Muitos escritores se inspiraram no tema do Natal para escrever contos de profunda reflexão sobre a vida e a humanidade, como é o caso de Dostoiévski, Charkes Dickens e Tolstoi. Nessas histórias, a intensidade da tristeza e o senso de abandono são por vezes quase insuportáveis – crianças e mulheres enfrentando a neve, a escuridão e a morte, velhos campesinos solitários em sua pureza de fé e solidariedade contrastando com a dureza de corações indiferentes.

A literatura brasileira também tem suas amostras da força do Natal como temática e como marco da nossa latinidade católica. É o caso de Coelho Neto, Machado de Assis, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Viriato Corrêa, Raul Pompeia e Mario de Andrade. Neste pequeno espaço, quero me dedicar aos poemas de Natal de Manuel Bandeira.

Ao todo, Bandeira escreveu dez poemas de Natal, seis de sua autoria e quatro em tradução de autores europeus. Ele mesmo faz uma revisão de suas obras natalinas e da importância que ocupam em sua carreira literária. Eles nasceram em circunstâncias bem demarcadas ao longo de sua vida, a juventude na Suíça, o Rio de Janeiro de 1939, a II Guerra Mundial, alguns por encomenda do jornal O Globo ou de Villa-Lobos.

Surpreende, nos poemas natalinos de Bandeira, a abundância de passagens bíblicas transcritas, adaptadas, aludidas. Diferente de outros autores que usam o Natal apenas como referência temporal, uma data no calendário, para escrever sobre algum incidente cotidiano, Bandeira mergulha nos detalhes e nos diálogos que as Escrituras oferecem. É o caso do poema “Anunciação”, em que se lê: “Maria, não temas: / Deus escolheu-te, a mais pura / Entre todas as mulheres, / Para um filho conceberes / No teu ventre e, dado à luz, / O chamarás de Jesus, / O santo Deus fá-lo-á grande, / Dar-lhe-á o trono de Davi, / Seu reino não terá fim”.

O poema “Canto de Natal”, que veio a ser musicado por Villa-Lobos, traz a cena do alegre nascimento do “Jesus menino”. O poema faz lembrar, em parte, as singelas canções de Natal de Martinho Lutero. Bandeira escreve: “Nasceu sobre as palhas / O nosso menino”. Lutero teria escrito: “Num berço de palha dormia Jesus, / O meio menino que ali veio à luz”.

O poema mais profundo e quem sabe o mais complexo leva o título de “Presepe” e descreve o mistério da encarnação de Jesus. No poema, Bandeira liga o nascimento de Jesus ao seu sofrimento na cruz, “O fel e o vinagre, / Escárnios, açoites, / O lenho nos ombros, / A lança na ilharga, / A morte na cruz”. Um pouco adiante, o poeta diz: “Mais do que isso / O amedrontaria / A dor de ser homem”.

Em sua perplexidade e olhando para o ser humano, “[e]sse bicho estranho / que tortura os que ama”, “essa absurda imagem de Deus”, o poeta conclui que o nascimento de Cristo foi um grande milagre, mas “um milagre inútil”. Sim, o poeta termina em tom desesperado de uma esperança triste. Ele mesmo reconhece que se trata de um poema amargo com um forte teor político relacionado aos crimes de Stalin. Apesar do tom desencantado, a reflexão é válida e atual. O Natal nos faz pensar no destino da humanidade.

Gladir Cabral

Os poemas de Manuel Bandeira podem ser encontrados na coletânea O Natal em Manuel Bandeira e Cândido Portinari.

  1. Manuel Bandeira é um pernambucano, aqui perto, ambientado no Rio de Janeiro, até por uma questão de dever de ofício. Um dos maiores poetas junto com seu contemporâneo João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre, ambos recifenses.

    Bandeira é a melancolia em pessoa. Seus escritos estão carregados de dor, angústia. Afinal, ele mesmo sofria enormemente e morreu de tuberculose. A ideia de morrer o perseguiu até mesmo em seus poemas. Como por exemplo, “vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei, lá terei a mulher, na cama que escolherei”.

    Não é por vias de poemas do Natal, ele escreveu várias, que se pode ressuscitar o grande Bandeira. Nunca foi um homem/poeta que tivesse vocação pela fé cristã. Seus escritos incorporam, sim, a herança fortemente católica e tradicional daquela religião que moldou o pensamento pernambucano, mormente do Recife antigo. Que o diga Gilberto Freyre, seu contemporâneo.

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