jordonA foto ao lado é do escravo fugido conhecido como Brother Jordan Anderson. Jordan havia sido escravo numa fazenda do Tennessee (USA) e foi liberto pelas tropas da União em 1864 e passou os restantes 40 anos de sua vida em Ohio. Ele vivia uma vida pacata e em total anonimato até que resolveu publicar, num jornal de Cincinnati, uma carta a seu antigo senhor, que havia pedido que ele voltasse à antiga fazenda. Eis a carta publicada em 22 de agosto de 1865.

Essa é uma tentativa de tradução. A matéria saiu no Mail Online, da Associated Press. Está disponível no seguinte endereço eletrônico:  http://www.dailymail.co.uk/news/article-2174410/Pictured-The-freed-slave-moving-letter-old-master-asked-work-farm.html

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Daytona, Ohio, 7 agosto 1865

 

Ao meu velho senhor, coronel P.H. Anderson, Big Spring, Tennessee

 

Senhor:

 

Recebi sua carta e me alegrei em saber que o senhor não se esquece do Jordon, e que me quer de volta para viver aí de novo, prometendo me tratar melhor do que qualquer outra pessoa poderia. Sempre me senti preocupado em relação ao senhor. Pensei que os ianques iriam enforcá-lo a muito tempo atrás, por abrigar os rebeldes que encontraram em sua casa. Suponho que eles nunca tenham ouvido sobre aquela vez em que o senhor foi ao coronel Martin para matar aquele soldado da União que foi abandonado pela companhia no estábulo da fazenda. Embora o senhor tenha atirado em mim duas vezes antes de deixá-lo, eu não queria ouvir que algo ruim tenha lhe acontecido, e me alegro que o senhor ainda esteja vivo. Seria bom voltar ao querido e velho lar, e ver Maria e Martha e Allen, Esther, Green e Lee. Mande a eles o meu carinho, e diga a eles que espero encontrá-los num mundo melhor, senão neste. Eu teria voltado para ver vocês todos, quando ainda trabalhava no Hospital de Nashville, mas um dos vizinhos me disse que Henry planejava atirar em mim, se algum dia tivesse a chance.

E gostaria de saber, com mais detalhes, quais as boas condições que o senhor promete me dar. Eu estou indo razoavelmente bem por aqui. Ganho vinte dólares por mês, mais comida e roupa; tenho um lar confortável onde moro com Mandy – os amigos a chamam Sra. Anderson –; e as crianças – Milly, Jane e Grundy – vão à escola e estão aprendendo bem. O professor diz que Grundy tem vocação para ser pregador. Eles vão à Escola Dominical, e Mandy e eu frequentamos a igreja regularmente. Somos bem tratados pelas pessoas. Às vezes ouvimos alguém dizer: “Aqueles negros ali eram escravos” no Tennessee. As crianças ficam chateadas quando ouvem essas coisas; mas eu digo a elas que não é desgraça nenhuma, lá no Tennessee, pertencer ao coronel Anderson. Muitos negros teriam ficado orgulhosos, como eu ficava, de tê-lo como senhor. Agora, se o senhor escrever dizendo que salário irá me pagar, poderei saber se será melhor para mim voltar ou ficar aqui.

Quanto à minha Liberdade, que o senhor disse que posso ter, não tenho nada a ganhar voltando para aí, pois consegui meus documentos em 1864 com o magistrado do Marechal Geral do Departamento de Nashville. Mandy diz que teme voltar sem alguma prova de que o senhor está disposto a nos tratar com justiça e bondade, e decidimos testar sua sinceridade e pedir que nos envie nossos salários relativos a todos os anos que servimos ao senhor. Isso fará com que esqueçamos e perdoemos as velhas marcas, e confiaremos em sua justiça e amizade no futuro. Eu o servi fielmente por 32 anos, e Mandy por 20 anos. A $ 25,00 ao mês para mim e $ 2,00 por semana para Mandy, nossos ganhos seriam algo em torno de $ 11.680,00.  Acrescenta-se a isso os juros pelo tempo que nossos salários foram retidos, e deduzindo o que nos pagou pelas nossas roupas e pelas três visitas do médico a mim, e por arrancar um dente de Mandy, e o peso da balança vai nos mostrar o que nos cabe pela justiça. Por favor, envie o dinheiro via Adam’s Express, aos cuidados de V. Winters, Esq., Daytona, Ohio. Se o senhor se recusar em nos pagar por nosso trabalho fiel realizado no passado, teremos pouca esperança em suas promessas no futuro. Confiamos que o bom Criador abriu de fato seus olhos para ver os erros que o senhor e seus pais fizeram a mim e aos meus pais, ao fazer-nos trabalhar para o senhor de geração em geração, sem recompensa. Aqui eu ganho meus salários todo sábado à noite, mas no Tennessee nunca havia dia de pagamento para negros, do mesmo modo como não se pagavam os cavalos e vacas. Certamente, haverá um dia de acerto de contas para todos aqueles que defraudaram os trabalhadores nas fazendas.

Em resposta à sua carta, por favor diga se haverá alguma segurança para minha Milly e Jane, que estão agora crescendo, e são ambas muito bonitas. O senhor sabe o que acontecia com a pobre Matilda e a Catherine. Eu preferiria ficar aqui e passar fome – e morrer, se for necessário – do que ver minhas filhas passando vergonha pela violência e pela maldade dos seus senhores mais jovens. Por favor, diga se haverá escolas abertas para crianças negras na sua vizinhança. O grande desejo de minha vida agora é dar às minhas filhas uma educação e ensiná-las hábitos cheios de virtude.

