A última música do Titanic
O relógio do enorme e luxuoso salão de baile marcava menos de duas horas da madrugada da noite de 14 para 15 de abril de 1912. Todo mundo estava acordado. Os escaleres apinhados de mulheres e crianças da primeira classe já haviam descido. Vários passageiros já haviam pulado para a água gelada do mar. Alguns já haviam morrido por causa do impacto da queda e seus corpos boiavam ao redor do navio. A noite estava serena e o mar também. Foi quando um dos violinistas, já no convés do Titanic, entre gritos de desespero, começou a tocar um dos mais ternos hinos religiosos, no que foi imediatamente acompanhado por outros violinos, viola e violoncelo. Talvez ninguém, naquela altura, tenha cantado ou cantarolado a conhecida letra da conhecida música. Mas, tanto uma como a outra, deve ter soado gostoso aos ouvidos de todos os que ainda estavam a bordo, antes de o navio se partir em dois e afundar de vez. Era pelo menos um pequeno conforto para quem não conseguiu lugar num dos botes salva-vidas e estava a apenas um passo da morte certa e pavorosa. Era também — quem sabe — uma confissão de última hora, para compensar a desatenção coletiva dada a Deus até então e a soberba daquele passageiro incontido que achava e declarou em público que nem Deus afundar o Titanic. Pois todos que ouviram a melodia certamente se lembraram no mínimo do título do hino: “Nearer, my God, to Thee” (Mais perto, meu Deus, de ti).
Não era a primeira vez que o hino “Mais perto, meu Deus, de ti” entrava para a história. Dois anos antes, em 1910, por ocasião da Convenção Mundial de Escolas Dominicais, realizada em Washington, ele foi cantado em 23 idiomas. E, em 1872, 40 anos antes, 50.000 pessoas o entoaram na celebração do Jubileu da Paz, na cidade de Boston.
A letra de “Mais perto, meu Deus”, de ti foi escrita há 158 anos, em novembro de 1840. Por uma inglesa chamada Sarah Flower Adams, que morreria tuberculosa 8 anos depois. Sarah era filha de um jornalista que passou 6 meses na cadeia por ter criticado o governo britânico, e esposa de um engenheiro civil que deu todo apoio aos seus dons artísticos. Ela publicou, em 1845, um catecismo para crianças com hinos, inclusive o Mais perto, meu Deus, de ti, com o título “The flock at the fountain” (O rebanho na bica).
A poesia de Sarah Adams, inspirada na visão de Jacó da escada que ligava o céu à terra (Gn 28.10-22), atravessou o Atlântico e foi parar nas mãos de um bancário e regente de coro chamado Lowell Mason, residente em Boston, nos Estados Unidos. Foi ele quem compôs a linda e singela melodia do hino em 1856. Três anos depois, a melodia apareceu com o nome de “Belhany”, pela primeira vez num hinário. Esse Lowell foi quem introduziu o ensino de música nas escolas públicas de Boston, o primeiro passo para se tornar obrigatório também em todo o país. São de sua autoria mais de 1.500 hinos e arranjos religiosos. Lowell Mason é o primeiro doutor em música na história americana, grau conferido pela Universidade de Nova York, em 1835. O notável compositor sacro faleceu aos 80 anos, 40 anos antes do naufrágio do Titanic.
Mais perto, meu Deus, de ti
Mais perto quero estar,
Meu Deus, de ti,
Inda que seja a dor
Que me una a ti.
Sempre hei de suplicar:
“Mais perto quero estar!
Mais perto quero estar,
Meu Deus, de ti!”
Mesmo vagando aqui
Na solidão,
De noite a descansar,
Dormindo ao chão,
Em sonhos vou clamar:
“Mais perto quero estar!
Mais perto quero estar,
Meu Deus, de ti!”
Minha alma cantará
A ti, Senhor!
Betel aqui verei
Por teu favor.
Eu sempre hei de rogar:
“Mais perto quero estar!
Mais perto quero estar, Meu Deus, de ti!”
E quando a morte enfim
Me vier chamar,
Nos céus com o Senhor
Irei morar.
Então me alegrarei
Perto de Ti, meu Rei!
Perto de Ti, meu Rei,
Meu Deus de Ti! ”
(Novo Cântico, nº 116, tradução de João Gomes da Rocha.)
Texto originalmente publicado na edição 252 de Ultimato.