Ao chegar ao Brasil, na segunda metade do século 17, o missionário europeu encontrava muitos desafios pela frente:

Muito chão

A extensão territorial do novo campo missionário era enorme. Embora as fronteiras não estivessem demarcadas, alguns anos depois o Brasil seria pouco menor que a Europa toda, quatorze vezes maior que a Península Ibérica e cem vezes maior que o minúsculo Portugal.

Muitas migrações

As gentes para evangelizar provinham de três grandes migrações: da Ásia (os indígenas), da Europa (os portugueses e mais alguns europeus) e da África (os negros que começaram a chegar em 1538).

Muitas etnias

Havia uma diversidade enorme de etnias indígenas (mais de mil) e africanas (mais de 250), com características e culturas distintas, em alguns casos, bem diferentes. Havia indígenas pacíficos e indígenas guerreiros, indígenas que comiam carne humana em rituais de guerra e indígenas não antropófagos, indígenas que viviam praticamente nus e indígenas que cobriam-se de peles. Havia negros da costa atlântica e da costa índica, de toda a África subsaariana.

Muita distância

Os indígenas se encontravam totalmente dispersos, ocupando o litoral de norte a sul e o interior do país, de leste a oeste. Eram tão numerosos quanto a população de Portugal.

Muitas línguas

A comunicação era um problema quase intransponível por causa da diversidade de línguas. Até hoje há equipes de missionários linguistas gastando em média 25 anos para traduzir o Novo Testamento para línguas indígenas. E ainda falta bem mais da metade de traduções a fazer. Quanto aos negros, o problema era menor porque, como escravos, eram obrigados a aprender a língua dos portugueses.

Muita tentação

A dificuldade natural de conviver com respeito e castidade com a nudez das índias era uma situação absolutamente nova para os europeus. José de Anchieta explica: “Elas andam nuas e não sabem negar-se a ninguém, mas elas mesmas assediam e importunam os homens, metendo-se com eles nas redes, pois consideram uma honra dormir com os cristãos”2.  A este respeito, o padre Quirício Caxa, o primeiro biógrafo de José de Anchieta, diz que os tamóios ficavam pasmados “de ver um mancebo [o próprio Anchieta] rodeado de todo fogo babilônico e estar nele sem lhe chamuscar um cabelo”3. Para se livrar “desses ardentíssimos perigos e propinquíssimas ocasiões, [Anchieta] usava de muita oração e comunicação com Deus”, completa Caxa4.  Segundo o cronista italiano Francisco Antonio Pigafetta, quando o navio Trinidad, no qual se encontrava, entrou na Baía de Guanabara, em 1519, vários nativos se aproximaram de canoa ou a nado dos navios e as mulheres que subiram a bordo “estavam nuas, eram muito jovens e se ofereciam aos marujos em troca de facas alemãs da pior qualidade”5.

Muitos perigos

Em 1556, o navio em que viajava Pero Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, que também fora colega de Calvino na Universidade de Paris6, naufragou no litoral de Alagoas. Os náufragos foram mortos pelos caetés. Entre 1570 e 1571, quatorze anos depois, o desastre foi muito pior: piratas franceses atacaram dois navios nas proximidades das Canárias, mataram alguns passageiros e jogaram os outros ao mar. Entre os mortos estavam 43 jesuítas a caminho do Brasil.7 Dizia-se na época: “Se queres aprender a orar, faze-te ao mar”.8

Muito desconforto

Embora ensolarado e exuberante, o campo missionário não oferecia nenhum conforto, por causa do calor, das doenças tropicais, dos animais selvagens e dos insetos. Certo jesuíta contou 45 grilos e 450 pulgas entre a grandíssima multidão de insetos que perturbavam a missa, o sono, a mesa e tudo o mais.

Muito pecado

Os brancos que haviam fixado residência e os que passavam certo período de tempo aqui eram, com raras exceções, pessoas de baixo padrão moral. Bom número eram degredados, desterrados e desertores. Outros eram náufragos e colonos, ávidos de enriquecimento rápido. Os jesuítas diziam que eles se portavam “de acordo com a lei natural”9, cercados de mulheres e escravos. Eduardo Bueno assevera que eles “viviam para além dos limites, para além da lei e para aquém da ética”10. O degredado Bacharel de Cananeia tinha seis mulheres, 200 escravos e um exército de mil indígenas e era o maior traficante de escravos da época. Manoel da Nóbrega chamava o misterioso João Ramalho de petra scandali para a missão.11  Eram todos batizados na igreja e “cristãos”. Além do baixo padrão moral, esses portugueses, ao contrário dos colonizadores da Nova Inglaterra, vieram para o Brasil sem suas esposas, o que explica em grande parte o concubinato de quase todos. Gilberto Freyre escreveu que o colonizador português chegou ao Brasil “hiperexcitado” e aqui encontrou o ambiente propício para liberar sua sexualidade. Segundo Freyre, seria o português, mestiço de europeu com mouro, o grande responsável pela forte sexualização da cultura brasileira, mais que o negro ou o índio. Havia também a influência do culto afro-brasileiro, cujos deuses são louvados por suas proezas sexuais. Xangô, por exemplo, tinha 400 mulheres e Oxum é uma espécie de deusa do desejo.12

Muita injustiça

O sentimento de superioridade étnica do europeu aliado ao seu poder econômico e militar causou inomináveis barbáries, especialmente no Brasil colônia. Índios eram perseguidos, escravizados e exterminados. Depois de um pequeno período de recuperação física e de engorda, os negros recém-chegados da África eram separados de seus familiares e misturados entre si para dificultar a comunicação entre eles e evitar uma possível rebelião. Eles recebiam os famosos três pês: pão (comida), pano (roupa) e pau (castigo físico). Por qualquer transgressão eram açoitados, acorrentados e torturados. A escravidão no Brasil durou exatamente 350 anos (de 1538 a 1888).

Muitas desvantagens

Os primeiros brasileiros eram todos mamelucos, filhos de pai branco e mãe índia. E, como as crianças eram criadas pela mãe, meninos e meninas de sangue mestiço eram educados na cultura e crenças nativas, não na fé cristã.

 

Notas
2 In: BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 177.
3 CAXA, Quirício, RODRIGUES, Pero. Primeiras biografias de José de Anchieta. São Paulo: Loyola, 1988. p. 20.
4 Id., ibid.
5 In: BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 13.
6 PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Ática. p. 10.
7 Id., ibid. p. 11.
8 BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 10.
9 In: ____. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 195.
10 BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 10.
11 ____. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. pp. 178179.
12 MASSON, Celso, FERNANDES, Manuel. A sexo-música. Veja, p. 84, 12 fev. 1997.
Trecho originalmente publicado no livro História da Evangelização do Brasil.

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