Dê um abraço ao George Carter, e agradeça a ele por tomar a pistola da sua mão quando o senhor estava para atirar em mim.

 

Do seu velho servo,

 

Jordon Anderson
(Fonte: http://www.dailymail.co.uk/news/article-2174410/Pictured-The-freed-slave-moving-letter-old-master-asked-work-farm.html#ixzz3GAyFPAWp)

  1. Diz o jornal:
    “Considerado um documento social [e] elogiado como uma sátira de primeira, a carta de Anderson [mesmo nome do ex-patrão] foi coligida e publicada mundo afora.”

    “Historiadores têm-na usada e frequentemente aparece no Facebook. O humorista Andy Borowitz leu-a recentemente e chamou-a em um e-mail enviado à Associated Press de “algo [que Mark] Twain se orgulharia de ter escrito”.

    Em seguida o jornal acrescenta algumas observações endereçadas a seus leitores (fiz a tradução livre de apenas uma parte, e atenho-me ao sentido do texto, que é muito longo):

    1. Dirigida a um certo coronel, Patrick Henry Anderson, que aparentemente queria que ele Jordan Anderson, o ex-escravo, voltasse para a fazenda de onde saíra;

    2. Há um misto de alegria-saudade na carta e talvez uma alfinetada no ex-patrão por prometer-lhe, agora, depois da guerra, dias melhores.

    3. Outra alfinetada: informa ao ex-patrão que ganhava bem e que seus filhos frequentavam uma escola.

    4. Essa construção informativa chega ao ponto crucial: para mostrar que o ex-patrão falava sério, que lhe mandasse a quantia ‘X’ em dinheiro, dele e da mulher, por conta de décadas de serviço prestado e salário retido. Diga-se de passagem, valor respeitável para a época.

    5. E para mostrar que falava sério sobre violência, ele alude à violência cometida contra as mulheres negras que voltaram ao Tennessee e pergunta ao ex-patrão o que aconteceria com seus próprios familiares, os filhos: “Eu prefiro ficar aqui e morrer de fome …”, e indaga se há escolas agora para os negros lá nas terras do ex-patrão. “O grande desejo da minha vida, agora, é dar aos meus filhos uma educação, criar neles hábitos virtuosos”. Outra alfinetada. Em seguida, manda ver: “Dê minhas recomendações ao George Carter”; e manda de novo, “por ter ele tomado a pistola sua quando você atirara em mim”.

    Pergunta o jornal: “Como pode um homem analfabeto, recém-libertado da escravidão, produzir uma obra de sofisticada sátira?”

    Foram levantadas dúvidas sobre a autenticidade. A Associated Press parece confirmar com muita segurança a autenticidade da carta, porém.

    6. Continua o jornal, “Esta carta é um notável mas não único testemunho da capacidade de escravos em transformar horror em humor. “A ironia [ da carta, bem ao tipo] astuto do estilo de Mark Twain,” disse o biógrafo de Twain, Ron Powers, a respeito da carta, “especialmente quanto ao pedido de salários não pagos…”.

    “É maravilhoso a combinação de reflexão séria e castigo satírico”, disse o professor de história da Universidade de Yale, David Blight, …”.

    “Ela representa tantas definições de liberdade – dignidade, acesso à educação, família. E, afinal, isso [tudo] também significava salários [ganhos].

    Não tenho a menor ideia pela qual o articulista postou o artigo, muito embora pessoalmente eu adorei a leitura. Por dois motivos. Primeiro porque tenho uma filha negra (adotiva) que mora na Florida; segundo porque deve ter deixado em aberto para que as pessoas pudessem comentar, e eu preferi seguir os comentários do jornal onde foram publicados.

    Não consigo enxergar a menor conexão da carta com a realidade brasileira. Deve haver, claro. Na Bahia, por exemplo. Exceto que como os americanos, tivemos escravos aqui no Brasil. Mas quem já leu Gilberto Freyre, certamente saberá apreciar o relato, da carta e do jornal.

    A conexão com um outro ex-escravo na bíblia a qual Paulo escreve para o seu ex-patrão, também não me parece nada a ver o que o ex-escravo aqui escreveu com o texto lá. Ainda bem que o articulista não enveredou por aí. Reduziria a história, o texto e tudo mais a coisa marota apenas.

    Não fazendo, meus parabéns!

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    PS. Achei fantástico as fotos e o interesse da família de Jordan em reconstruir o passado, sobretudo porque conheço a região. Como americano geralmente sabe fazer, e bem, logo logo uma montanha de livros e quem sabe um filme será produzido. Se já não estão fazendo.

  2. A liberdade, um ideal no imaginário de todo escravo! Em uma época caótica em direitos humanos, bastava o lampejo da liberdade, para ser um amante dela, como visto em Jordan Anderson, ao confrontar o seu “status quo” anterior com o seu novo “modus vivendi”. Por si só, exemplifica os anseios dos sonhadores, dos necessitados da liberdade, o desejo de libertarem-se de suas piores mazelas. Portanto, ergam os olhos, é a lição que fica, em direção ao seus senhores e busquem a igualdade nos mesmos direitos e deveres! Uma consciência desafiadora aos escravos de hoje! Libertem-se!

  3. Thiago Feiten Caliari

    A escravidão, nessa nossa época alucinante, é um amontoado de esquisitices: super tecnologia, drogas, preguiça, egoísmo e egocentrismo. A escravidão do mundo moderno mata pela internet, mata qualquer cor da pele via online, com os aplicativos corretos, nas supermáquinas minúsculas e ativadas a touch screen.

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