“Ai dos que descem ao Egito em busca de socorro e se estribam em cavalos; que confiam em carros, porque são muitos, e em cavaleiros, porque são mui fortes, mas não atentam para o Santo de Israel, nem buscam ao SENHOR! Pois os egípcios são homens e não deuses; os seus cavalos, carne e não espírito. Quando o SENHOR estender a mão, cairão por terra tanto o auxiliador como o ajudado, e ambos juntamente serão consumidos.” (Is 31.1,3)

Há uma perspectiva cristã do Estado? Há quem pense que o cristianismo não tem nada que ver com Estado – nem com política; que a religião não tem nada a ver com política. Não no sentido de que a religião não se mescle com a política, pois isso sim, acontece sempre, mas no sentido de que a religião não deveria se misturar com a política nem se intrometer em coisas de Estado. Alguns mais radicais sustentam, inclusive, que a verdadeira política é incompatível com a religião.

As razões para isso variam; uns pensam que a política poderia macular a pureza da religião; outros entendem que a religião é irracional e corrompe a racionalidade da boa política. De um jeito ou de outro, os dois lados podem até chegar a uma espécie de cessar fogo pragmático: “cada um no seu quadrado”. Na igreja Deus é Jesus; na câmara, é o Estado.

Mas há quem realmente tome essa solução pragmática como princípio teológico/ideológico – que Jesus nos leva para o céu, e o Estado cuida de nós aqui na terra. Portanto o bom cristão deveria ver em um projeto de Estado secular a cura para as mazelas da sociedade.

Mas será isso possível? Que intenções têm o Estado moderno ao propor (ou impor) essa solução à religião? É possível identificar a política cristã com uma aceitação tranquila dessa ordem de coisas?

A política secular: religião em cárcere privado
Tomemos como referência aqui, um filósofo contemporâneo; um francês, (previsivelmente): Christian Delacampagne. Não porque ele seja muito importante no campo (não é), mas porque representa bem o tipo de mentalidade que pretendemos pôr em questão. Podemos nos sentir gratos pela sua formulação sucinta e clara do problema: “como o religioso, na sua ambição de constituir o ‘laço’ social por excelência (esse é o sentido do latim “religio”), pode coexistir com o político, cuja ambição é análoga?”1

Delacampagne tenta lidar seriamente com o problema, perguntando se o poder político “deve”, e se “pode” se separar do poder religioso. A sua resposta à primeira questão é que ele deve se livrar da tutela religiosa, por uma questão de sobrevivência. Porque, segundo ele, a democracia depende, para funcionar, de uma abordagem pragmática das questões; um partido, por exemplo, deve representar os interesses de certo grupo, não uma verdade absoluta, que deva ser imposta a todos. A política seria um jogo, cujas regras excluem a universalidade, mas a religião, por sua natureza, não pode respeitar essas regras. Ela atua a partir de absolutos, não de considerações meramente pragmáticas. Com efeito, “Na medida em que considera o pluralismo desejável, como deve fazer se quiser ser democrático, o poder político deve opor-se à simples ideia de ‘partido religioso’, isto é – pois todas as religiões tendem a formar partidos desse gênero – opor-se à religião em geral.2

Mas pode, a política, separar-se da religião? Sim, desde que ela delimite com clareza as duas esferas. Para o filósofo, temos uma esfera “privada” e uma esfera “pública”, que ele define como “sociedade civil” ou Estado. O caminho, seguido pelo ocidente, foi o de “dar a extensão mais vasta possível à esfera ‘pública’ (incluindo progressivamente nela a maioria das atividades sociais, de maneira a subtraí-las à influência da religião).”3 O homem seria perfeitamente capaz de atingir a “virtude cívica” necessária para manter todo o espaço público funcionando bem, sem o auxílio da religião, que seria mantida na esfera da consciência individual.

E desde que a religião traz, dentro de si, a tendência de lutar para recuperar a sua “essência”, ou “fundamento”, é imperativo que ela seja mantida em seu devido lugar; do contrário, o fenômeno universal e periódico do fundamentalismo ameaçará a própria base do Estado Moderno, que seria, para Delacampagne, nada menos que “uma verdadeira separação entre o político e o religioso”.4 Contra essas ameaças, ele enuncia seu “princípio regulador”: “[…] que a tolerância mais ampla possível seja dada a todas as confissões – desde que nenhuma delas seja autorizada a intrometer-se no funcionamento das atividades sociais. Em resumo, desde que o Estado continue sendo a única instância capaz de determinar aquilo que, no interior do espaço público, é ou não legítimo.5

