A conversa que mudou minha vida
O drama de uma mulher que chegou a ter seis maridos
Embora religiosa e criada numa sociedade que não tolerava o sexo fora do casamento, muito cedo me enveredei por caminhos diferentes.
Talvez tenha havido problema de educação, eu mesma não sei explicar. Na verdade, eu tinha dificuldade na área sexual. Vivi com alguns homens alternadamente. Não me tornei prostituta vulgar, mas às vezes me sentia como uma delas e ficava horrorizada.
Sei que o nível moral havia caído muito em relação ao padrão inicial, porque, já nos meus dias, havia a tendência de se exigir mais da mulher do que do homem nessa área. Há pouco, por exemplo, queriam apedrejar em Jerusalém uma mulher flagrada em adultério. No entanto, a lei em que os acusadores se apoiavam não pune só a mulher: “Se um homem adulterar com a mulher do próximo, será morto o adúltero e a adúltera” (Lv 20.10; Dt 22.22-24).
Várias vezes quis justificar-me e interpretar as coisas de maneira diversa. Não me enquadrava como adúltera, porque me considerava solteira e não me relacionava com homem casado. Por que o sexo deveria ser praticado apenas dentro de um casamento estável e até que a morte o interrompesse? Não poderia haver outras formas de relacionamento responsável, mas temporário, sob a proteção de um amor não necessariamente eterno? Por que só o amor justifica a união conjugal? O desejo e a conveniência de viverem juntos um homem e uma mulher não são suficientes?
Ao mesmo tempo, eu percebia, por experiência própria, que essa liberdade não estimula a perseverança e o espírito de luta para preservar o vínculo, além de produzir grande desgaste emocional. No meu caso, por exemplo, houve seis vínculos, digamos seis “maridos”. Acabei descobrindo que o intercâmbio existente nas relações torna os parceiros uma só carne, de maneira que, havendo ou não uma cerimônia oficial de compromissos mútuos, efetiva-se uma união no mínimo apenas carnal. Nesse caso, não há como negar que o relacionamento seguinte, com outro homem, constitui uma forma de adultério.
Meu problema maior, porém, não era de ordem especulativa, e sim de ordem ética. Mudar de vida é mais difícil do que mudar de pensamento. No entanto, mudei de pensamento e de vida, graças a uma admirável conversa com um estranho que encontrei junto à fonte de Jacó.
O estranho
Nasci e me criei aqui em Sicar, numa região montanhosa, entre o mar e o rio Jordão, mais próxima deste. A cidadezinha fica entre duas elevações muito ligadas à história de Israel: do lado norte, o monte Ebal, com cerca de mil e duzentos metros de altura; do lado oposto, o monte Gerizin, mais baixo uns trezentos metros. Antes mesmo da ocupação de Canaã, Moisés determinou que do alto do Ebal fossem lidas as maldições para quem não cumprisse a Lei de Deus e do Gerizin, as bênçãos decorrentes da obediência. Neles Josué renovou a aliança de Israel com o Senhor, logo após a derrota de Ai, mais ao sul.
Perto da cidade, à margem da estrada que liga a Judeia à Galileia, há um pedaço de terra comprado por Jacó e oferecido a José. Nesse sítio os judeus enterraram os ossos de José, trazidos do Egito. Lá estava também a fonte de Jacó. Constantemente, eu fazia o trajeto de Sicar à fonte para apanhar água.
Lembro-me, como se fosse hoje, de que numa dessas idas à fonte encontrei um homem cansado, suado e sujo de poeira assentado junto ao poço. Não o cumprimentei porque ele era judeu e eu, samaritana. Havia uma velha rixa entre nós, desde que Zorobabel nos excluiu da reconstrução do templo de Jerusalém há mais de 500 anos. Por causa disso, acabamos construindo nosso próprio templo no monte Gerizin, destruído no ano 129 a.C. por João Hircano, sumo sacerdote e príncipe dos judeus, filho e sucessor de Simão Macabeu.
Fiquei surpresa quando aquele desconhecido quebrou o silêncio e me pediu água para beber. Minha reação foi de indelicadeza: não lhe dei água e ainda o repreendi por dirigir-se a mim. Mas ele insistiu na conversa com tanta habilidade, que eu me vi, de repente, muito à vontade e interessada no diálogo que se seguiu.
