Frente à epidemia de aids, a Igreja não pode deixar de se envolver com o sofrimento alheio
O Dia Mundial de Combate à Aids é comemorado anualmente no dia 1º de dezembro e tem por finalidade levar informação sobre a doença e diminuir o preconceito.
Pensando nisso, Ultimato decidiu recuperar um dos relatos de viagem do Mineiro com Cara de Matuto à cidade São Paulo, onde conheceu o hospital Emílio Ribas – referência na assistência a pessoas portadoras de doenças infectocontagiosas, no Brasil e no exterior, e um dos primeiros a tratar casos de HIV no país.
Hospital das Clínicas e Cemitério do Araçá lado a lado
Foi no dia 24 de fevereiro de 2006. Desci do metrô na Estação das Clínicas e caminhei até o Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Do lado direito da rua Dr. Arnaldo fica o Hospital das Clínicas e, do esquerdo, o Cemitério do Araçá. Não gostei da associação nem da proximidade entre hospital e cemitério. O hospital não é uma tentativa de me distanciar do cemitério por mais algum tempo? O perfume, as cores e os formatos das flores me levam invariavelmente ao Criador, mas não aquelas flores à venda nas calçadas da rua Dr. Arnaldo. Naquele lugar, elas lembram mais o fim do que a beleza da vida.
Embora o Emílio Ribas seja a última esperança humana para quem é portador de alguma doença infectocontagiosa grave, como meningite, neurotoxoplasmose ou leptospirose, a conhecida relação desse nome com o vírus HIV e com a aids me fechou a cara. Mas o antigo nome do hospital assustava muito mais: por 110 anos (de 1880 a 1990), ele foi conhecido como Hospital de Isolamento. O nome Emílio Ribas foi acrescentado em 1932 para homenagear o médico paulista que lutou contra a peste em Santos e, junto com o famoso Vital Brasil, preparou o soro antipestoso.
Se o Hospital de Isolamento tivesse sido criado vinte anos antes, em 1860, quem sabe teria salvo a vida do jovem missionário Ashbel Green Simonton? O fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil morreu de febre amarela, em São Paulo, em dezembro de 1867, um mês antes de completar 34 anos. Ele está sepultado no Cemitério dos Protestantes, ali perto, na esquina da rua Dr. Arnaldo com a Cardeal Arcoverde.
Todo dia é dia de alegria
Dois dias antes de minha visita ao Emílio Ribas, havia 95 pessoas soropositivas nas enfermarias do segundo ao oitavo andares do hospital; mais homens (67) do que mulheres (28); mais adultos (67) do que crianças (8), adolescentes (4), jovens (13) e idosos (3). O paciente mais novo era um bebê de um mês, com o diagnóstico de aids associada a toxoplasmose congênita e hérnia umbilical. Ele tinha sido internado logo ao nascer. O mais idoso era uma senhora de 62 anos, cujo diagnóstico era aids associada a turberculose pulmonar e neurocriptococose. Mais da metade dos pacientes (55) tinha de um a dez dias de internamento. O que estava lá havia mais tempo (84 dias) era um rapaz de 33 anos.
O Emílio Ribas possui uma equipe multidisciplinar para dar assistência integral ao doente. Ela é formada por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, capelães e estagiários. É um verdadeiro exército de profissionais da saúde. Encontrei-me com alguns deles.
Acompanhei a capelã Janny de Almeida em algumas visitas aos doentes. No quarto andar, onde ficam as crianças, vi na parede do corredor um cartaz com um desenho infantil e a frase: “Todo dia é dia de alegria!” No mesmo corredor, vi um menino de 12 anos chorando abraçado a uma assistente social. Ele chorava porque minutos antes uma menina um ano mais nova que ele, em estado terminal, havia sido levada para o CTI. Ela estava internada desde o dia 30 de janeiro, com aids associada a pancitopenia. Fui vê-la através de um enorme vidro transparente. Estava toda entubada. Percebi que o corpo dela estremeceu. Na manhã seguinte, a menina estava morta.