O programa deste filósofo francês é claro como o meio-dia: a repressão da expressão pública da religião, e a garantia de sua manutenção na esfera privada, ou no cárcere privado, para sermos claros também. Mantendo esse “monstro” no cárcere, veremos a liberdade e a política florescerem na esfera pública…

Contra a idolatria política
Somente a admissão tácita de certa concepção totalista de Estado pode fazer alguém ler as palavras de Delacampagne sem perceber que há algo muito problemático em seu argumento. O filósofo supõe, em toda a discussão, uma identidade entre “esfera pública” e “Estado”, “sociedade civil” e “Estado”, o que é patentemente falso. O público, e o civil, não é o mesmo que “o político”. Há uma diversidade de esferas além da esfera “privada” e da esfera “política”: há a moralidade, a arte, a economia, a ciência e as relações de sangue. Essas esferas compõem o todo da vida social, mas são anteriores ao Estado, e não devem sua lógica interna ao Estado. A política e o Estado têm responsabilidade por apenas uma dimensão da vida pública, que é a da justiça. A dimensão da arte, por exemplo, é responsabilidade dos artistas e apreciadores da arte, e não do Estado.

Mas, como Delacampagne observou, o Estado Moderno se constituiu por meio de uma expansão na qual reprimiu a influência religiosa “da maioria das atividades sociais”, por meio do controle de cada uma delas, para garantir a sua “laicidade” e eliminar nelas os absolutos religiosos.

É claro que tudo isso já estava embutido na primeira pergunta do autor: quem produz o laço social, por excelência? Pode a religião e a política conviverem, se tem a mesma ambição? Uma pergunta deliciosamente reveladora, ao pôr diante de nós a fantástica pretensão do Estado Moderno de se constituir no laço social por excelência, tragando as formas mais antigas de associação humana em seu divino estômago.

Então há, acima de qualquer dúvida, um conflito entre a política e a religião! Há, na medida em que a política deseja ser, ela mesma, a religião. O Estado Rousseauniano de Delacampagne, totalista e vigilante, cioso de sua secularidade, absoluta e indivisivelmente soberano, não passa de uma divindade concorrente com o Teísmo. A política laica de Delacampagne é mais uma das expressões da religião do humanismo secular, que pretende controlar cientificamente o homem, para garantir a sua liberdade – mesmo que, para tanto, tenha que torná-lo seu escravo.

A responsabilidade atribuída por Delacampagne ao Estado, de determinar sozinho o que é legítimo no espaço público, é absolutamente ridícula. Deverá o Estado decidir qual o método científico legítimo? E o que é arte? E qual a melhor ética sexual? Ou o que é e o que não é prejudicial à família? Ou se, afinal, precisamos de famílias? Pode-se, naturalmente, objetar que o termo “público”, aqui, tem sentido restrito. Talvez, na mente do autor; mas não em seu argumento. De todo modo, o ponto é que o Estado, e a política, tem uma esfera própria, que é a esfera da justiça. Compete ao Estado a justiça pública, e o que for estritamente necessário à realização dessa justiça; e cabe à política a luta por sua representação e implementação adequada.

Essa forma de pensamento estatista me faz lembrar da saga fantástica “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien. A maldição da Terra Média estava na existência do um anel, que concentrava todo o poder. Os teóricos do Estado absoluto parecem não perceber – e isso fica maravilhosamente claro nas especulações de Delacampagne – que a religião, ironicamente, é uma indispensável salvaguarda à liberdade dos indivíduos e das diferentes esferas da sociedade, na medida em que fere Leviatã no próprio coração, desmascarando as pretensões teológicas do Estado de instaurar-se como Deus e Senhor da sociedade.

Uma política cristã existe, assim, tendo obrigações para com Deus e para com o homem. Para com Deus, é seu dever combater a idolatria política. Li, em certa ocasião, a declaração de um grupo de cristãos (do “MEP” – Movimento Evangélico Progressista), para os quais “a visão cristã do Estado é de que o Estado não deve ser cristão”. Um princípio importante, embora excessivamente concordista com a modernidade. Adverte muito bem contra a forma errada de interagir com o Estado, mas nada diz sobre a forma justa. Tornou-se assim politicamente corretíssimo. Rousseau, Delacampagne, Dawkins e a ala anti-religiosa do PT diriam amém (talvez até um “glória a Deus”).

Parodiando essa declaração, no entanto, eu diria que a visão cristã do Estado é, antes de tudo, que o Estado não deve ser Deus. A tarefa teológica da política cristã é a luta contra a idolatria política; é a luta pela reforma do Estado, para que ele se veja redimido de sua fome totalista, e se dedique à sua tarefa divinamente ordenada, é respeitando a soberania das outras esferas da sociedade.