Em questão de segundos, aquele judeu em trânsito por Samaria inverteu as coisas e me fez dependente dele, de uma certa água viva, que mata a sede para sempre. Ele falava com calma, com precisão, com segurança, com uma espantosa autoridade e com ternura. Esquecendo-me da tradicional separação entre judeus e samaritanos, acabei por fazer a coisa mais acertada de minha vida: “Senhor, dá-me dessa água”.
O profeta
Quando lhe pedi a água viva, ainda estava confusa. Pensei que se tratasse de um líquido, do qual talvez enchesse o meu cântaro ou um vidrinho qualquer. Pensei que a sede a que Ele se referia fosse a sede física, a manifestação da ausência de água no organismo. O estranho não deu muita importância a essa estúpida. Ele sabia — e já estava acontecendo — que o efeito dessa água não potável, mas mística, faria por si a necessária correção.
A resposta que o andarilho me deu quando lhe pedi água viva pareceu-me sem pé e sem cabeça: “Vai, chama teu marido e vem cá”. Vim a entender logo a relação de uma coisa com a outra. Ele estava me dando a chance de eu mesma trazer à tona o meu problema. Achei melhor não mentir nem me estender muito sobre o assunto. Disse-lhe simplesmente: “Não tenho marido”. Ao que Ele respondeu, deixando-me surpresa e implicada: “Bem disseste, não tenho marido; porque cinco maridos já tiveste, e esse que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade”.
Envergonhada de mim mesma, mas ainda à vontade na presença dele, fiquei sem saber como reagir. Negar a acusação seria bobagem, pois Ele estava por dentro de tudo quanto eu havia feito até então. Também não lhe diria que não se metesse na minha vida, pois a sua interferência já estava dando bons resultados. Aceitei a acusação. Disse-lhe, meio espantada: “Vejo que tu és profeta”.
O Messias
Há cerca de sete séculos e meio, Sargão II, rei da Assíria, destruiu o reino de Israel, deportou as dez tribos para outras regiões e trouxe outros povos para habitar nas cidades de Samaria. Porque estes novos moradores da terra nada sabiam sobre o Deus de Israel, o próprio rei da Assíria mandou de volta um dos sacerdotes para instruir nos caminhos do Senhor o povo recém-chegado. Nós, os samaritanos, somos descendentes desse sincretismo cultural e religioso. Somos monoteístas, temos o temor do Senhor, reconhecemos Moisés, guardamos a Lei (inclusive o sábado e a circuncisão) e esperamos o tal profeta de que falava Moisés.
Talvez para desviar o assunto dos meus seis “maridos”, trouxe à baila a questão do lugar do culto. Nossos pais adoravam a Deus aqui no Gerizin e os judeus insistiam na centralização do culto no templo em Jerusalém.
A explicação que ele me deu foi tão simples quanto coerente: “Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”.
Entusiasmada com esses assuntos religiosos, falei da minha esperança e convicção da vinda do Messias, chamado Cristo, o qual nos anunciaria todas as coisas. O estranho simplesmente respondeu: “Eu o sou, eu que falo contigo”.
Nesse momento, chegaram os homens com os quais eu havia me encontrado no caminho da fonte. Eles traziam comida para aquele personagem cada vez mais surpreendente. Fiquei sabendo que eram seus discípulos.
Mal podendo conter minha surpresa e espanto, mas vendo lógica e indescritível beleza naquele quadro, deixei o cântaro vazio ali mesmo e corri à cidade. Com a respiração ofegante, espalhei rapidamente a notícia de que a profecia havia se cumprido e o ungido de Deus ali estava, em carne e osso. Contei todas as coisas que aconteceram no início daquela tarde e levei as pessoas ao encontro do Messias. O reboliço foi enorme.
Pedimos que Jesus permanecesse conosco. Embora estivessem a caminho da Galileia, Ele e seus discípulos ficaram em Sicar por dois dias. Muitos creram em Jesus por causa da sua palavra e me disseram: “Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo”.
A essa altura, lembrei-me deste salmo: “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim por ti, ó Deus, suspira a minha alma”. E acabei por entender o que é a água viva. Pela primeira vez, em muitos anos, eu me sentia dessedentada interiormente!
Meu nome? Não importa muito, pois represento um grupo de mulheres, com as mesmas dificuldades e com as mesmas possibilidades. Todavia, sou conhecida no mundo inteiro como A Mulher Samaritana.
Texto extraído do livro Deixem Que Elas Mesmas Falem. Ultimato, 1995.