda”, quando se torna perverso e pensa até em matar o pai (na cena em que ele está debaixo do carro consertando-o). Mas ele é “resgatado” através de sua mãe e principalmente de seu irmão, reconciliando-se por causa deles com seu pai[4].

Ao final da narrativa da família o pai, depois de perder o emprego e ver o fracasso de seus projetos temporais, confessa que a glória já estava em torno dele sem que ele o soubesse. E eles precisam deixar a casa onde cresceram num processo de grande luto, encerrando-se assim o relato do tempo histórico.

(3) O tempo cósmico é o tempo do universo natural, de sua origem até o seu fim. Após a pergunta da mãe sobre o porquê da perda de seu filho, Malick nos leva para uma viagem até a origem de todas as coisas, quando Deus criou o universo, desde o Big Bang, passando pela origem das galáxias, do sistema solar, da terra, dos continentes, a evolução biológica, incluindo tanto o sofrimento como a graça como estando presentes desde o princípio. Tudo sendo contextualizado pelas orações da mãe, inspiradas no livro de Jó.

Depois que a narrativa da história da família é encerrada, com a perda da casa, o luto profundo dos irmãos, e a cena da casa se afastando a partir do interior do carro, o tempo cósmico é retomado, contando a história do fim do mundo. O fim do mundo é representado com categorias científicas, como o crescimento do Sol para se tornar uma estrela gigante-vermelha (previsto para alguns bilhões de anos no futuro), o que levará à destruição total da vida na terra, seguido pelo colapso do sol, que se tornará uma estrela anã-branca. Essa parte do filme representa a mortalidade e efetivamente a morte de tudo o que é Natural. Com isso Malick quer dizer que a Natureza, por si só, não tem um futuro. É vaidade.

(4) O quarto nível é o tempo Escatológico, ou seja, o tempo da ação redentiva de Deus, que se consumará no futuro. É o tempo da Fé. Depois do luto da família e do luto do universo, Malick viaja para a realidade além do tempo cósmico atual, e faz Jack imaginar sua própria passagem pela morte (uma pequena porta), enquanto segue uma mulher (um símbolo da Graça?) por um caminho deserto (que possivelmente representa a incerteza e a necessidade de esperança).

Segue-se uma série de metáforas da ressurreição, com corpos mortos no campo, e em seguida com a mulher (a graça?) aproximando-se com a vela acesa e acendendo a vela de outra pessoa (ou seja, ressuscitando-a), uma noiva morta que de repente é vista viva novamente, alguém dentro de um buraco que olha para cima e vê a mão (da graça) estendendo-se para tirá-lo de lá, uma escada para cima, que convida à subida. Mais à frente, a direção da morte e esfriamento do cosmo (com a terra devastada ocultando a luz azul do sol-anã-branca) é revertida com um reaparecimento e um súbito resplandecer do sol – cena que aparece de forma muito rápida e de relance.

Então Jack chega a um lugar na beira do mar (signo do infinito?), onde os seres humanos se encontram, reconciliados. Ali ele vê seus familiares, e vê a sua Mãe (mas os pais de seu pai, o Sr. O’Brian, não aparecem ali, o que possivelmente significa o seu desaparecimento). A própria árvore da vida aparece ali, como a única árvore restante, mas surge como um pequenino arbusto na beira d’agua, plantado na areia.

Acompanhando sua mãe Jack é levado ao passado novamente, embora de forma simbólica, e vê o momento em que ela entrega o irmão que morreu, quando ele ainda era criança, nas mãos de Deus, deixando-o passar por uma porta onde se vê apenas a planície e o Sol atrás dele. Nessa hora a entrega que a mãe faz é representada como uma dança em que a mãe abre suas mãos, enquanto é ajudada por duas outras figuras femininas[5].

A escolha da mãe é a resposta para a pergunta de Jack, sobre como a mãe foi capaz de superar a perda do filho – muito embora a própria mãe não tenha recebido uma resposta clara sobre a razão do seu sofrimento (o que é indicado, inclusive, pela citação de Jó na abertura do filme: “Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? … Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus jubilavam?”). O “milagre” do filme é, portanto, mostrar como a fé e a vida na Graça tornam-se elas mesmas sinais divinos no mundo; a mãe e o irmão levam Jack de volta para Deus.