Conversei com três outros doentes: um senhor de 45 anos, um rapaz de 33 e uma moça de 30. À porta do elevador eu já tinha me encontrado com uns dez familiares do primeiro. Eu e a capelã Eleny Vassão Aitken ficamos impressionados com as muitas vezes que a moça de 30 anos referiu-se à mãe, que cuida dos quatro filhos da moça e a visita quase diariamente. O quadro é muito triste.
Uma das passagens menos saborosas da Bíblia é o capítulo que lista os descendentes de Adão. Oito dos 32 versículos que aparecem no capítulo 5 de Gênesis terminam com a curta e seca expressão: “E morreu”. Ao referir-se à morte, Paulo usa o verbo “dormir”, que é muito mais ameno (1 Co 15.6, 18, 20, 51). No Emílio Ribas, tomei conhecimento de outras palavras amenas, como “letalidade” e “terminalidade”. Se o conteúdo é a morte, não faz diferença embrulhá-la com celofane ou com folhas de jornal. Só há um conforto sólido para a amarga experiência da morte — o reinício da vida por meio da ressurreição do corpo, esperança que não encontramos apenas na repetição do Credo Apostólico, mas no patrimônio religioso acumulado durante os anos.
“A aids me fez mais humilde e mais humana”
A ameaça de morte por meio da epidemia de aids, que começou a aparecer no início da década de 80, deixou em polvorosa muita gente, inclusive o pessoal do Emílio Ribas. “Os funcionários estavam assustados, temendo a contaminação ao manipular o paciente”, lembra Heloísa Helena de Araújo Campos, a primeira psicóloga a dar assistência aos internos e seus familiares. Como não se conhecia a doença, usavam-se critérios bem rígidos de isolamento, incluindo luvas, máscara, avental e gorro. Os médicos viviam um momento de grande impotência.
Porque as primeiras vítimas da aids, tanto em São Paulo e Rio de Janeiro como em Los Angeles e Nova York, eram homens de alta renda e homossexuais, pensava-se que o risco seria só para essas pessoas. Mas, quando a epidemia alcançou outros brasileiros, quase todos entraram em pânico. Foi nessa ocasião, em 1985, que a educadora em saúde pública Ester Aparecida Abib, do Emílio Ribas, lançou o Disk-Aids, para acalmar e informar a população sobre o assunto. A técnica em serviço social Lilian Calazani explica que os primeiros anos foram terríveis: “Os doentes lotavam os corredores e era comum os óbitos acontecerem ali mesmo”. Os desafios, no entanto, foram sendo enfrentados e produziram coisas positivas, como se pode ver no testemunho da médica Mara Cristina Pappalardo: “Trabalhar com a aids me fez ser mais humilde, mais humana. Com a aids, discutimos sexualidade, uso de drogas, relacionamentos familiares, sexo seguro e também culpa, perdão, perdas, recomeço e morte”.
Atualmente, o Emílio Ribas tem se destacado no cenário nacional e mundial. Dos 790 trabalhos científicos produzidos pelo Hospital de 1992 a 2005, mais da metade foi sobre HIV e aids. A cada ano, cerca de 3 mil estudantes de medicina, enfermagem e de outras áreas da saúde recebem treinamento ali.
A pauperização, a interiorização e a feminização da aids
De acordo com a UNAIDS, um projeto da Organização das Nações Unidas, deve haver em torno de 40,3 milhões de pessoas vivendo com o HIV no mundo. A cada dia, 16 mil habitantes do planeta se contaminam com o vírus da aids, dos quais a metade são jovens entre 15 e 24 anos. Para ser mais preciso, a cada dezesseis segundos um jovem é infectado. No período de um quarto de século (de 1981 a 2005), 26 milhões de pessoas morreram em consequência da aids. Só em 2003, foram 3 milhões de mortes e 5 milhões de novas infecções.
A maioria (95%) das pessoas portadoras do HIV vive nos países em desenvolvimento. A África Subsaariana é o continente mais afetado, com 25,8 milhões de vítimas. A cada dia, 9 mil africanos se tornam aidéticos. No Maláui, país localizado entre Moçambique e Zâmbia, com mais de 70% da população abaixo de 30 anos, 15% dos habitantes estão infectados.
