a novidade
Seguem os conselhos do tio Murcegão ao seu aprendiz de demônio:
O horror para com a mesma velha coisa é uma das obsessões mais vantajosas que temos suscitado no coração humano — sendo uma fonte inexaurível de heresias em religião, de insensatez nos parlamentos, de infidelidade na vida conjugal e de inconstância nas amizades. Os seres humanos existem no tempo e experimentam a realidade de modo sucessivo. Para experimentá-la de maneira abundante, eles têm de buscar muitas coisas diferentes; em outras palavras, têm de estar à cata de mudanças. E, uma vez que assim necessitam de mudança, o Inimigo (sendo hedonista como é), tornou-lhes prazeirosa essa experiência, embora não admita que tomem a mudança como fim em si mesma, como acontece, aliás, com o comer, por isso procurou equilibrar-lhes o gosto pela mudança com o reconhecimento do valor da permanência. O Inimigo tem envidado em satisfazer a ambos esses gostos no mundo que mediante a união da mudança com a permanência que designamos de ritmo. Ele lhes proporciona as estações, cada estação sendo diferente, não obstante, recorrendo todos os anos, de modo que a primavera pareça sempre uma novidade, embora não passe da repetição de um fato imemorial. Ele lhes outorga, através da Igreja, um ano espiritual; passam de um período de jejuns a um período de festas, mas é a mesma festa que antes existira.
Ora, exatamente como tomamos os prazeres relacionados com o comer e, pelo excesso, produzimos o vício da gulodice, também tomamos essa tendência natural para a adoção de mudanças e deturpâmo-la de modo que se degenera em exigência por novidades absolutas. Tal exigência é coisa de criação exclusivamente nossa. Se negligenciarmos os deveres, os homens terminarção não somente felizes, mas até mesmo extasiados, em face da novidade e familiaridade, ao mesmo tempo, da queda da neve na estação fria, do nascer e do pôr do sol pela manhã e à tarde de cada dia, e dos doces que constituem variedades de todo Natal. As crianças, até que as tornemos melhores para nós, sentir-se-ão perfeitamente felizes com uma recorrência de tipos de jogos e brincadeiras em que vemos os papagaios de papel a sucederem a outras distrações, consoante se trate da primavera, do verão, do outono ou do inverno. Devido tão somente a nossos esforços incessantes é que conseguimos fazer prevalecer a exigência no sentido da mudança indefinida e destituída de ritmo. Essa exigência nos é muito prestimosa por várias maneiras. Em primeiro lugar, ela diminui o prazer na mesma medida em que intensifica o desejo. O prazer da novidade, por sua própria natureza, fica mais exposto do que qualquer outro à lei da menor recompensa. E, a continuidade da novidade implica em dispêndio de recursos, de modo que o desejo correspondente concita à avareza e resulta em infelicidade, ou as duas coisas simultaneamente. E, ainda mais, quanto mais voraz se revelar esse desejo tanto mais cedo devorará todas as fontes inocentes de prazer, levando as vítimas a demandarem outros prazeres de entre os proibidos pelo Inimigo. Assim sendo, inflamando o horror para com a mesma velha coisa temos consgeuido fazer com que as artes, por exemplo, se venham tornando recentemente menos perigosas para nós do que foram em tempos idos, de modo que, tanto os artistas mais sérios como os menos sérios se vêem empolgados pela imposição de cada vez mais novos excessos nos domínios da lascívia, da insensatez, da crueldade e do orgulho. Finalmente, o desejo por novidades é indispensável, se é que temos de dar origem às modas e aos costumes em voga.
(C.S. Lewis, Cartas do Coisa Ruim, p. 156-9).