Depois disso o filme retorna para o nível 1, com Jack refletindo e sorrindo levemente com a compreensão da Graça, enquanto ao fundo a imagem da árvore se contrapõe à dos edifícios e aparentemente poderosos projetos humanos. Sutilmente se sugere que a árvore pequena e os edifícios enormes não reflete a proporção verdadeira das coisas. É preciso intuição poética e insight religioso para descobrir a verdade sobre o mundo.

 

(5) Acima de todos os níveis narrativos está o eterno. Ele é representado pela chama. A chama de onde o mundo veio é apresentada no início do filme e no final, e também aparece durante o filme duas vezes, em momentos de mudança de nível narrativo (como Vanessa Belmonte do L’Abri observou). O eterno aparece dentro do temporal principalmente representado pelo Sol, que surge atrás da mãe ou dominando sutilmente a cena em momentos importantes. No Quarto nível temporal (o “escatológico”) há uma espécie de encontro do eterno com o temporal, de modo que o papel do Sol fica bem claro. Ele representa Deus como a fonte da Graça, que existe antes da Natureza, na Natureza, e depois da Natureza. Por isso no final do filme a chama não apaga progressivamente; o filme termina subitamente com a chama ainda acesa, para indicar sua eternidade.

 

ESTRUTURAS METAFÓRICAS

É preciso dar muita atenção aos símbolos visuais. Tenho algumas sugestões sobre os principais e seus possíveis significados: a árvore (vida eterna); as danças/brincadeiras (a pericorese trinitária[6], amor, alegria); a violência e possessividade do pai; a mediação da graça (por exemplo, quando a mãe enrola o filho em uma cortina e o beija através dela, indicando que Deus está presente, embora de forma misteriosamente oculta); a luz do sol e das velas; o vôo da mãe em torno da árvore; o movimento em direção à janela do sótão (em um momento Jack, cheio de dúvidas, para de andar e fica brincando de bicicleta no meio do caminho), o vitral com a imagem de Cristo, num momento crítico do sermão do padre, e as mãos, que se repetem ad infinitum como expressões não apenas afetivas e espirituais. Particularmente bela é a representação simbólica da fecundação e do nascimento de Jack.

Entre todas as metáforas visuais, a que representa mais diretamente o tema do diretor, e minha opinião, são os girassóis. Eles aparecem no início do filme, quando a mãe compreende o caminho da Graça, e no final da narrativa do tempo da Fé, que é encerrada com o campo de girassóis. Os girassóis representam de forma indireta a visão de Deus (pois eles estão sempre virados para o Sol), e o campo de Girassóis simboliza a “Visio Dei”, ou visão beatífica, a visão final da face de Deus profetizada em Apocalipse (o que é exatamente o tema da música de fundo, nessa cena).

A mãe, possivelmente, representa também Maria (o que é bem plausível, considerando as origens espirituais de Malick); ela é o paradigma de como o ser humano deve viver em relação à natureza e à graça, e ao tornar-se paradigma torna-se também veículo de graça e iluminação para os que a observam. Descontando o uso idólatra potencial dessa figuração, é preciso dizer que considerar Maria um paradigma de santidade cristã e incorporação da graça, capaz de desafiar e desmascarar a escolha do caminho da natureza é algo perfeitamente compatível com a fé protestante.

 

 

RECURSOS DE CINEMATOGRAFIA E FUNDAMENTAÇÃO CIENTÍFICA

O filme usa a não-linearidade para criar uma instabilidade, forçando uma transcendência em relação ao tempo. Não porque Malick queira desestabilizar num sentido pós-moderno (negar que exista sentido), mas porque deseja sugerir a relatividade do tempo em relação ao eterno. e sua presença não-linear dentro da consciência humana (e não é nesse vai-e-vem que cada um de nós vivencia o tempo?). Essa quebra da linearidade é assim um recurso poético, um modo de comunicação estética que vai além da lógica (embora não esteja em contradição com ela) para nos atingir diretamente na alma.