Segundo o médico infectologista André Villela Lomar, do Emílio Ribas e do Hospital Israelita Albert Einstein, no Brasil há mais de 270 mil casos notificados, desde a descoberta da aids até setembro de 2003. Desses, mais de 135 mil (50%) são pessoas que já morreram.
Os especialistas explicam que estão ocorrendo três fenômenos quanto à difusão da aids.
Primeiro, a pauperização da epidemia. O médico Sebastião André de Felice, diretor técnico do Emílio Ribas, explica que “o perfil social dos pacientes com aids transitou de um vértice ao outro”, isto é, depois de acometer pessoas das camadas privilegiadas, “logo se expandiu para diferentes segmentos sociais”. O alastramento é cada vez maior entre as camadas mais pobres.
Segundo, a interiorização da epidemia. Ela está saindo do eixo Rio-São Paulo (onde ainda estão 36% dos casos notificados) e alcançando todo o território nacional, até os rincões mais remotos.
Terceiro, a feminização da epidemia. Segundo o Ministério da Saúde, mulheres na faixa etária de 19 a 39 anos representam hoje 70% dos novos casos notificados. Na década de 80, a proporção era de uma mulher para cada 23 homens. Agora, a média é de uma mulher para cada dois homens. Em outros países, o problema é ainda mais grave: na África do Sul há vinte mulheres para dez homens e no Quênia e Mali, a proporção é de 45 mulheres para dez homens. Isso agrava seriamente o problema, por causa da transmissão vertical — o sangue da placenta e o leite materno de uma mulher com aids podem infectar seu filho antes e depois do parto.
Uma doença ainda sem cura
O médico sanitarista Artur Kalichman e a infectologista Stella Maria Bueno, ambos do Programa Estadual DST/AIDS, afirmam que “ao longo de vinte anos de epidemia, a assistência aos portadores de HIV/aids no Estado de São Paulo evoluiu em termos técnicos, numéricos e, principalmente, em qualidade”. Até julho de 2003, o órgão contabilizou 55.050 pacientes em terapia anti-retroviral em todo o Estado.
Apesar de todos os esforços, ainda não há cura para a aids nem vacina imunizante contra o HIV. Em todo o mundo há muita gente trabalhando para alcançar outros e melhores resultados. Uma dessas pessoas é o médico e professor universitário Luiz Cláudio Arraes de Alencar, filho do recém-falecido Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco. A revista britânica Nature Medicine publicou em 2004 os resultados da pesquisa por ele coordenada sobre uma possível vacina terapêutica contra a aids. Aliás, o Brasil tem cada vez mais destaque no cenário mundial no que diz respeito a esse desafio. O já citado dr. André Lomar dá uma boa notícia: “Estamos conseguindo diminuir a velocidade da epidemia”. Segundo ele havia uma incidência de 25 mil novos casos por ano, que caiu para cerca de 20 mil.
Um dos instrumentos responsáveis por esse avanço é o chamado “coquetel”, um conjunto de medicamentos que não cura, mas prolonga e melhora a qualidade de vida dos pacientes. Lomar garante que “a vinda do coquetel constitui um divisor de águas na história natural da infecção pelo HIV”. Hoje há um verdadeiro arsenal de mais de quinze drogas anti-retrovirais (amprenavir, abacavir, atazanavir, biovir, efavirenz, fosamprenavir, ganciclovir, indinavir, lopinavir, ritonavir, tenofovir e outras). O grande problema, acrescenta Lomar em entrevista à revista Prática Hospitalar, é que os pacientes terão de fazer uso desses medicamentos pelo resto da vida, “pois não há, até o momento, perspectiva de cura do HIV através dos anti-retrovirais”. Além do mais a quantia diária de comprimidos é enorme (às vezes mais de 20 unidades) e os efeitos colaterais são desanimadores.
Uma informação muito triste é dada pelo dr. Luiz Cláudio Arraes à revista Infecto Atual: “Apenas 5% da população infectada do mundo tem acesso a elas [às drogas anti-retrovirais]”.
