A vitória da graça
A matéria de capa da edição de janeiro/fevereiro de 2000 de Ultimato falou sobre “a vitória da graça”. Entre outros textos, o que reproduzimos a seguir fala de acontecimentos reais, envolvendo Lutero, que a respeito da graça disse: “Chamo de graça aquela grande abóbada debaixo da qual coloco toda a imundícia que os escribas e fariseus hipócritas escondiam dentro dos sepulcros caiados ou que deixavam dentro do copo. Chamo de graça aquela enorme calota para debaixo da qual transfiro todos os meus pecados, toda a minha miséria moral, todo o meu sentimento de culpa, todas as minhas imundas “justiças”, todo o meu desespero, todo o meu pavor do inferno e eu por inteiro. Ali me protejo do justo juízo de Deus, totalmente calado, sem apresentar uma justificativa sequer (porque não a tenho), sem alegar alguma possível boa obra (por ser inútil) e sem dividir com qualquer outro pecador minha culpa pessoal. Faço isso pela fé na pessoa e no sofrimento vicário de Jesus Cristo, atraído que sou pelo amor de Deus” (Conversas com Lutero, p. 138).
O sequestro de 1521
O sequestro mais curioso da história aconteceu no dia 3 de maio de 1521, precisamente há 496 anos. A seguir, um relato completo deste emocionante episódio do século XVI por meio de uma série de noticiários. Faça de conta que você mora na velha Europa e está acompanhando a notícia pela televisão.
Noticiário de 18 de abril de 1521
O monge agostiniano de 38 anos, Martinho Lutero, ordenado em 1507, acusado de heresia, reafirma sua posição religiosa perante o mais poderoso imperador de seus dias, Carlos V, e uma plateia de seis eleitores, 28 duques, 11 príncipes, 30 bispos e 5 mil espectadores. Isto aconteceu hoje à tarde em Worms, na Alemanha, entre Frankfurt e a fronteira com a França. Como resultado, a vida do conhecido, aplaudido e temível professor da Universidade de Wittenberg está em sério perigo.
Noticiário de 4 de maio de 1521
Ontem, ao sul da Alemanha, perto de Eisenach, terra natal de Bach, quando atravessava a Floresta da Turíngia, a carruagem em que viajava Martinho Lutero foi interceptada por cinco cavaleiros encapuzados e fortemente armados. O monge, que foi arrancado do carro e levado para lugar desconhecido, voltava da Dieta de Worms, do outro lado da Alemanha e estava a caminho de Wittenberg, via Erfurt, Weimar e Leipzig. Seus companheiros de viagem – um professor, um frade e um estudante – informaram que Lutero tinha consigo um salvo-conduto de regresso fornecido pelo próprio imperador, mas nada souberam explicar sobre o sequestro. Estavam cientes do perigo de vida que o amigo corria desde que começou a levantar sua voz contra o comércio das indulgências, há quase quatro anos. Naturalmente sua prisão e morte eram esperadas para qualquer hora, mas não enquanto durasse o salvo-conduto.
Noticiário de 15 de junho de 1521
Faz hoje um ano que Lutero foi excomungado pelo Papa Leão X e 42 dias que desapareceu misteriosamente. O notável pintor Alberto Dürer, de 50 anos, tem perguntado com frequência: “Se Lutero é morto, quem no futuro nos pregará o Evangelho?” Ele está tentando envolver Erasmo de Roterdam, ex-professor de teologia em Cambridge, de 55 anos, atualmente residindo em Basileia, na fronteira com a Suíça, na liderança do movimento reformista, na ausência de Lutero. Mas o autor do best-seller O Elogio da Loucura, de 1511, embora simpático aos reformadores, prefere não se comprometer totalmente com eles. O representante papal na Dieta de Worms, Jerônimo Aleandro, de 41 anos, tido como o possível autor do atentado, nega a responsabilidade, mas declara que “ficaria muito grato a Deus se Lutero estivesse morto”. O mistério do sequestro permanece.
Noticiário de 31 de outubro de 1521
Lutero está fazendo falta em Wittenberg. Os acontecimentos ali estão tomando outro rumo. A liderança da Reforma acha-se nas mãos de André Bodenstein von Karlstadt, o mais velho de todos os antigos companheiros de Lutero (48 anos), homem impulsivo, radical e ousado demais, autor das 380 teses sobre a supremacia das Escrituras e a falibilidade dos concílios eclesiásticos, publicadas em 1518 para reforçar as teses contra a venda de indulgências afixadas numa das igrejas de Wittenberg, exatamente há quatro anos. Os outros líderes são, por ordem de idade, Nicolau von Amsdorf (38 anos), João Bugenhagen (36), Justo Jonas (28) e Filipe Melanchton (24). A situação é crítica. A Reforma corre o risco de se transformar em revolução e a ordem, em desordem. Não se tem nenhuma notícia precisa de Lutero. Mas já se desconfia de que ele está vivo, pois é possível encontrar e ler vários tratados de sua lavra, escritos em algum lugar secreto e publicados por George Spalatino, de 39 anos, um de seus maiores amigos.
