A história de Maria na simplicidade do Novo Testamento e na perspectiva protestante
Maria foi uma mulher extraordinariamente bem-aventurada. Não só por ter sido eleita para trazer a este mundo o Verbo feito carne. Mas também porque seus filhos com José — Tiago, José, Simão e Judas — inicialmente descrentes, vieram a se converter e a se destacar no cenário do cristianismo primitivo!
Da surpresa da concepção à surpresa da ressurreição
De fato uma jovem da Galiléia, de família modesta, chamada Maria, prometida a um carpinteiro descendente de Davi e Bate-Seba chamado José, foi a única mulher do mundo e da história a engravidar sem o concurso de homem algum. Ela participou da história da redenção de modo absolutamente original. Em seu ventre, por obra do Espírito Santo, o Verbo se fez carne. A criança que nasceu nove meses depois dessa concepção sobrenatural recebeu o nome de Emanuel, que quer dizer Deus Conosco (Mt 1.23). É por isso que a oração da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho lembra que Jesus é tanto o rosto humano de Deus como o rosto divino do homem, repetindo o que John Stott diz em Cristianismo Básico: “Jesus não é Deus disfarçado de homem nem homem disfarçado de Deus”. O que aconteceu com Maria em Nazaré tornou Jesus ao mesmo tempo Filho de Deus e Filho do homem e uniu magistralmente a perfeita divindade e a perfeita humanidade de Jesus.
Maria abrigou Jesus em seu útero e o alimentou desde quando a substância ainda era informe até adquirir o corpinho de uma criança. Ela o expulsou de lá quando a sobrevivência do menino exigia outro espaço e outros cuidados. Por circunstâncias especiais, o parto aconteceu numa modesta manjedoura em Belém da Judéia, há mais de dois milênios.
A esposa de José deu seu seio ao menino Jesus. Quando um deles esvaziava, ela oferecia o outro. Deu-lhe água, deu-lhe papinha, deu-lhe colo. Beijou vezes sem conta suas bochechas e seus pezinhos. Limpou-o do xixi e do cocô feitos de dia e de noite. Banhou-o num tacho qualquer de pedra ou de madeira. Tirou piolhos de seus cabelos e bicho-de-pé de seus pés. Ajudou-o a dar os primeiros passinhos. Deu-lhe brinquedos para brincar. Instruiu a criança na lei do Senhor. Ensinou-o a juntar as palmas das mãos para orar, fez com que ele decorasse os Dez Mandamentos, cantou para ele as canções do Senhor, levou-o à sinagoga todos os sábados. De ano em ano, a zelosa mãe subia outra vez às montanhas da Judéia, com o menino, outros parentes e outras pessoas, em romaria a Jerusalém, para participar com ele das festas religiosas.
Ela esteve com Jesus tanto nas bodas de Caná como naquela sexta-feira escura. Ela viu a água potável transformada em vinho em Caná e a água misturada com sangue brotando do corpo já morto de seu Filho no Calvário. Ela esteve ao pé da cruz das nove horas da manhã até às três horas da tarde (Jo 19.25). Ela sofreu como ninguém ao ver tudo o que fizeram com o Filho de Deus e com o seu Filho naquele período de seis horas. Ela ouviu as sete palavras proferidas por ele na cruz e comoveu-se mais ainda quando ele lhe disse, como que apontando para João: “Aí está o seu filho”, e quando disse a João, como que apontando para ela: “Aí está a sua mãe” (Jo 19.26-27).
É bastante provável que Maria fizesse parte daquele grupo de mulheres da Galiléia que foi duas vezes ao jardim da casa de José de Arimatéia (na tarde da sexta-feira e na madrugada do primeiro dia da semana). Da primeira vez, elas foram ver onde o corpo do Senhor havia sido colocado (Lc 23.55-56). Depois, voltaram para embalsamar o seu corpo (Lc 24.1). Nessa segunda ida ao túmulo, elas se surpreenderam com a pedra removida, com o túmulo vazio e com a ressurreição do Senhor (Lc 24.2-8).
Das aflições às consolações
Maria quase perdeu o noivo. Quando descobriu que sua querida noiva, com quem estava de casamento acertado, estava grávida, sem que ele tivesse participação nisso, e sem conseguir acreditar que ela tivesse sido infiel a ele, o desnorteado carpinteiro de Nazaré achou por bem desmarcar o casamento, mas sem recorrer ao seu direito de denunciar a noiva às autoridades religiosas. Foi um momento difícil para Maria, mas ela deixou o caso nas mãos de Deus. Como era de se esperar, um anjo veio ao encontro do noivo e lhe disse: “José, filho de Davi, não temas receber Maria como esposa, pois o que nela foi gerado procede do Espírito Santo” (Mt 1.20). Com a revelação dos propósitos de Deus, José saiu da confusão mental e “recebeu Maria como sua esposa”, tornando-se o pai adotivo de Jesus (Lc 3.23).