A terribilidade do HIV está nas co-infecções, provocadas infalivelmente quando o vírus alcança sua força total. Aí aparecem os temíveis processos oportunistas relacionados à imunodeficiência grave, como criptococose, micobacterioses, pneumocistose, sarcoma de Kaposi e outras.
Diante de um quadro tão realista, precisamos ser sábios e honestos para nos convencer, e convencer os outros (principalmente adolescentes e jovens), de que vale a pena nos submetermos aos princípios que regem o nosso comportamento, sobretudo na área da sexualidade, dada a íntima e comprovada relação da promiscuidade com o HIV. Se não dermos ouvidos à voz divina, é bom ouvirmos a voz da medicina. Ambas recomendam o sexo seguro: a primeira, por meio da abstinência da imoralidade sexual (At 15.20); a segunda, pelo do uso da camisinha.
O terreno fértil do HIV e da aids
É preciso repetir o parágrafo anterior para lançar outro desafio. Diante de um quadro tão realista, tão triste, tão amplo, a igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo precisa se envolver na guerra contra o HIV e sua última e mortal consequência, a aids.
A pregação do padrão de vida bíblico, do temor do Senhor, do perdão de pecados, das boas novas da salvação, da santificação progressiva e da esperança escatológica não é a única missão da igreja. Nem foi a única missão de Jesus e dos apóstolos. Na luta contra o HIV, precisamos combater o que está por trás e ao lado da epidemia. Não é só a promiscuidade sexual. Em nossa cultura cristã deu-se mais ênfase à moralidade sexual do que à justiça social. Precisamos fortalecer a corrente cristã que equilibrou as coisas, que redescobriu o evangelho holístico, que não abraçou apenas a pregação da moralidade sexual nem apenas a pregação da justiça social. Nesse sentido, temos uma dívida muito grande com o Pacto de Lausanne, produzido pelo Congresso sobre Evangelização Mundial, realizado em Lausanne, na Suíça, em 1974.
Além de reconhecer a negligência quanto à responsabilidade social e de confessar as vezes que consideraram a evangelização e a ação social mutuamente exclusivas, os participantes de Lausanne I assentiram que “a mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam”.
A dra. Musa W. Dube, da Universidade de Botsuana, no centro-sul da África, diz que “a injustiça social é terreno fértil para o HIV/Aids”. O fato de que 95% dos infectados vivem em países em desenvolvimento, a maior parte deles na África, um dos continentes mais explorados da história (basta lembrar os 300 anos de escravatura), parece comprovar essa verdade. A prostituição também tem íntima relação com a pobreza, que por sua vez tem íntima relação com a injustiça social, quer seja pela exploração ou pela omissão dos governos e da sociedade.
É mais do que oportuno ouvir a exortação, o desafio, da médica Kiran Martin, que trabalha na Índia: “Os cristãos são gigantes adormecidos — eles podem mudar o mundo inteiro se desejarem”. O fato é que, “como Corpo de Cristo, a Igreja não pode deixar de entrar no sofrimento dos outros, de estar ao seu lado contra toda rejeição e desespero”, como diz o caderno Aids e Igrejas — um convite à ação, publicado no Rio de Janeiro por KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. Esse caderno é leitura obrigatória para os cristãos que não querem mais ser tachados de gigantes adormecidos.
Fontes: Infecto Atual, fev./mar. 2005; Prática Hospitalar, maio/jun. 2004; Éducation Chrétienne et VIH/SIDA (Edition Haho 2005); Currículo sobre HIV/SIDA (MAP Internacional); Emílio Ribas — a trajetória do Instituto de Infectologia Emílio Ribas no combate á Aids (Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo); Aids e Igrejas — um convite à ação (KOINONIA) e John Stott Comenta o Pacto de Lausanne (ABU e Visão Mundial).
Para pesquisar
www.wcc-coe.org/en — Na sessão sobre a EHAIA (sigla inglesa para Iniciativa Ecumênica contra HIV/Aids na África), há vários textos informativos sobre a aids, em várias línguas, inclusive em português.
Texto originalmente publicado na edição 300 de Ultimato.
Mais informações:
Mapa mundial da AIDS
Relatórios e publicações da UNAIDS