19 de abril – Dia do Índio

“Terra Brasilis” (Atlas Miller, 1519).

Chama-se de Janela 10/40 aquele retângulo onde vivem hoje os povos não-alcançados pelo evangelho, situado entre os paralelos 10 e 40 ao norte da linha do Equador, a partir da costa ocidental da África até a costa oriental da Ásia. Ali está o maior e o mais difícil campo missionário do mundo moderno, também denominado O Cinturão de Resistência.

Na época das grandes descobertas marítimas e da Reforma Religiosa do século XVI, o mundo inteiro, com exceção da Europa, era ainda um campo missionário, com uma igreja cristã aqui e outra acolá. Os cinturões de resistência ao evangelho eram enormes e estavam ao redor da Europa.

Um desses cinturões era o Brasil, recentemente “achado” por navegadores franceses, espanhóis e portugueses. Se, na época, houvesse missiólogos atentos e apaixonados, eles desenhariam uma espécie de Janela Brasileira, que, sem levar em consideração o Tratado de Tordesilhas, incluiria a região compreendida entre a linha do Equador e o paralelo 30 ao sul do Equador e entre os meridianos 30 e 70 a oeste de Greenwich.

Era um campo missionário absolutamente virgem e desafiador. Exceto os portugueses que eram ou se diziam cristãos, a população nativa nunca tinha ouvido falar de Jesus, sua concepção sobrenatural, seus ensinos, seus milagres, sua morte e ressurreição, sua ascensão e a promessa de sua volta.

Os primeiros missionários cristãos a virem para a Janela Brasileira eram católicos e membros da Companhia de Jesus, fundada na Europa, poucos anos antes, por Inácio de Loyola, que fora contemporâneo do reformador João Calvino na Universidade de Paris, na década de 1530. Sob a direção de Manoel da Nóbrega, os seis primeiros jesuítas desembarcaram na Bahia no dia 29 de março de 1549, quase meio século depois de Pedro Álvares Cabral. Os missionários protestantes só chegaram em 1855, três séculos e meio depois da “descoberta” e três séculos depois dos católicos. Para os católicos, houve um desperdício de 50 anos e, para os protestantes, um desperdício sete vezes maior.

Os missionários europeus daquela época e do século seguinte encontraram uma série de desafios pela frente.

Muito chão

A extensão territorial do novo campo missionário era enorme, pouco menos que a Europa toda, quatorze vezes maior que a Península Ibérica e 100 vezes maior que o minúsculo Portugal.

Muitas migrações

As gentes para evangelizar provinham de três grandes migrações: da Ásia (os indígenas), da Europa (os portugueses e mais alguns europeus) e da África (os negros que começaram a chegar em 1538).

Muitas etnias

Havia uma grande diversidade de etnias indígenas (mais de mil) e africanas (cerca de 250), com características e culturas distintas, em alguns casos, bem diferentes. Havia indígenas pacíficos e indígenas guerreiros, indígenas que comiam carne humana em rituais de guerra e indígenas não-antropófagos, indígenas que viviam praticamente nus e indígenas que cobriam-se de peles. Havia negros da costa atlântica e da costa índica, de toda a África subsaariana.

Muita gente

A população indígena era praticamente igual à população de Portugal, no mínimo um milhão e meio. Mas poderia ser bem maior, talvez 9 milhões.(1) O número de negros não era pequeno. Nos séculos XVII e XVIII entraram 2 milhões e meio de africanos no país. O Brasil importou mais de um terço do total de negros que foram transportados da África para o continente americano.(2)

Muita distância

Os indígenas não viviam em apenas uma região. Ocupavam o litoral de norte a sul e o interior do país de leste a oeste.

Muitas línguas

“Índios Borôro” (A. Taunay, 1827).

A comunicação era um problema quase intransponível por causa da diversidade de línguas. Até hoje há equipes de missionários lingüistas gastando em média 25 anos para traduzir o Novo Testamento para línguas indígenas. E ainda falta bem mais da metade de traduções por fazer. Quanto aos negros, o problema era menor porque eles aprendiam a língua dos portugueses.

Muita tentação

A dificuldade natural de conviver com respeito e castidade com a nudez das índias era uma situação absolutamente nova para os europeus. José de Anchieta explica: “Elas andam nuas e não sabem negar-se a ninguém, mas elas mesmas assediam e importunam os homens, metendo-se com eles nas redes, pois consideram uma honra dormir com os cristãos”.(3) A este respeito, o padre Quirício Caxa, o primeiro biógrafo de José de Anchieta, diz que os tamóios ficavam pasmados “de ver um mancebo [o próprio Anchieta] rodeado de todo fogo babilônico e estar nele sem lhe chamuscar um cabelo”. Para se livrar “desses ardentíssimos perigos e propin-quíssimas ocasiões, [Anchieta] usava de muita oração e comunicação com Deus”, completa Caxa.(4) Segundo o cronista italiano Francisco Antonio Pigafetta, quando o navio Trinidad, no qual se encontrava, entrou na Baía de Guanabara, em 1519, vários nativos se aproxi-maram de canoa ou a nado dos navios e as mulheres que subiram a bordo “estavam nuas, eram muito jovens e se ofereciam aos marujos em troca de facas alemãs da pior qualidade”.(5)

