O Triplo Conhecimento
“Qual é o seu único consolo, na vida e na morte?”
O meu único consolo é meu fiel Salvador Jesus Cristo […].
“O que você deve saber para viver e morrer neste consolo?”
Primeiro: como são grandes os meus pecados e a minha miséria
Segundo: como sou salvo de meus pecados e de minha miséria
Terceiro: como devo ser grato a Deus por tal salvação.
Muitos “Saberes”
A segunda pergunta do catecismo de Heidelberg é uma pergunta sobre o que se deve saber.
Há no mundo da experiência humana uma variedade de tipos de conhecimento, e não devemos confundi-los. É um erro fundamentalista recorrente a sugestão de que o conhecimento religioso é o único conhecimento certo, desqualificando outras formas de saber, como o senso comum e a ciência. E é um erro grave, também, tentar formatar todos os saberes em termos cientificistas, como muitos já tentaram no século passado e continuam tentando hoje.
Em termos mais simples: eu erro se tento colocar o conhecimento da minha esposa na mesma categoria do conhecimento de objetos físicos ou do conhecimento do teorema de Pitágoras. Considere, por exemplo, um buraco na areia. Se eu lhe disser que há uma antiga e rara moeda de ouro lá dentro (e houver!) você enfiará a mão com entusiasmo. Mas não terá tanto entusiasmo se descobrir que lá há uma cobra muito rara; ou ao menos, não enfiará a mão ali. Porque a natureza do objeto altera o modo de aproximação. É que o conhecer “objetos” difere do conhecer outros “objetos”; e o conhecimento de “sujeitos” difere ainda mais do conhecimento de objetos. Sujeitos tem uma dimensão objetiva mas não são meros “objetos“ do mundo. Não podemos dispor de sujeitos e examiná-los sem uma relação pessoal.
A cada realidade deste mundo de Deus, corresponde uma forma apropriada de experiência cognitiva. E o conhecimento mais importante de todos, que qualifica e ordena todos os outros – muito embora seja aparentemente o mais frágil e o mais incerto – é o conhecimento de Deus e da alma.
A cada realidade deste mundo de Deus, corresponde uma forma apropriada de experiência cognitiva. E o conhecimento mais importante de todos, que qualifica e ordena todos os outros – muito embora seja aparentemente o mais frágil e o mais incerto – é o conhecimento de Deus e da alma.
A Soma de Quase todo o nosso Conhecimento
Calvino abre sua Institutas da Religião Cristã afirmando que “a soma de quase todo o nosso conhecimento […] consta de duas partes: do conhecimento de Deus e de nós mesmos” (Institutas, I.1.1). Na verdade esse conhecimento não é frágil e incerto, em sua perspectiva; é antes verdadeiro e sólido. Então, porque nem sempre parece ser assim?
É que se trata de um conhecimento singular, qualitativamente distinto de outras formas de conhecer. É uma segurança interior que não é tão imediata à razão lógica quanto a certeza de verdades matemáticas, como a soma e a subtração de números inteiros, nem disponível aos sentidos como objetos físicos; mas sem contradizer razão, ela se forma no coração e na mente como o reconhecimento da presença de um “Tu” divino. Não é mais ou menos assim que conhecemos uns aos outros? Reconhecemos que há pessoas presentes nas faces que nos olham, e não meramente robôs biológicos com cara de gente, mesmo que sejamos incapazes de ver a alma sem o rosto de carne, ou de derivar sua existência matematicamente. Em sua aparente fragilidade, esse saber pessoal é um saber muito mais íntimo e determinante da existência do que essas e outras verdades de fácil reconhecimento, mas sem importância suprema.
Para Calvino “é notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si até que haja antes contemplado a face de Deus e da visão dEle desça a examinar a si próprio” (Institutas, I.1.2). O que dá a esse conhecimento seu caráter próprio é sua natureza existencial, no sentido de que um encontro com o Deus vivo é necessário para produzi-lo, e não é possível empregar qualquer outro critério ou meio para obtê-lo ou julgá-lo. Pelo contrário, esse conhecimento é que nos julga e nos constitui, de modo a se tornar o novo ponto de partida para a organização de todos os outros saberes. Em Deus sei quem eu sou, e sabendo quem sou sei onde estou no mundo.
é notório que jamais chega o homem ao puro conhecimento de si até que haja antes contemplado a face de Deus e da visão dEle desça a examinar a si próprio”
O Triplo Conhecimento
É desse tipo de conhecimento que o catecismo de Heidelberg trata. A resposta à segunda pergunta do catecismo é a chave partir da qual todo o restante de seu conteúdo se organiza, e tem sido chamada de “O Triplo Conhecimento”: minha miséria, minha salvação, e minha gratidão. Primeiro somos levados diante de Deus, para saber sobre a nossa glória e a nossa miséria. Nos descobrimos assim uma “ruína gloriosa” (Pascal), seres feitos à imagem de Deus e por isso justamente condenados e alienados por seu pecado, diante da Lei e da justiça de Deus.
Esse saber não vem separado do saber sobre a salvação; pois na verdade é a história da graça o que revela as profundidades abissais do nosso pecado. Daí dizermos que é um “triplo conhecimento”, pois eles só podem ser separados para fins didáticos. Quando me encontro diante de Deus, conheço-me em minha miséria; mas já conheço a salvação, pois não me reconheceria diante de Deus sem a sua graça.
E o saber sobre a graça salvadora envolve a crença em Jesus Cristo e sua Palavra. Dúvidas podem surgir, especialmente sob o influxo da mente moderna e do naturalismo científico, sobre a autoridade das Escrituras e sobre a veracidade dos relatos miraculosos a respeito da origem de Jesus, de suas obras, e de sua ressurreição. Mas se há em nós a segurança da fé, essa certeza de coisas invisíveis aos olhos mas nítidas ao coração, não daremos crédito fácil a preconceitos cínicos e metafísicas idólatras, construídas como alternativas artificiais à plenitude da realidade. O conhecimento divino sempre vence, nos fazendo duvidar das dúvidas e desmascarar os ídolos intelectuais do homem moderno.