Malick evita a computação gráfica sempre que possível. Assim, por exemplo, toda a representação inicial da criação do universo é feita usando filmagens em alta definição e reproduções em slow-motion de manipulação de líquidos e substâncias químicas. Aqui ocorreu uma óbvia semelhança com Stanley Kubrick em 2001: A Space Odyssey (1968), até porque Malick recorreu ao amigo Douglas Trumbull, que trabalhou nos efeitos especiais de 2001. Além disso, houve recurso até mesmo a experts da NASA para realizar as simulações sobre a origem do cosmo. A teoria da evolução bem como os estudos mais recentes sobre as origens do altruísmo animal são empregados nas polêmicas sequências com os “dinossauros”. O filme é assim simultaneamente artesanal e cientificamente up-to-date. Isso é, por sinal, uma das muitas evidências contra as interpretações surrealistas ou puramente psicanalíticas: essa figuração precisa e informada da história natural não é meramente simbólica ou para produzir uma impressão visual, mas para colocar a sentido da graça contra o fundo realístico da ciência moderna e vice versa. Que outra razão haveria para introduzir dinossauros no meio do filme?

Cada imagem com seus detalhes é uma obra intencional; o filme é menos produto de acasos interessantes enquanto a captura de imagens era feita[7], e mais uma sequência de pinturas. O cinema de Malick é completamente “autoral”, como observamos antes: cada sequência é quadro, e o diretor aparece mais do que os atores. A imagem é sempre metafórica – não só as coisas que aparecem, mas os diálogos, os eventos, etc.

Um exemplo disso é o movimento ascendente da câmera, que se repete insistentemente. A câmera sobe até mostrar o céu, quase sempre em conexão com a árvore. Com isso Malick quer reproduzir a experiência que a Catedral Gótica pretendia produzir no passado, oferecendo ao fiel uma experiência de grandeza, transcendência e ascensão, apontando para Deus. Isso fica evidente quando a própria mãe diz que Deus mora lá em cima, “no céu”. Outro exemplo é o insistente posicionamento da câmera contra o Sol, que é mostrado atrás da árvore (como que apontando para ela), ou quando Jack retorna à sua mãe, após o roubo do lingerie da vizinha, é mostrado sempre atrás da cabeça da mãe, emulando o halo de santidade que vemos na pintura medieval.

O realismo fantástico de Tarkovski aparece no voo da mãe, na representação metafórica do ato sexual e do nascimento de Jack, e assim por diante. Nisso ele lembra a arte medieval que usava a fantasia para falar da realidade.

 

TRILHA SONORA

Por último, atenção para a trilha sonora organizada por Alexandre Desplat (pode ser adquirida AQUI). Além de outras peças clássicas, há um emprego intencional do minimalismo sacro (Arvo Part, Gorecki, Tavener, e outros) que talvez revele a paridade entre o projeto de Malick e o desses compositores sacros contemporâneos, de representar o eterno na arte. (Veja um exemplo de Gorecki que aparece no filme AQUI e uma entrevista de Björk com Arvo Part AQUI).

Particularmente significativo é o recurso ao “Requiem”, a missa fúnebre. O texto do Requiem é sempre o mesmo (com origens Medievais), mas cada compositor cria uma música diferente para ele (o mais famoso de todos é, naturalmente, o de Mozart, mas muita gente não sabe que há vários Requiems). De forma absolutamente reveladora, a criação da Natureza já é iniciada com a “Lacrimosa 2” de Zbigniew Preisner (dedicada ao grande cineasta Krzysztof Kieślowski), que é um lamento pela perdição do homem e uma oração pedindo misericórdia. Como isso se sugere que a Natureza está desde o princípio limitada e que o homem que nela se fia está condenado. E no final de tudo, quando chegamos ao tempo da fé e a sequência da “praia”, são executadas as últimas duas peças do Requiem, a primeira (Agnus Dei de Berlioz) dizendo “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, dê a eles descanso” (Agnus Dei qui tollis peccata mundi, dona eis requiem) e a segunda (Communion) sobre o descanso final do servos de Deus, quando eles verão a luz eterna brilhando sobre eles e encontrarão o descanso eterno (Lux aeterna, luceat eis, Domine, cum sanctis tuis in aeternum, quia pius es. Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis). A composição da imagem do campo de girassóis com o tema da Communion representa a Visão Beatífica final.