Curiosamente Maria perdeu Jesus em duas ocasiões distintas, separadas entre si por um período de pouco mais de 20 anos. Em ambos os eventos o sumiço de Jesus durou três dias. A primeira vez aconteceu na viagem de volta de Jerusalém para Nazaré, logo após a festa da páscoa, quando Jesus era um adolescente de 12 anos. Maria deve ter sentido uma aflição enorme quando descobriu que Jesus havia desaparecido, depois de ter constatado que o garoto não estava com José nem com qualquer outra pessoa da família. Ela gastou três dias até encontrá-lo “no templo, sentado entre os mestres” (Lc 2.41-51). A segunda vez aconteceu em Jerusalém, quando, na cruz, Jesus “curvou a cabeça e entregou o espírito” a Deus (Jo 19.30). Maria teve que esperar três dias para ver a pedra removida, o túmulo vazio e o Senhor ressuscitado.
Não havia necessidade de Maria permanecer virgem a vida inteira. A perda da virgindade no casamento não diminui a santidade e a devoção de ninguém. Depois do casamento e depois do nascimento de Jesus, José passou a ter relações com a esposa (Mt 1.25). Maria teve no mínimo outros seis filhos (quatro homens e duas meninas). Com referência ao Pai, Jesus é o “Filho Unigênito de Deus” (Jo 3.16,18). Com referência à mãe, Jesus é o filho primogênito de Maria (Lc 2.6-7). Os filhos homens receberam nomes comuns: Tiago, José, Simão e Judas (Mt 13.55-56; Mc 6.3).
Mas o relacionamento de Jesus com seus irmãos era complicado. João registra que “nem mesmo os seus irmãos criam nele” (Jo 7.5). Jesus tinha problemas fora e dentro de casa. Se ele não era considerado quem dizia ser, então a situação dele e de Maria era bastante embaraçosa. Assuntos delicados, como o nascimento virginal, seriam contestados por seus irmãos. E se ele não era filho de Deus, então de quem seria filho? De José, como conseqüência de um relacionamento pré-conjugal? De algum outro homem? Para os irmãos de Jesus, seu propósito era se tornar conhecido. Daí a crítica que lhe faziam: “Ninguém age às escondidas quando quer manifestar o seu poder” (Jo 7.4, TEB). Jesus devia viajar para Jerusalém e manifestar-se ao mundo, se era isso que pretendia. Talvez eles desconfiassem da saúde mental de Jesus: E se ele tivesse algum desvio de personalidade em direção à megalomania, algo como uma auto-imagem doentia de si mesmo? Essa suposição é reforçada por outra passagem bíblica. Quando a multidão cercava Jesus para obter dele algum benefício, era tanta gente à sua volta que nem ele nem os discípulos tinham tempo para comer alguma coisa. “Quando seus familiares ouviram falar disso, saíram para trazê-lo à força, pois diziam: ‘Ele está fora de si’.” (Mc 3.21) (outras versões trazem: “ele está louco” ou “ele perdeu o juízo”).
Todavia, depois da morte e da ressurreição de Jesus, seus irmãos passaram a crer nele com tal intensidade que pelo menos dois deles — Tiago e Judas — alcançaram alguma proeminência na história da igreja primitiva. O livro de Atos registra que, logo após a ascensão de Jesus, todos os fiéis se reuniam sempre em oração, “com as mulheres, estando entre elas Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (At 1.14). Tiago se tornou uma das colunas, um dos líderes da igreja, ao lado de Pedro e João (Gl 2.9) e a ele o Senhor apareceu de modo particular depois de ressurreto (1 Co 15.7). Foi com Tiago, “irmão do Senhor”, que Paulo se reuniu em Jerusalém três anos depois de sua conversão (Gl 1.19). Tudo indica que o autor da Epístola de Tiago e moderador do concílio de Jerusalém era esse mesmo Tiago, irmão do Senhor (At 15.13; Tg 1.1). Se o autor dessa Epístola é de fato um dos filhos convertidos de Maria e José, então Judas também é, pois ele se apresenta como “irmão de Tiago” (Jd 1.1). O Novo Testamento não contém nenhuma epístola assinada por Jesus. Em compensação, duas das sete cartas dirigidas a todos os cristãos, de forma geral, e não a determinadas igrejas ou pessoas, foram escritas pelos irmãos de Jesus.
Maria foi uma mulher extraordinariamente bem-aventurada. Não só por ter sido eleita para trazer a este mundo o Verbo feito carne. Mas também porque seus filhos com José — Tiago, José, Simão e Judas — inicialmente descrentes, vieram a se converter e a se destacar no cenário do cristianismo primitivo!
Texto originalmente publicado na edição 307 de Ultimato. Julho-Agosto 2007.
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