Noticiário de 26 de dezembro de 1521
Na celebração natalina de ontem em Wittenberg, Karlstadt não usou as vestes sacerdotais e distribuiu a comunhão nas duas espécies, como se fazia na igreja primitiva. Lutero ainda não foi localizado. Talvez alguns de seus amigos saibam onde ele se encontra, mas nada revelam. As cartas que Lutero lhes escreve são datadas de lugares fantasiosos: do “deserto”, da “região dos pássaros”, do “ar” ou da “ilha de Patmos”. Por toda a Alemanha circula seu livro Kirchenpostille, uma coleção de sermões para os domingos e dias de festa, escrito para a edificação dos fiéis, depois de seu sequestro.
Noticiário de 26 de fevereiro de 1522
Com a morte de Leão X em 1º de dezembro do ano passado, o holandês Adriano Floriszoonn acaba de ser eleito papa, com o nome de Adriano VI. Certos exageros estão prejudicando a reforma de Lutero. Além de cenas de ostensivo quebra-quebra de imagens, Wittenberg está recebendo a influência dos profetas de Zwickau — Nicolau Storch, Tomás Drechsel e Marcos Stubner —, ao sul da Alemanha, próxima à fronteira com a Tchecoslováquia. Eles pregam contra a organização eclesiástica, acreditam que Deus se revela também por visões e sonhos, e profetizam acerca do fim do mundo. Os sacerdotes estão abandonando o celibato e contraindo núpcias. Karlstadt casou-se no mês passado e Justo Jonas, agora em fevereiro.
Noticiário de 7 de março de 1522
Ontem Wittenberg foi tomada de grande surpresa e emoção. O cavalheiro que entrou na cidade com um saltério hebraico entre as mãos foi logo identificado: não era outro senão o próprio Lutero. A cidade inteira ficou sabendo que o sequestro fora obra do fundador da Universidade de Wittenberg, Frederico III, o Sábio, eleitor da Saxônia, atualmente com 59 anos. Protetor de Lutero desde 1511, Frederico providenciou o rapto de 3 de maio do ano passado para evitar que o reformador fosse morto. Lutero, com o nome de Cavalheiro Jorge, sem o hábito de monge, com barbas e cabelos crescidos, e uma espada à cintura, para não ser reconhecido, ficou hospedado no Castelo de Wartburg, perto de Eisenach, construído por volta do ano de 1070. Sem poder se expor, pôs-se a escrever diversos tratados. Seu maior trabalho, porém, foi a tradução do Novo Testamento para o alemão, baseando-se não no texto latino da Vulgata, mas no texto grego editado por Erasmo em 1519. Apesar de usar papel e tinta inferiores, de não dispor de secretária, de ser obrigado a escolher um dos quase 200 dialetos da língua alemã, Lutero gastou apenas três meses nessa tradução. Os originais serão entregues ao editor Belchior Lotter, de Wittenberg, com a encomenda inicial de 5 mil exemplares. O pintor Lucas Cranach já se ofereceu para preparar as ilustrações.
Noticiário de 15 de março de 1522
Lutero encerrou ontem, em Wittenberg, uma série de pregações de oito dias. Pregou com rara felicidade. Mostrou que o Evangelho consiste no reconhecimento do pecado, no perdão por meio de Cristo e no amor ao próximo. O povo reconheceu sua autoridade e submeteu-se a sua liderança. Os profetas de Zwickau bateram em retirada. Desta maneira Lutero opôs-se não só aos romanistas, como sempre fez, mas também aos revolucionários, que andavam por demais rápidos. Embora por força do decreto de proscrição, assinado por Carlos V em maio do ano passado, qualquer pessoa do império possa prender Martinho Lutero e entregá-lo às autoridades, ninguém o tem molestado. A ordem de prisão não tem sido cumprida por quem quer que seja. Nem há o menor indício de que será executada. O valoroso reformador alemão gosta de dizer que “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações” (Sl 46.1). Ele tem toda razão!
Texto originalmente publicado na edição 262 de Ultimato.