 

MINHA INTERPRETAÇÃO…

Quem teve a paciência de ler todo o artigo pode estar pensando agora sobre a fonte dessa interpretação. Plágio? Informação privilegiada? Nonsense absoluto? Nesse ponto preciso lembrar a todos que a despeito da tonalidade de convicção do meu texto, trata-se apenas da minha hipótese sobre o filme. Pode estar certa, meio-certa, ou errada – muito embora eu, naturalmente, defenda que ela está em algum lugar entre “certa” e “meio-certa”!

Mas realmente penso que o centro do filme é a escolha da mãe pela Graça, mesmo diante da confusão do sofrimento, e o impacto revelador que isso tem sobre o sentido do mundo, como evidência divina, como sinal e caminho da Vida Eterna. Isso é a Árvore da Vida.

E Jack, o personagem principal, representa o homem moderno, esquecido de suas origens (cristãs), que mergulhou na “Natureza” e que já não compreende o caminho da Graça. O itinerário autorreflexivo de Jack é o ponto de identificação e de contato pedagógico com o expectador secularizado contemporâneo, para que sua imaginação poética seja reaberta e ele próprio reconsidere o seu caminho.

Certamente Terrence Malick emerge da obra como poeta e filósofo; mas minha hipótese pessoal é que ele emerge também como teólogo natural. Para mim, “A Árvore da Vida” é uma peça de teologia natural, que aponta o sentido divino do mundo para o homem moderno (de fato, ele pergunta e discursa sobre o problema do mal, sobre o bem, sobre a Graça e sobre o destino do mundo), mas o faz transformando a experiência visual-temporal em algo quase sacramental. Deus é incessantemente revelado diante do expectador, de forma consistentemente indireta e sutil; mas você reconhecerá a sua presença, se já tiver escolhido o caminho da Graça.

 

OBS: NO PRÓXIMO POST SOBRE O FILME VAMOS DISCUTIR CRITICAMENTE A SUA CONCEPÇÃO DE NATUREZA E GRAÇA.

 


[1] guilherme.religion@gmail.com.

[2] Curiosamente, a mãe aprendeu o caminho da Graça com seu o seu Pai, no princípio do filme; mas os pais da mãe não tem identidade temporal definida, ao contrário dos avós paternos de Jack, que aparecem com identidades humanas, desaparecem na narrativa e nunca mais reaparecem – nem mesmo na cena final da praia. Creio que eles representam a vaidade da natureza e também a perdição de todo o que nela se fixa.

[3] Quando a mãe ensina as primeiras lições a Jack, temos uma interessantíssima sequência na brincadeira com o cavalo de brinquedo em que ela diz três vezes a Jack “jump, jump, jump”, sendo que na terceira vez a palavra é pronunciada no escuro – e no momento seguinte, passamos à cena em que pela primeira vez Jack vê seu irmão, no colo.

[4] Por isso o filme abre com Jack dizendo “mother, brother” e reconhecendo que eles lhe mostraram o caminho.

[5] Talvez Malick tenha se referido à tradição mitológica antiga das “três graças”, sendo a graça central a deusa “charitas” (termo latino, do grego “Charis”, “Graça”). Essa imagem surge na tradição literária e iconográfica medieval, renascentista e barroca das com vários exemplos interessantes. Uma busca de imagens na internet revelará exemplos emblemáticos como as “três graças” de Botticelli. No fundo mitológico, a graça tem a ver com a beleza humana, a criatividade e a fertilidade. Mas Malick as transforma em símbolos teológicos com Mãe tornando-se o novo paradigma do verdadeiro significado e “graça”, relacionando-o com a fé e o amor cristão.

[6] O termo “pericorese” foi empregado pelos pais da igreja para se referir à mútua habitação das pessoas da trindade, unindo-as no que foi descrito por Santo Atanásio como uma “dança”.

[7] Com notáveis exceções como a cena da borboleta pousando nas mãos da senhora O’Brien, que foi não intencional e certamente uma dádiva providencial – eu diria.