Sem dúvida, isso não diz tudo sobre a visão cristã do Estado. A igreja tem uma tarefa teológica, de combater a idolatria política, mas também uma tarefa antropológica, de promover a justiça política; isso significa que uma política cristã precisa, sem dúvida nenhuma, educar o Estado para a justiça. Mas ela não poderá realizar essa tarefa se colocar os carros na frente dos bois: cumprir a segunda tábua da Lei, deixando de lado a primeira. Não: combata-se a idolatria, e então seguir-se-á a justiça.

O Brasil: um país Politicamente idólatra
No universo verde-e-amarelo florescem as condições adequadas a um Estado tirânico. Em 2002 ou 2003, eu tive a oportunidade de assistir a uma entrevista sobre a atitude política brasileira, veiculada pela Globo, do famoso antropólogo brasileiro Roberto da Matta, que à época já estava trabalhando como professor na universidade de Notre Dame, em Indiana. Da Matta, talvez sob o impacto da mudança cultural, fez uma breve comparação entre os norte-americanos e os brasileiros. Segundo ele, há uma nítida diferença de postura entre os dois povos; os americanos não constroem suas esperanças sobre o Estado; a sociedade civil é fortíssima, no sentido de que as pessoas se organizam de modo voluntário e quase automático para resolver seus problemas. O brasileiro, em contrapartida, raciocina em termos paternalistas, esperando que um “poder superior” solucione suas dificuldades sem que ele precise agir diretamente. Como exemplo, ele apontou a temática de certa escola de samba (já não me lembro qual), no carnaval daquele ano. O desfile inteiro apresentou as mazelas sociais do Brasil, denunciando a pobreza, a corrupção, etc; ao final, o último carro alegórico trazia uma imagem enorme de Lula, de braços abertos, representando a esperança para o futuro.

E, enquanto aguarda com expectativa a vinda do seu “Cristo Redentor” político, o brasileiro cruza os seus próprios braços. Quando alguém toma uma atitude e organiza algum projeto social, as pessoas dizem – pessoas do governo, empresários e cidadãos comuns – que a sociedade civil está entrando onde o Estado não está cumprindo o seu papel – ora, ninguém duvida de que o Estado Brasileiro não cumpre o seu papel, mas a tarefa de construir uma sociedade justa é da própria sociedade, não do Estado. O Estado é uma ferramenta do povo, não seu Pai.

Eu diria, bem ao contrário, que precisamos agir rápido, tomar a frente e desenvolver projetos de transformação em todas as áreas da vida brasileira, antes que o Estado tome o controle delas! Os cristãos precisam fazer isso, não só porque a soberania de Deus precisa encontrar expressão em cada esfera da vida brasileira, mas também por que somente assim a nossa obrigação política para com Deus será cumprida: a obrigação de desmascarar a idolatria política e combater as pretensões teológicas do Estado.

Alugar os egípcios?
Noutro dia desses a Norma Braga escreveu um provocativo texto para a Ultimato, intitulado Por que não sou de esquerda. Gerou muitas respostas indignadas. Bem, eu discordo de muita coisa que a Norma costuma dizer em suas defesas do conservadorismo. As razões são compreensíveis para quem já leu algo do que publicamos sobre cristianismo e sociedade aqui na Ultimato.

Mas há um ponto em que a Norma está certíssima, e sei que vou exasperar meus amigos socialistas, do tipo que se sente atraído de um jeito ou de outro por ideais Rousseaunianos: sim, o Estado não é o Messias. Sim, o capitalismo é idólatra. Não, não podemos alugar os egípcios para nos livrar dos assírios. Chamar o Estado para nos salvar do mercado também é idolatria. Pura e simples idolatria.

É claro que o Estado deve zelar pela justiça pública. É claro que deve intervir quando o sistema econômico se torna injusto. Mas o Estado não deve deter em suas mãos o projeto nacional. Porque o Estado não é o país; o Estado não é a sociedade; sua soberania é limitada e não vem do povo, mas de Deus. E o mais essencial na visão cristã do Estado é exatamente que o Estado não é Deus, nem deve cobiçar o seu trono.

Vamos esperar em Jesus Cristo. E que ele nos salve dos assírios, dos egípcios e dos israelitas que confiam na cavalaria de Faraó.

Notas
1. Delacampagne, Christian, A Filosofia Política Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 31.
2. Ibid, p. 34.
3. Ibid, p. 35.
4. Ibid, p. 39.
5. Ibid, p. 41.