Muitos perigos

Em 1556, o navio em que viajava de volta para Portugal o primeiro bispo do Brasil naufragou no litoral de Alagoas. Os sobreviventes, inclusive Pero Fernandes Sardinha, que tinha sido colega de João Calvino na Universidade de Paris (6) e missionário em Goa, na Índia, foram mortos pelos índios caetés. Entre 1570 e 1571, quatorze anos depois, o desastre foi muito maior: piratas franceses atacaram dois navios nas proximidades das Canárias, mataram alguns passageiros e jogaram os outros ao mar. Entre os mortos, estavam 43 religiosos da Companhia de Jesus a caminho do Brasil.(7)

Muito desconforto

Embora ensolarado e exuberante, o campo missionário não oferecia nenhum conforto, por causa do calor, das doenças tropicais, dos animais selvagens e dos insetos. Certo jesuíta contou 45 grilos e 450 pulgas entre a grandíssima multidão de insetos que perturbavam a missa, o sono, a mesa e tudo o mais.

Muito pecado

Os brancos que haviam fixado residência e os que passavam certo período de tempo aqui eram, com raras exceções, pessoas de baixo padrão moral. Bom número eram degredados, desterrados e desertores. Outros eram náufragos e colonos, ávidos de enriquecimento rápido. Os jesuítas diziam que eles se portavam “de acordo com a lei natural”, cercados de mulheres e escravos.(8) Eduardo Bueno assevera que eles “viviam para além dos limites, para além da lei e para aquém da ética”.(9)

O degredado Bacharel de Cananéia tinha seis mulheres, 200 escravos e um exército de mil indígenas e era o maior traficante de escravos da época. Manoel da Nóbrega chamava o misterioso João Ramalho de petra scandali para a missão.(10) Eram todos batizados na igreja e “cristãos”. Além do baixo padrão moral, esses portugueses, ao contrário dos colonizadores da Nova Inglaterra, vieram para o Brasil sem suas esposas, o que explica em grande parte o concubinato de quase todos.

Muita injustiça

Representação de um navio negreiro (Robert Walsh, 1828)

O sentimento de superioridade étnica do europeu aliado ao seu poder econômico e militar causou inomináveis barbáries, especialmente no Brasil colônia. Índios eram perseguidos, escravizados e exterminados. Depois de um pequeno período de recuperação física e de engorda, os negros recém-chegados da África eram separados de seus familiares e misturados entre si, para dificultar a comunicação entre eles e evitar uma possível rebelião. Uma vez comprado, o escravo passava a ser propriedade de seu senhor. Poderia ser doado, alugado, vendido, leiloado, hipotecado e trocado. Em algumas fazendas, os escravos mais robustos engravidavam as escravas mais férteis, a mando dos seus senhores, para multiplicar seletivamente o número de trabalhadores e o capital de seus donos. Os negros recebiam os famosos três pês: pão (comida), pano (roupa) e pau (castigo físico). Por qualquer transgressão eram açoitados, acorrentados e torturados. A escravidão no Brasil durou exatamente 350 anos (de 1538 a 1888).

Muitas desvantagens

Os primeiros brasileiros eram todos mamelucos, filhos de pai branco e mãe índia. E, como as crianças eram criadas pela mãe, meninos e meninas de sangue mestiço eram educados na cultura e crenças nativas, não na fé cristã.

Para enfrentar tão grande e diversificado desafio da Janela Brasileira, seria de bom alvitre o envio de missionários escolhidos. Era isso que Anchieta solicitava aos seus superiores na Europa. Numa de suas cartas, o apóstolo do Brasil escreveu: “Mais vale um bom na casa de Deus que muitos que lancem a perder a si e aos outros”.(11)

Todavia, nem todos os missionários e clérigos que vieram para o campo missionário brasileiro eram de “provada virtude”. Alguns deles queimaram seus cabelos no forno babilônico, como escreve Gilberto Freyre: “A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava”. Manoel da Nóbrega queixava-se de que “cá há clérigos, mas é a escória que de lá [Portugal] vem”.(12)

De qualquer modo, os missionários dos três primeiros séculos conseguiram conquistar a Janela Brasileira e transplantaram para aqui a cultura cristã. Com raríssimas exceções, todos os brasileiros são cristãos, muito embora a maioria esmagadora seja formada de cristãos nominais, sem vida religiosa, sem doutrina e sem salvação, como todos reconhecem.

Notas

1 – In: DONATO, Hernani. Os índios do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1995. p. 8.
2 – HOORNAERT, Eduardo et al. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1992. tomo II/1. p. 404.
3 – BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 177.
4 – CAXA, Quirício, RODRIGUES, Pero. Primeiras biografias de José de Anchieta. São Paulo: Loyola, 1988. p. 20.
5 – BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 132.
6 – PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Ática. p. 10.
7 – Id. Ibid.
8 – BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 167.
9 – Id. Ibid. p. 157.
10 – Id. Ibid. pp. 178-179.
11 – ANCHIETA, Joseph de. Cartas; correspondência ativa e passiva. São Paulo: Loyola, 1984. p. 332.
12 – HOORNAERT, Eduardo et al. História da igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1992. tomo II/1. p. 184.
Texto originalmente publicado na edição 264 de Ultimato. Maio-Junho 2000.

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