Mas se há em nós a segurança da fé, essa certeza de coisas invisíveis aos olhos mas nítidas ao coração, não daremos crédito fácil a preconceitos cínicos e metafísicas idólatras, construídas como alternativas artificiais à plenitude da realidade.
E de sabermos da nossa queda e da nossa salvação, sabemos qual é a verdadeira natureza da vida Cristã. E o que sabemos, acima de tudo, se conhecemos nosso pecado e a enormidade da graça, é que vida Cristã é gratidão. Não existe absolutamente nada, na vida Cristã, que tenha valor à parte da graça. Nada tem valor na vida Cristã se não for o produto da operação da graça divina em nossa vida. E por isso mesmo, ser Cristão e ser grato é a mesma coisa. E ser ingrato é o mesmo que não ser Cristão.
Católico, Evangélico… e Didático!
O catecismo de Heidelberg tem méritos que merecem atenção. Ele reúne quase todo o conhecimento religioso de uma forma excepcionalmente didática, católica e evangélica, incluindo na primeira parte as verdades sobre a função da Lei, a criação e a queda do homem, na segunda parte a mediação e salvação por meio de Jesus Cristo, a resposta de fé e o Credo Apostólico, que resume a fé Cristã, e na terceira parte a nossa gratidão a Deus, que deve se expressar na oração segundo Jesus (o “Pai-Nosso”) e a obediência à Lei de Deus (nos “Dez Mandamentos”).
A inclusão dos três símbolos básicos da fé Cristã torna o catecismo inteiro uma peça muito rica. Por muitos séculos a Igreja tem empregado esses três (o “Credo”, o “Pai-Nosso” e os “Dez Mandamentos”) como sínteses do que é essencial para a fé Cristã, do que precisamos saber sobre o Deus Trino e a história da salvação, sobre como nos comunicamos com o Deus de Jesus Cristo e sobre os elementos da ética Bíblica.
Esses símbolos tem alto valor missiológico, tendo sido amplamente usados na catequese dos povos pagãos na Europa – e faríamos bem em emprega-los na catequese da nossa brasilidade pagã, seja ela “secular” ou “gospel”! Eles têm também um profundo significado ecumênico; seu valor é reconhecido na Igreja oriental, na Igreja Romana (estando presentes no Catecismo da Igreja Católica) e os protestantes não completarão sua tarefa de protesto profético se desprezarem esses símbolos, entregando-os à interpretação romana.
A Catolicidade é Evangélica…
E aqui o catecismo mostra seu valor excepcional, ao integrar esses três símbolos em uma narrativa teológica distintamente reformada, mostrando a sua catolicidade como uma propriedade derivada do evangelho, e não da Igreja (como em verdade deve ser). A verdade sobre a salvação pela graça, sem obras ou méritos humanos, é claramente o contexto no qual esses símbolos são interpretados.
Mas não se trata apenas de didática: o olhar atento certamente notará a correspondência entre essa estrutura tripla e a apresentação paulina do Evangelho, especialmente como a encontramos na sua Carta aos Romanos. Paulo começa ali falando da miséria e do pecado humano, bem como da função reveladora e condenatória da Lei (Rm 1.18-3.20), para em seguida entregar-se a uma grandiosa exposição da justificação pela fé, mediante a graça (Rm 3.21-5.21) e em seguida desenvolvendo o significado ético dessa salvação, na santificação por meio do Espírito Santo (Rm 6.1-8.39). Talvez os leitores mais rigorosos de Paulo preferissem iniciar a reflexão sobre a “gratidão” em Rm 12.1ss, mas todos concordarão que a mesma estrutura encontra-se em Paulo: a lei é o pedagogo que mostra o pecado e nos leva a Cristo; Cristo nos salva completa e perfeitamente pela graça, e o resto é gratidão.
O Saber Terapêutico
Não podemos concluir sem mencionar um detalhe muito importante e, na verdade, óbvio sobre a segunda pergunta do catecismo. É que esse triplo conhecimento, e assim o catecismo inteiro, serve à primeira pergunta e existe em virtude dela: “O que você deve saber para viver e morrer neste conforto?” Ora, a segunda pergunta diz respeito ao que é preciso saber para habitar no consolo divino.
O catecismo é terapêutico
Quero apenas destacar novamente o que isso significa (e que tratamos no último post): o catecismo não serve à mera doutrinação teológica, mas à formação espiritual. O Catecismo é terapêutico. Ele guarda uma sabedoria sobre como a vida cristã funciona. E não se trata de algo muito complexo: tudo na vida Cristã depende da força e do alcance do testemunho interno do Espírito Santo, que arranca o medo do coração e planta o sentido de liberdade que nos faz vencer o pecado e buscar com alegria a vontade de Deus. E o que cresce, na medida em que esse testemunho se torna mais audível, é o consolo profundo da alma, por meio de Cristo. O catecismo inteiro serve a esse propósito: ajudar a alma a construir a sua casa sobre a rocha, a seguir o testemunho interno do Espírito, e a encontrar conforto perene em Jesus Cristo: na vida e na morte.
Guilherme de Carvalho.
Boa manhã.
1- Li o belo texto, há pouco, e, no geral, ele me despertou.
2- Nessa triplicidade a assembléia de Westminster ajudou?
3- Favor fazer u´a análise disso, lá, e, u´a suma, falou!!!???
Mui grato:
Celso (Tripas/tri-Paz – 88).